Brasil e EUA trocam papéis na geopolítica ambiental

Nos últimos dois dias o Brasil sofreu uma grave humilhação diplomática. O presidente brasileiro foi o 19º a falar na Cúpula (virtual) do Clima. E, enquanto Jair Bolsonaro usava quase sete minutos para fazer promessas vagas e apresentar dados falsos ou distorcidos, a câmera mostrava a cadeira vazia do anfitrião do evento, o presidente americano Joe Biden. Tal situação é inimaginável para quem, há 29 anos, acompanhou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92.

Em meio a uma intensa crise política que deporia meses depois o presidente Fernando Collor, o Brasil – mais precisamente, o Rio de Janeiro – sediou um evento global e assumiu um papel de protagonismo no debate sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável. De um lado da mesa estavam países em desenvolvimento, cientistas e ONGs; do outro, o presidente dos Estados Unidos, George Bush (pai). Enfrentando uma dura – e no fim malograda – campanha pela reeleição, Bush chegou ao Rio empenhado em barrar qualquer resolução que prejudicasse a altamente poluidora economia americana.

O que aconteceu ao longo dessas quase três décadas para que os papéis se invertessem de tal forma? De acordo com Carlos Rittl, senior fellow do Instituto de Estudos Avançados em Sustentabilidade de Potsdam (Alemanha) e ex-secretário executivo do Observatório do Clima, não se tratam de três décadas, mas de dois anos e meio no Brasil e três meses nos EUA.

Em 1988, o capítulo VI da Constituição da República reconheceu o direito de todos a um “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Desde então, governos trataram a questão climática com maior ou menor prioridade. “Mas em nenhum momento houve uma guerra declarada ao meio ambiente como se vê sob a gestão de Jair Bolsonaro e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles”, diz Rittl. “Desde a campanha presidencial, Bolsonaro prometia um governo antiambientalista, dizendo que iria ‘passar a foice no Ibama’, o que fez de fato.”

Um dos problemas envolve a figura de Salles. O Brasil sempre teve ministros no Meio Ambiente respeitados e com algum compromisso com a agenda ambiental. O anfitrião da Rio-92 foi o ambientalista José Lutzenberger (1926-2002), que estava à frente da agenda ambiental do governo Collor. Sarney Filho (nos governos Fernando Henrique e Temer), Marina Silva, Carlos Minc e Isabela Teixeira mantinham o compromisso com a preservação do meio ambiente.

Já Salles, em meio a conversas para tentar convencer governos estrangeiros a dar dinheiro para proteger florestas, foi a Santarém (PA) se encontrar com os madeireiros que foram alvo da maior apreensão de madeira ilegal da história da Amazônia, 200 mil m3, apreendidos pela Polícia Federal. “Algo assim nunca aconteceu antes”, diz Rittl.

Não que o Brasil fosse uma “ecotopia” nos anos pré-Bolsonaro. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), após atingir um pico de 29.059 km2 de desmatamento na Amazônia Legal em 1995 e um pico-não-tão-pico de 27.772 km2 em 2004, o país apresentou uma curva de queda até 2012, quando foram feitas mudanças no Código Florestal. Em 2018, a área desmatada chegou a 7.536 km2, para dar um salto até 10.129 km2 em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro. “Isso foi resultado de uma clara agenda de governo de escancarar a floresta a toda atividade econômica sem qualquer cuidado. Não foi à toa que o presidente, inúmeras vezes, criticou operações em andamento do Ibama que combatiam exploração ilegal de madeira ou garimpo em terra indígena”, diz Rittl.

O especialista lembra que o descaso do governo brasileiro com o meio ambiente é um entrave à ratificação do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, o que prejudica o agronegócio exportador, mas não afeta a “ecomilícia” de grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais, que mobilizam grandes somas. “Os vinte mil garimpeiros em terras indígenas não chegam lá só com uma bateia embaixo do braço. Alguém coloca ali uma draga de até R$ 1 milhão. Para fazer isso é preciso muito dinheiro”, assinala Rittl.

Foi com esse passivo que Bolsonaro fez na Cúpula do Clima suas promessas de redução de desmatamento e mais investimento em fiscalização – e as descumpriu horas depois. Não foi à toa que John Kerry, preposto de Biden para questões de clima, elogiou as promessas de Bolsonaro, mas questionou se elas serão cumpridas.

Mas, já que falamos do governo americano, como fica o outro lado? O que transformou os vilões de 1992 nos, como disse o articulista Guga Chacra, “líderes ambientais do planeta”? Para Carlos Rittl, o processo foi bem mais tortuoso e envolveu a incapacidade de os democratas, com uma visão um pouco mais simpática à causa ambiental, formarem maioria no Congresso, mesmo quando ocupavam a Casa Branca – tanto Bill Clinton quanto Barack Obama perderam a maioria na Câmara com apenas dois anos de mandato. Segundo o especialista, essa falta de base no Legislativo afetou até mesmo o Acordo de Paris, firmado em 2015. “Ninguém chegou a uma ‘conta do clima’ e disse ‘você deve tanto e suas metas são essas’. Cada governo avaliou sua conta e sua capacidade ou intenção de cortar emissões. Obama não tinha maioria no Congresso para aprovar mais do que isso.”

Então, em janeiro de 2017, começou o governo Trump, que, entre suas primeiras decisões, tirou os EUA do Acordo de Paris. Sua administração foi marcada pelo lobby da indústria de combustíveis fósseis e tentou mesmo dar nova vida à indústria do carvão, mola econômica do século 19. “Não conseguiu por conta da competitividade das fontes renováveis. Houve mais fechamento de usinas a carvão do que abertura de novos negócios”, diz Rittl.

Joe Biden ainda não completou 100 dias na Casa Branca, mas vem cumprindo a promessa de colocar a agenda climática no topo da lista de prioridades. Levou os EUA de volta ao Acordo de Paris, anunciou um pacote de quase US$ 2 trilhões para infraestrutura, com ênfase em energia limpa, e convocou uma Cúpula do Clima em plena pandemia de Covid-19. A despeito das crescentes tensões entre Washington e Moscou e Pequim, Vladimir Putin e Xi Jinping participaram da conferência virtual, mostrando que a questão climática se sobrepõe a antagonismos políticos.

Mais importante, Biden enfatiza que a dicotomia entre economia e meio ambiente é falsa. “Todas as vezes em que fala nos investimentos em energia limpa, Biden começa ressaltando a geração de empregos, tema caro a uma parcela dos americanos que votou em Trump no ano passado”, explica Rittl. “Se Biden conseguir colar essas duas agendas, mostrar que a economia limpa é lucrativa, vai evitar que essas políticas sejam revistas numa eventual mudança de governo.”

Nas eleições americanas de 1992, George Bush foi trucidado pela frase “É a economia, estúpido!”, cunhada por James Carville, assessor de campanha de Bill Clinton, a respeito da recessão nos EUA. Biden, que de estúpido não tem nada, sabe que continua sendo a economia, e que torná-la mais eficiente ecologicamente é o segredo do sucesso no século 21. Com sua opção preferencial pelas ecomilícias, o governo brasileiro está longe de aprender essa lição.

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24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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