O pior presidente da história

É sempre uma tarefa ingrata definir quem é um bom líder político e quem não é — e isso vale mesmo para os líderes do passado. A política é sempre percebida pelas lentes das simpatias ideológicas e, com frequência demais, o líder bom parece ser aquele com quem compartilhamos ideias. Mas há critérios objetivos, também, principalmente quando falamos daqueles que ocupam cargos de comando. Que ocupam, por exemplo, a presidência da República. Trinta e sete homens e uma mulher estiveram nesta cadeira desde a proclamação, em 1889. Alguns estiveram ali por só alguns dias — Carlos Luz, Ranieri Mazzilli. Outros foram eleitos mas não tomaram posse e, por isso, não entram na conta. Júlio Prestes foi deposto antes, Tancredo Neves morreu. Ainda assim, alguns critérios objetivos são possíveis de ser estabelecidos. A presidência, afinal, tem objetivos. De cara, a ideia é entregar um país melhor. É construir um ambiente onde as pessoas possam ter uma boa vida — uma vida, no mínimo, garantida. Dar perspectiva de futuro. E, é claro, temos de levar em consideração o contexto de cada época. Se Jair Bolsonaro é o pior presidente da história, este argumento precisa ser construído.

A história da República, desde o momento em que o marechal Deodoro da Fonseca depôs num golpe militar d. Pedro II, pode ser dividida em seis períodos: são três ditaduras intercaladas com três períodos nos quais os chefes de governo eram eleitos pelo voto popular. Como cada um destes períodos tem suas características próprias, um bom início é estabelecer qual o pior presidente de cada um deles.

A primeira ditadura foi curta, exatos cinco anos entre novembros, de 1889 a 1894. Nela houve dois presidentes, os marechais Deodoro e Floriano Peixoto. Este era um carniceiro. Governou quase o mandato inteiro mantendo o país em estado de sítio. Quando Ruy Barbosa entrou com pedido de habeas corpus para opositores presos no Supremo, Floriano resolveu o problema ameaçando os ministros da Corte de prisão. Fez coisas inacreditáveis. Por duas vezes, neste período, a Marinha do Brasil em revolta ameaçou bombardear o Rio de Janeiro, que era capital federal. Na primeira, para evitar a derrama de sangue, Deodoro renunciou ao cargo. Na segunda, Floriano desafiou os almirantes a fazê-lo. E a Marinha abriu fogo contra a cidade, botando a população desesperada em fuga. Na lida com outra revolta, a Federalista gaúcha, que exigia mais autonomia para os estados, o presidente não hesitou em dar ordem de fuzilamento sumário de 185 presos. Sem julgamento: alinhar o esquadrão, apontar, fogo. Um dos executados era um marechal do Exército. Para Floriano Peixoto, não havia lei, não havia preocupação com o povo, com as cidades. Passava por cima e pronto. Governou pela violência, nunca se estabeleceu de fato como presidente, e instável todo o tempo foi substituído pelo primeiro líder eleito do país.

A Primeira República tem muitos nomes. Getúlio Vargas a chamava de República Velha porque, afinal, a sua seria a nova. Café com Leite lembra o domínio que São Paulo e Minas Gerais tiveram a partir daquilo que produziam. República Oligárquica é um apelido mais descritivo. Se estruturou num pacto entre paulistas e mineiros com as oligarquias regionais. Os primeiros compartilhariam a maioria das presidências, em troca os governadores e chefes locais teriam garantidas suas independências. O acordo não funcionou sempre, mas o regime durou quase 36 anos. É, para padrões brasileiros, incrivelmente longevo. Ainda assim, não foi um período estável. Como a maioria das democracias do tempo, pouca gente tinha direito ao voto. E revoltas de toda sorte aconteciam, parecia, a cada ano. Revoltas militares, como a da Chibata, a dos Sargentos, o Tenentismo. Revoltas populares no campo — Canudos, Contestado. Assim como revoltas populares urbanas — a da Vacina ou as inúmeras greves em São Paulo.

Também não é difícil, neste período em que o Brasil foi governado por onze homens, pinçar o pior. É Arthur Bernardes. Se Floriano Peixoto desafiou a Marinha revoltada a bombardear o Rio de Janeiro, Bernardes ordenou ele próprio que o Exército bombardeasse São Paulo. Ele, que era um presidente eleito para um Estado constitucional, passou seu mandato trancado no Palácio do Catete porque não se sentia seguro para sair. Também passou o governo mantendo o país em estado de sítio.

