Prezadas leitoras, caros leitores —

Deveríamos estar de folga pelo Carnaval.

Mas muito aconteceu desde a edição de sexta-feira. Consideramos que era necessário trazer uma atualização a respeito da guerra que explodiu após a invasão da Ucrânia pela Rússia.

O Meio volta em edição regular na próxima quarta-feira — ou amanhã, caso seja necessária outra edição extra.

— Os editores.

Edição Extra: Putin levanta a ameaça nuclear

Pela quarta noite seguida, os ucranianos conseguiram resistir nesta madrugada de segunda-feira ao poderio militar russo. O Exército invasor tem sido mantido a 30 quilômetros da capital, Kiev, e com dificuldades de avançar. Outras duas cidades importantes, Kharkiv e Chernihiv, também seguem de pé. Ainda hoje de manhã, no horário brasileiro, devem começar em Belarus, fronteira com a Ucrânia, negociações de paz propostas por Moscou. O presidente ucraniano Volodymyr Zelenski enviou uma delegação, mas com ceticismo. A Rússia exige como pré-condições que a Ucrânia se “desmilitarize e se denazifique”, o que é lido como exigência de capitulação completa. Isto não ocorrerá agora — as forças de Zelenski começaram a ser armadas pelos países europeus. E o tom beligerante russo escalou. Mesmo com as conversas já convocadas, o presidente Vladimir Putin lembrou ontem ao mundo que tem o maior arsenal nuclear do planeta. E Belarus, espera-se, deve se juntar ao esforço de guerra russo nos próximos dias. Ainda assim, a resistência ucraniana pegou Moscou de surpresa e o primeiro dia útil da semana será de choque no país de Putin. O Banco Central elevou os juros básicos da economia de 9,5% a 20% para tentar evitar que sua moeda, o rublo, desmorone perante sanções internacionais num nível jamais visto. Ainda assim, a perda de valor já estava em 30%, no fechamento desta edição. (Washington Post)

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O presidente russo Vladimir Putin surpreendeu novamente o mundo na tarde de domingo ao colocar as equipes que cuidam do arsenal nuclear em alerta. O anúncio foi feito durante um encontro televisado em que estavam presentes, também, o ministro da defesa Sergei Shoigu e o chefe do Estado Maior do Exército, general Valery Gerasimov. Na hora, a expressão de Shoigu foi de surpresa. Não é claro o que o “estado de alerta” quer dizer em termos concretos — nos EUA, acredita-se que aviões bombardeiros podem ser retirados dos angares e carregados com ogivas enquanto submarinos militares, igualmente carregados, devem ser lançados ao mar. Como estes movimentos são continuadamente monitorados pelos serviços de inteligência, mudanças de comportamento dariam credibilidade à ameaça. Em seu discurso da última quinta-feira, quando ordenou a ivasão da Ucrânia, Putin já havia deixado implícito um recado. “Qualquer um que tente mexer conosco deve saber que a resposta terá consequências que vocês nunca encontraram na história”, disse. Ontem, Putin manteve a linha. “Pessoas em posições de comando de países da OTAN têm feito comentários agressivos contra nosso país”, se queixou. (New York Times)

Então… “Se ele estivesse se preparando para usar armas nucleares, não avisaria”, afirma Bruno Tertrais, da Foundation for Strategic Research. “Seu objetivo é chocar, mandar uma mensagem política.” É uma tentativa de fazer com que as potências militares hesitem em enviar armas para a Ucrânia. (Economist)

Na Belarus, um referendo modificando a Constituição foi aprovado pela população, no domingo. O presidente Alexander Lukashenko, um ditador, conseguiu assim abolir o status legal de país ‘não-nuclear’, abrindo espaço para que a Rússia ponha no território mais ogivas. Lukashenko é aliado de Putin. (Reuters)

Não adiantou. Ao longo do domingo, EUA e potências europeias começaram a impor sanções jamais vistas. Aviões russos, de companhias regulares a jatos privados, foram proibidos no continente. Não poderão levantar voo, sobrevoar ou pousar em toda região da União Europeia. Ao mesmo tempo, diversos bancos russos serão excluídos do SWIFT — é o sistema internacional de mensagens que permite a bancos fazerem transferências de um para o outro. O Banco Central russo também será impossibilitado de fazer operações internacionais. (BBC)

A mudança de posição de maior impacto foi a alemã. Com uma tradição pacífica que marcou as últimas décadas, o premiê Olaf Scholz anunciou a criação de um fundo de 100 bilhões de euros para as Forças Armadas, que passarão a receber maiores investimentos. (CNBC)

