Como militares pensam o Brasil

De tempos em tempos, a República brasileira se vê numa crise da qual não consegue sair. É como se entrasse em loop e buscasse um rompimento, uma reforma. Invariavelmente, nessas horas, é à porta dos quartéis que o brasileiro bate. Getúlio com os tenentes, em 1930; o marechal Eurico Gaspar Dutra, em 45; o próprio Exército, em 64. A exceção é a mudança de volta à democracia, com Tancredo e Sarney. O capitão de reserva Jair Bolsonaro foi eleito num cenário de angústia pela crise aberta em 2013 e ainda não encerrada. É impossível não reconhecer o papel que o Exército Nacional cumpre na política brasileira. Nesta edição de sábado, o Meio tenta entender o que é o pensamento político militar brasileiro.

Quando a República começou, o Exército ainda era aquela instituição do Império: os oficiais vinham da gente bem-nascida, os soldados do resto. Feito ministro da Guerra, foi o marechal Hermes da Fonseca quem mandou um grupo dos melhores jovens para a Prússia, em 1908, para que se formassem como os oficiais daquele que era considerado o melhor Exército do mundo. Aprenderam a arte da guerra lá, mas aprenderam também, com a vizinhança do movimento dos Jovens Turcos, uma concepção de papel mais amplo das Forças Armadas na vida de uma nação.

O Império Otomano estava em decadência e este grupo de jovens oficiais pretendiam trazer a Turquia para o século 20. Da forma como viam, nenhuma instituição representava melhor os interesses da pátria do que aquela criada para defendê-la. Não bastasse, por sua natureza o Exército é organizado, disciplinado. Foi partindo dos Jovens Turcos que Mustafa Kemal Atatürk se fez o primeiro presidente da Turquia, entre 1923 e 38, quando morreu.

A impressão causada foi tão forte que estes rapazes que voltaram para fundar, no Brasil, a primeira escola preparatória de oficiais — precursora da Academia Militar de Agulhas Negras — foram apelidados eles próprios de jovens turcos. E fundaram, em 1913, a influente revista A Defeza Nacional, na qual discutiam assuntos militares, mas também nacionais. A primeira turma formada por eles foi a que fez o levante do Forte de Copacabana, em 1922, de onde nasceu o Tenentismo que acompanhou Getúlio ao poder. Castello Branco e Costa e Silva pertenciam a esta geração.

(A revista A Defesa Nacional ainda é publicada, pela BibliEx.)

O espírito dos Jovens Turcos é assim representado: os políticos são corruptos, o Exército é disciplinado. O Exército é patriota. Pela integridade, nada representa melhor o espírito do país.

Careciam, no entanto, de substância.

A formação da Escola Superior de Guerra pelo Dutra, em 1949, como que uma estrutura de pós-graduação militar, é chave. E dois pensadores dão solidez e discurso à vaga ideologia que já existia. São o ex-ministro do Supremo Alberto Torres e seu discípulo, contemporâneo de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, o historiador Jose de Oliveira Vianna.

As crises da República brasileira giram sempre no entorno da mesma questão: o papel das oligarquias, do patrimonialismo, da corrupção. O foco do problema muda com o tempo, mas em essência há um naco da política que monta no Estado para extrair dele poder ou dinheiro. É o problema insolúvel do Brasil que está na raiz da crise de 1889, de 1930, 45, 64, 85 e agora, 2018. Como se expurga isto? Existe a solução liberal que, avançando com o tempo, em essência afirma: democracia resolve. E existe a solução autoritária.

Político republicano ainda na Monarquia, constituinte de primeira hora na República, governador do Rio, ministro das Relações Exteriores e depois do Supremo, aposentado e muito culto, Alberto Torres era um que se exasperava com a influência oligárquica daquele período inicial de experiência democrática. Já velho, chegou a algumas conclusões: o Brasil, por não ser uma sociedade desenvolvida, não podia se dar ao luxo de ser liberal — leia-se, democrata. Era preciso um Estado forte e competente para organizar o país, formá-lo e, a partir daí, o liberalismo poderia assumir.