Foram, ambos, presidentes que não governaram. Que não viram outra possibilidade para a resolução de conflitos que não a violência. É verdade, também, que o Brasil comandado por eles era um país muito mais pobre e desestruturado. Que o tempo, no mundo, era mais violento, e guerras, como revoltas sangrentas, eram comuns. Neste período ocorreu não só a Primeira Guerra Mundial como houve conflitos armados nos EUA, no México, em Cuba, na Argentina, na Venezuela, no Paraguai, na Espanha, na Itália, na China, na Itália, em todos os países da África que eram colônias europeias, no Império Otomano, em cada ponta do Império Britânico — e isso para não estender demais a lista. O Brasil não era tão diferente assim do resto do planeta. Mas há, dentro deste contexto, dois líderes que reagiram de forma muito pior às cartas que receberam.

Como a segunda ditadura brasileira foi tocada por Getúlio Vargas do início ao fim, não há como indicar um líder pior ou melhor. Mas na Segunda República, marcada pela Constituição de 1948, não houve pior do que Jânio Quadros. Se a principal missão de um líder democrático é preservar a democracia, nenhum outro de seu tempo traiu o projeto como ele. Quando renunciou ao cargo após sete meses, sem uma explicação convincente, Jânio tinha plena consciência de que o comando das Forças Armadas não queria e resistiria à posse de seu vice, João Goulart. Ele compreendia que deixaria o Brasil, politicamente, numa situação instável, a passos do rompimento constitucional. De fato, o gesto culminou, menos de três anos depois, num golpe de Estado.

Mais de um, entre seus auxiliares, defendem que o objetivo de Jânio era dar ele próprio um golpe. Tinha esperança de que o povo, ou políticos, ou militares, em desespero tornariam a ele, concedendo poderes de ditador, clamando pelo retorno. Se foi isso, era delírio, não aconteceu. Não é só a renúncia irresponsável, porém, que faz de Jânio um mau presidente. Ele não tinha uma visão de país e isto era algo que os presidentes do tempo tinham. Getúlio era o homem da construção do Estado, da modernização, o organizador do trabalho em corporações. Juscelino Kubitscheck emanava otimismo e mirava um futuro que fez refletir na arquitetura ousada proposta por Oscar Niemeyer para Brasília. Se foi boa a decisão de mudar a capital é um tema ainda em debate, mas aqueles edifícios anunciavam um Brasil à frente do tempo. Mesmo Jango, com sua presidência irregular e acidentada, era um herdeiro da visão de Getúlio. Jânio — nada. Não tinha uma história para contar a respeito de que Brasil imaginava, que país gostaria de entregar. Seus meses no poder, perdeu-os tentando proibir biquínis. Foi um governo medíocre, incapaz de inspirar e que custou ao país sua democracia.

No período militar, também parece fácil identificar em Emílio Garrastazu Médici o pior de todos. Com nenhum outro dos generais ditadores a diferença entre o Brasil da propaganda e o Brasil da realidade foi tão aguda. A economia, artificialmente sustentada, estava bombando no Milagre, mas no ministério todos tinham consciência de que estava para implodir. Médici não era como Jânio — ele propunha uma visão. Foi o Brasil que fez a Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói, obras gigantes e caríssimas. Assinou o acordo para Itaipú. Instalou o Mobral para alfabetizar adultos e lançou o Projeto Rondon, que convidava estudantes universitários a conhecer o país enquanto prestavam trabalho voluntário. A população era convocada a servir ao Brasil. Enquanto isso, a repressão política estava a toda. Foi o auge do AI-5, a tortura era generalizada, pessoas simplesmente desapareciam — é o caso do ex-deputado Rubens Paiva.

Há algo de cruel neste contraste. No governo anterior, de Arthur da Costa e Silva, a oposição popular estava nas ruas, em passeatas. No que o sucedeu, de Ernesto Geisel, o Congresso Nacional chegou a ser fechado. Havia ditadura e a ditadura não conseguia fingir ser outra coisa. Com Médici, não. Em nenhum outro período a violência dos porões do regime foi tão incentivada pelo Planalto enquanto se vendia ao país o presidente no estádio de futebol, radinho de pilha ao ouvido, os noventa milhões em ação. O mais próximo que o país teve de um governo totalitário — algo como o nazismo ou o stalinismo ou o governo dos Kim na Coreia do Norte — foi Médici. Um regime de terror que expõe uma cara artificialmente feliz, cravejada de símbolos nacionais, e convence boa parte da população de que tudo vai bem. Nada ia bem.