No sábado, ainda havia relutância por parte de alguns líderes, Scholz dentre eles, em seguir com as sanções mais duras. Foi um apelo feito em vídeo por um emocionado Volodymyr Zelenski que convenceu seus pares. Em apenas cinco minutos ele apresentou a situação da Ucrânia, pediu que se avaliasse o ingresso na União Europeia, implorou por ajuda. “Foi profundamente emotivo”, contou um diplomata. “Ele estava, em essência, dizendo ‘olha aqui, nós estamos morrendo por ideais europeus.’” Ao fim, Zelenski ainda afirmou que aquela talvez fosse a última vez que o veriam vivo. Alguns dos chefes de Estado tinham lágrimas nos olhos, contou outra testemunha. Mas o apelo fez com que as horas seguintes se voltassem para um debate intenso, unificando a União Europeia no propósito de retaliar a Rússia pela invasão de um país no continente. (Washington Post)

Destoando dos principais líderes no Ocidente e se isolando mais internacionalmente, o presidente Jair Bolsonaro afirmou ontem que o Brasil se delcara neutro. “Nossa posição tem que ser de grande cautela. Ninguém é favorável a guerra em lugar nenhum, traz problemas gravíssimos para toda a humanidade e para o nosso país também”, afirmou durante uma coletiva. Bolsonaro deu a entender que havia conversado com o presidente russo. “Estive há pouco conversando com o presidente Putin, mais de duas horas de conversa. Tratamos de muita coisa, a questão dos fertilizantes foi das mais importantes. Obviamente ele falou alguma coisa sobre a Ucrânia, eu me reservo aí como segredo de não entrar em detalhes da forma como vocês gostariam.” Segundo o chanceler Carlos França, a conversa “há pouco” era a tida quando da visita a Moscou. (Poder 360)

Thomas Friedman: “As palavras mais perigosas do jornalismo são ‘O mundo nunca mais será o mesmo’. Em mais de quatro décadas como repórter, raramente ousei escrevê-las. Mas é isto que está acontecendo após a invasão de Vladimir Putin da Ucrânia. Esta guerra não tem paralelo histórico. É uma tomada de território crua feita por uma superpotência no estilo século 18 mas num mundo globalizado do século 21. É a primeira guerra que será coberta no TikTok por indivíduos empoderados por smarphones, então atos de brutalidade serão documentados e transmitidos mundo afora sem editores ou filtros. Já no primeiro dia de guerra vimos tanques russos expostos no Google Maps porque o Google queria alertar motoristas que havia engarrafamentos. Nada assim aconteceu antes. Putin não tenta apenas reescrever unilateralmente as regras do sistema internacional que estão de pé desde a Segunda Grande Guerra, pelas quais uma nação não pode simplesmente engolir a outra. Ele quer alterar o balanço de poder que, sente, foi imposto à Rússia após a Guerra Fria. Para Putin, foi o equivalente à humilhação imposta pelo Tratado de Versailles à Alemanha após a Primeira Guerra. Só que não estamos em 1945 ou 89. Estamos ligados como nunca por telecomunicações, estradas e aviões. O resultado desta guerra dependerá da tentativa, pelo resto do mundo, de conter Putin com sanções econômicas e armando os ucranianos. Putin possivelmente terá também de considerar o número de mortes em seu Exército. Será que ele pode ser derrotado por esticar demais seu poder? Todos sabemos que ele tem o poder de fogo para fazer a Ucrânia se ajoelhar. Mas nunca vimos, na era atual, um país não-democrático tomar um democrático tão grande quando a Ucrânia. A União Europeia é a principal parceira comercial da Ucrânia. Não é a Rússia. O país inevitavelmente continuará flutuando na direção da UE. E se a UE boicotar uma Ucrânia tomada pela Rússia, a Rússia terá de financiar o país. Isto foi levado em consideração nos planos de guerra? Nos tempos de Stalin, seus excessos ficavam contidos dentro das fronteiras que controlava. Nos tempos de Mao, a China era tão isolada que seus excessos tocavam apenas chineses. O mundo atual está entre dois extremos. Nunca dois dos líderes das três principais nações nucleares — Putin e Xi — tiveram tanto poder. E nunca tantas pessoas estiveram ligadas entre si sem filtros. O que estes líderes decidirem fazer com seu poder tocará todos nós, virtualmente. A invasão da Ucrânia é a primeira vez que assistiremos a este choque.” (New York Times)