Juarez Távora, mais de uma vez candidato à presidência, líder do Tenentismo, diretor da ESG, citava Alberto Torres e Oliveira Vianna com frequência. Também Ernesto Geisel o fazia. Pais intelectuais do autoritarismo brasileiro, Torres e Vianna tinham também a característica de serem anti-racistas. Foram modernos nisto. Diferentemente de eugenistas de primeira hora da República ou conservadores do Império, não enxergavam na mistura de raças brasileira um problema. Era a formação social, a educação, a estrutura do Estado, de forma alguma o povo, que dificultava o caminho brasileiro.

Quem ouve Jair Bolsonaro falar sobre o Brasil não tem como não escutar os ecos destes dois, cujos fantasmas ainda rondam pelos corredores da AMAN e da ESG. Mais do que isto, é difícil não viver o hoje e não se afastar para observar os ciclos liberais e autoritários, ambos tentando resolver a grande chaga brasileira.

Ainda: As biografias de Alberto Torres (PDF) e Oliveira Vianna (PDF), pela FGV.

Ainda mais: Dois papers acadêmicos. A Escola Superior de Guerra no quadro do pensamento político brasileiro: militarismo e o pensamento autoritário brasileiro (PDF), de Douglas Biagio Puglia. E Alberto Torres: uma obra, várias leituras (PDF), de Silvia Oliveira Campos de Pinho.

De tempos em tempos, a República brasileira se vê numa crise da qual não consegue sair. É como se entrasse em loop e buscasse um rompimento, uma reforma. Invariavelmente, nessas horas, é à porta dos quartéis que o brasileiro bate. Getúlio com os tenentes, em 1930; o marechal Eurico Gaspar Dutra, em 45; o próprio Exército, em 64. A exceção é a mudança de volta à democracia, com Tancredo e Sarney. O capitão de reserva Jair Bolsonaro foi eleito num cenário de angústia pela crise aberta em 2013 e ainda não encerrada. É impossível não reconhecer o papel que o Exército Nacional cumpre na política brasileira. Nesta edição de sábado, o Meio tenta entender o que é o pensamento político militar brasileiro.

Quando a República começou, o Exército ainda era aquela instituição do Império: os oficiais vinham da gente bem-nascida, os soldados do resto. Feito ministro da Guerra, foi o marechal Hermes da Fonseca quem mandou um grupo dos melhores jovens para a Prússia, em 1908, para que se formassem como os oficiais daquele que era considerado o melhor Exército do mundo. Aprenderam a arte da guerra lá, mas aprenderam também, com a vizinhança do movimento dos Jovens Turcos, uma concepção de papel mais amplo das Forças Armadas na vida de uma nação.

O Império Otomano estava em decadência e este grupo de jovens oficiais pretendiam trazer a Turquia para o século 20. Da forma como viam, nenhuma instituição representava melhor os interesses da pátria do que aquela criada para defendê-la. Não bastasse, por sua natureza o Exército é organizado, disciplinado. Foi partindo dos Jovens Turcos que Mustafa Kemal Atatürk se fez o primeiro presidente da Turquia, entre 1923 e 38, quando morreu.

A impressão causada foi tão forte que estes rapazes que voltaram para fundar, no Brasil, a primeira escola preparatória de oficiais — precursora da Academia Militar de Agulhas Negras — foram apelidados eles próprios de jovens turcos. E fundaram, em 1913, a influente revista A Defeza Nacional, na qual discutiam assuntos militares, mas também nacionais. A primeira turma formada por eles foi a que fez o levante do Forte de Copacabana, em 1922, de onde nasceu o Tenentismo que acompanhou Getúlio ao poder. Castello Branco e Costa e Silva pertenciam a esta geração.