(Não se trata, aqui, de afirmar que foi como o nazismo, o stalinismo ou os Kim, porque o Brasil não teve algo do tipo em sua história. É só que nenhum presidente chegou tão perto.)

E Bolsonaro?

A história do Brasil é farta em maus presidentes. Jair Bolsonaro é uma síntese dos defeitos de seus piores. Seu instinto para resolução de problemas é o mesmo de Floriano Peixoto e Arthur Bernardes: a violência. A diferença é que, diferentemente do mundo de um século atrás, ele não pode bombardear São Paulo ou qualquer canto do país. Seria inadmissível. Mas incentiva a violência de policiais contra a população pobre assim como a violência política por parte de seus apoiadores. Mais de uma vez afirmou que o objetivo de facilitar acesso a armas é para que a população resista às decisões de governadores, o que seria inconstitucional. E como tem falado de estado de sítio.

Assim como Jânio Quadros, falta a Jair Bolsonaro uma visão de país. Ele não é um líder capaz de inspirar e não tem conseguido articular uma ideia de que Brasil considera ideal, como este país se destacaria mundialmente, com que rosto se mostraria no futuro. Tem os cacoetes moralistas nos costumes de Jânio e só. E, assim como Jânio, também eleito numa democracia a toda hora atenta contra ela. Seu filho Zero Três fala em fechar o Supremo, todos na família evocam o AI-5. E, claro, seu modelo de presidente é obviamente Médici. Bolsonaro é nostálgico de slogans como Brasil, ame-o ou deixe-o, tenta trazer para si a simbologia do presidente que gosta de futebol, além de idolatrar Carlos Alberto Brilhante Ustra, o principal torturador do tempo da Ditadura.

Mas é possível ir mais fundo no argumento de que Bolsonaro é particularmente ruim na função. Em teoria da liderança, o estudo do que faz bons líderes, uma das primeiras distinções que os especialistas apontam é a entre o líder posicional e o inspirador.

O líder posicional tem poder porque calhou de ocupar um cargo de liderança. Vale para um gerente ou para o presidente da República. Para quem não tem a capacidade de inspirar, de motivar, resta apenas o argumento do cargo. Este tipo de líder quase sempre tem consciência de sua inadequação e, por isso mesmo, não raro é autoritário. Precisa constantemente lembrar que está no poder e não tem muita percepção — ou preocupação — com o impacto de suas ações sobre os outros. O que sempre acontece com este tipo de líder é que aos poucos suas equipes de comando vão se deteriorando. Os que pensam com a própria cabeça saem, aqueles subservientes ficam. O resultado são equipes que não pensam, só obedecem. Ao invés de o time ser capaz de criar e conseguir resultados ainda maiores do que o líder sozinho seria capaz de alcançar, pela criatividade coletiva, fica só o mínimo denominador comum do alcance de visão de um líder que em geral já tem grandes limitações.

Para consultores em gestão, quanto mais alto o cargo de um líder destes, maior a ameaça que representa para a empresa. Em democracias é mais delicado. Presidentes não são demissíveis e Repúblicas não têm conselhos administrativos. No caso de Bolsonaro, um de seus principais limites é também uma característica que o faz único na história do Brasil. Nunca houve um presidente que não pelo menos ambicionasse governar para todos os brasileiros. Bolsonaro governa para os seus 20 a 30%. É uma tática que visa a eleição de 2022 — se garantir esta base, chega ao segundo turno. Não tenta ampliar seu eleitorado, aposta que num ambiente polarizado o desgosto com o adversário pode levá-lo à reeleição. É seu cálculo.

Há outros argumentos menos metafísicos — o das obrigações que vêm com o cargo, por exemplo. Ao assumir a presidência após sua eleição, o político faz o juramento escrito no Capítulo II, Seção I, artigo 78 da Constituição: o de “defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. Isto quer dizer que há uma visão básica de país que ele não escolhe, já foi definida pela Assembleia Constituinte que encerrou seu trabalho em 1988. Quer dizer, também, que ele ocupa um cargo com essencialmente três comandos. O do Estado, o do Governo e o das Forças Armadas.

Quando inventa crises artificiais com nações que antes eram amigas, ele trai sua obrigação como o chefe de Estado que chega com políticas de Estado já determinadas. É sua obrigação constitucional manter boas relações com as outras nações. Como chefe militar deve respeitar a hierarquia — o que frequentemente não faz, na constante celebração dos praças em cerimônias de formatura, como se tentasse os conquistar atravessando generais e coronéis. O movimento em direção a policiais militares, cuja revolta incentivou no Ceará contra o governo estadual, é similar. O último decreto de armas que publicou tentava tirar das Forças Armadas a capacidade de controlar a venda de armamento e munição.