Yuval Noah Harari: “Menos de uma semana após o início da guerra, parece cada vez mais provável que Vladimir Putin esteja rumo a uma derrota histórica. Ele poderá vencer todas as batalhas e perder a guerra. Seu sonho de reconstruir o Império Russo sempre se baseou na mentira de que a Ucrânia não é uma nação de verdade, que os ucranianos não são um povo de verdade e que os habitantes de Kiev, Kharkiv e Lviv desejam ser controlados por Moscou. Quando planejou a invasão, Putin levou três pontos em consideração. Militarmente a Rússia é muito maior do que a Ucrânia. A OTAN não pode enviar tropas para a Ucrânia. E a dependência europeia em petróleo e gás russos faria com que países como a Alemanha hesitassem em impor sanções duras demais. Seu plano era atacar a Ucrânia com força e rapidamente, decapitar seu governo, estabelecer um regime fantoche e aí lidar com as sanções ocidentais. Mas também havia o que ele não poderia saber. Os americanos aprenderam no Iraque e os russos, no Afeganistão, que é mais fácil conquistar do que manter um país. Será que os ucranianos aceitariam um regime fantoche? Putin apostou que sim. Afinal, ele não acredita que formam um povo. Agora está ficando claro que sua aposta não vai se concretizar. Os ucranianos estão resistindo com todo seu coração, ganhando a admiração de todo o mundo — e, assim, vencendo a guerra. Haverá muitos dias difíceis pela frente. Mas para vencer a guerra os russos teriam de garantir controle da Ucrânia, o que só aconteceria se os ucranianos deixassem. As nações se escrevem pelas histórias que contam. A cada dia, mais histórias são criadas que os ucranianos contarão por gerações. O presidente que se recusou a deixar a capital dizendo aos EUA que precisa de munição, não de carona. Os soldados da Ilha das Cobras que disseram a um navio de guerra russo ‘fodam-se’. Os civis que tentaram impedir o caminho de tanques russos se plantando em frente. É com isso que nações se constróem. O déspota russo deveria saber disso. Como criança, ele cresceu com uma dieta de histórias de bravura da resistência ao Cerco de Leningrado. Agora, ele também está criando histórias. Mas se colocando no papel de Hitler.” (Guardian)

Então… No jogo de intepretações sobre o que ocorre, a principal divisão se dá entre duas lentes distintas de como compreender o mundo. O cientista político Guilherme Casarões, em um fio de Twitter, explica a distinção entre Realistas e Liberais. “Realistas enxergam um sistema internacional feito de Estados em permanente luta por poder e influência diante de um mundo onde prevalece a lei do mais forte. Para sobreviver, Estados precisam acumular poder. A busca da própria segurança causa insegurança nos outros. A consequência é o conflito e, se tudo der certo, algum equilíbrio de poder. Não há paz fora do equilíbrio.” São os realistas que acreditam que, na origem deste conflito, está a expansão da OTAN durante os anos 1990 e 2000. “Liberais costumam ser otimistas, pois acreditam no potencial do indivíduo e no progresso humano. Eles são entusiasmados com o avanço da democracia, do direito internacional e do livre comércio. Acham que paz e prosperidade virão disso. Para liberais, a grande mudança (positiva) do pós-Guerra Fria foi a aceleração da globalização e a expansão da democracia. Ditaduras renitentes seriam derrubadas pelo capitalismo, por eleições ou pela força. O “mundo livre” poderia nos levar à paz perpétua em pouco tempo.” Tanto Friedman quanto Harari seguem uma linha Liberal em como compreendem o mundo. Um artigo publicado pelo Washington Post em, 2014, assinado pelo ex-secretário de Estado de Richard Nixon, Henry Kissinger, circulou pelas redes esses dias. Ele apresenta um ponto de vista mais próximo do realista.

Henry Kissinger: “Com demasiada frequência, a questão ucraniana é apresentada como um confronto: se a Ucrânia se junta ao Oriente ou ao Ocidente. Mas para que a Ucrânia sobreviva e prospere, não deve ser o posto avançado de nenhum dos lados contra o outro — deve funcionar como uma ponte entre eles. A Rússia deve aceitar que tentar forçar a Ucrânia a um status de satélite e, assim, mover as fronteiras da Rússia novamente, condenaria Moscou a repetir sua história de ciclos autorrealizáveis de pressões recíprocas com a Europa e os Estados Unidos. O Ocidente deve entender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca pode ser apenas um país estrangeiro. A história russa começou no que foi chamado de Kievan-Rus. A religião russa se espalhou a partir daí. A Ucrânia faz parte da Rússia há séculos, e suas histórias estavam entrelaçadas antes disso.” (Metrópoles)

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