(A revista A Defesa Nacional ainda é publicada, pela BibliEx.)

O espírito dos Jovens Turcos é assim representado: os políticos são corruptos, o Exército é disciplinado. O Exército é patriota. Pela integridade, nada representa melhor o espírito do país.

Careciam, no entanto, de substância.

A formação da Escola Superior de Guerra pelo Dutra, em 1949, como que uma estrutura de pós-graduação militar, é chave. E dois pensadores dão solidez e discurso à vaga ideologia que já existia. São o ex-ministro do Supremo Alberto Torres e seu discípulo, contemporâneo de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, o historiador Jose de Oliveira Vianna.

As crises da República brasileira giram sempre no entorno da mesma questão: o papel das oligarquias, do patrimonialismo, da corrupção. O foco do problema muda com o tempo, mas em essência há um naco da política que monta no Estado para extrair dele poder ou dinheiro. É o problema insolúvel do Brasil que está na raiz da crise de 1889, de 1930, 45, 64, 85 e agora, 2018. Como se expurga isto? Existe a solução liberal que, avançando com o tempo, em essência afirma: democracia resolve. E existe a solução autoritária.

Político republicano ainda na Monarquia, constituinte de primeira hora na República, governador do Rio, ministro das Relações Exteriores e depois do Supremo, aposentado e muito culto, Alberto Torres era um que se exasperava com a influência oligárquica daquele período inicial de experiência democrática. Já velho, chegou a algumas conclusões: o Brasil, por não ser uma sociedade desenvolvida, não podia se dar ao luxo de ser liberal — leia-se, democrata. Era preciso um Estado forte e competente para organizar o país, formá-lo e, a partir daí, o liberalismo poderia assumir.

Juarez Távora, mais de uma vez candidato à presidência, líder do Tenentismo, diretor da ESG, citava Alberto Torres e Oliveira Vianna com frequência. Também Ernesto Geisel o fazia. Pais intelectuais do autoritarismo brasileiro, Torres e Vianna tinham também a característica de serem anti-racistas. Foram modernos nisto. Diferentemente de eugenistas de primeira hora da República ou conservadores do Império, não enxergavam na mistura de raças brasileira um problema. Era a formação social, a educação, a estrutura do Estado, de forma alguma o povo, que dificultava o caminho brasileiro.

Quem ouve Jair Bolsonaro falar sobre o Brasil não tem como não escutar os ecos destes dois, cujos fantasmas ainda rondam pelos corredores da AMAN e da ESG. Mais do que isto, é difícil não viver o hoje e não se afastar para observar os ciclos liberais e autoritários, ambos tentando resolver a grande chaga brasileira.

Ainda: As biografias de Alberto Torres (PDF) e Oliveira Vianna (PDF), pela FGV.

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O que querem os evangélicos

27/03/24 • 11:00

A cada nova sondagem de popularidade do governo Lula, conforme sua aprovação cai, a pressão por uma comunicação mais efetiva aumenta. Um segmento em particular vem consistentemente reduzindo sua nota para o petista: o evangélico. E, novamente, cobra-se o presidente e seus articuladores para que a conversa com esse campo seja mais fluida e permanente. Acontece que há alguns erros nas premissas dessa cobrança. O primeiro é acreditar que quando se fala com um líder evangélico, se fala com todos os fiéis. Nada poderia ser mais distante da realidade. “É inerente ao campo evangélico a fragmentação, a subdivisão”, explica Carô Evangelista, cientista política e diretora executiva do Instituto de Estudos da Religião, o Iser. Uma parcela expressiva dos evangélicos se declara “sem denominação”, justamente porque trafega entre uma igreja e outra, sem vínculo formal. Em seguida, no Censo de 2010, vem a categoria “outros”, que engloba milhares de denominações independentes. Alcançar esses pastores de igrejas pequenas e médias seria um dos caminhos possíveis de penetração na rede de comunicação antiprogressista que se formou nesse campo.

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