Sobra a chefia de governo. A garantia das terras e da segurança dos povos indígenas é sua obrigação constitucional. Assim como é sua obrigação preservar o meio ambiente e as reservas federais. E, claro, está lá explicitamente no título VIII, capítulo II, seção II, artigo 196. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de risco de doença e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção.”

Neste momento, todas as nações do G-20 ou da OCDE têm uma política para combate à pandemia que inclui isolamento social, máscara quando sair à rua é necessário, limpeza das mãos e vacinação ampla. Quando boicota todas estas ações, quando não assegurou no ano passado amplo e variado estoque de vacinas, o presidente Jair Bolsonaro está em flagrante desobediência de uma de suas mais importantes obrigações. A de estabelecer políticas que garantam redução do risco de doença. Não é ele quem decide que políticas devem ser tomadas. São os técnicos especializados que o aconselham. Quando troca ministros seguidamente por desejar ignorar suas recomendações, há quebra de seu juramento.

Bolsonaro tem as piores características dos piores presidentes e defeitos graves que são seus próprios — a incapacidade de liderar para todos, a incapacidade de inspirar, a incapacidade de ouvir. E com tudo isto viola suas obrigações constitucionais as mais básicas de uma forma que nenhum líder desta nossa Terceira República violou.

Trinta e sete homens, uma mulher. Muitos tiveram vários destes defeitos, destas deficiências. Só Bolsonaro tem todos.

É sempre uma tarefa ingrata definir quem é um bom líder político e quem não é — e isso vale mesmo para os líderes do passado. A política é sempre percebida pelas lentes das simpatias ideológicas e, com frequência demais, o líder bom parece ser aquele com quem compartilhamos ideias. Mas há critérios objetivos, também, principalmente quando falamos daqueles que ocupam cargos de comando. Que ocupam, por exemplo, a presidência da República. Trinta e sete homens e uma mulher estiveram nesta cadeira desde a proclamação, em 1889. Alguns estiveram ali por só alguns dias — Carlos Luz, Ranieri Mazzilli. Outros foram eleitos mas não tomaram posse e, por isso, não entram na conta. Júlio Prestes foi deposto antes, Tancredo Neves morreu. Ainda assim, alguns critérios objetivos são possíveis de ser estabelecidos. A presidência, afinal, tem objetivos. De cara, a ideia é entregar um país melhor. É construir um ambiente onde as pessoas possam ter uma boa vida — uma vida, no mínimo, garantida. Dar perspectiva de futuro. E, é claro, temos de levar em consideração o contexto de cada época. Se Jair Bolsonaro é o pior presidente da história, este argumento precisa ser construído.

A história da República, desde o momento em que o marechal Deodoro da Fonseca depôs num golpe militar d. Pedro II, pode ser dividida em seis períodos: são três ditaduras intercaladas com três períodos nos quais os chefes de governo eram eleitos pelo voto popular. Como cada um destes períodos tem suas características próprias, um bom início é estabelecer qual o pior presidente de cada um deles.

A primeira ditadura foi curta, exatos cinco anos entre novembros, de 1889 a 1894. Nela houve dois presidentes, os marechais Deodoro e Floriano Peixoto. Este era um carniceiro. Governou quase o mandato inteiro mantendo o país em estado de sítio. Quando Ruy Barbosa entrou com pedido de habeas corpus para opositores presos no Supremo, Floriano resolveu o problema ameaçando os ministros da Corte de prisão. Fez coisas inacreditáveis. Por duas vezes, neste período, a Marinha do Brasil em revolta ameaçou bombardear o Rio de Janeiro, que era capital federal. Na primeira, para evitar a derrama de sangue, Deodoro renunciou ao cargo. Na segunda, Floriano desafiou os almirantes a fazê-lo. E a Marinha abriu fogo contra a cidade, botando a população desesperada em fuga. Na lida com outra revolta, a Federalista gaúcha, que exigia mais autonomia para os estados, o presidente não hesitou em dar ordem de fuzilamento sumário de 185 presos. Sem julgamento: alinhar o esquadrão, apontar, fogo. Um dos executados era um marechal do Exército. Para Floriano Peixoto, não havia lei, não havia preocupação com o povo, com as cidades. Passava por cima e pronto. Governou pela violência, nunca se estabeleceu de fato como presidente, e instável todo o tempo foi substituído pelo primeiro líder eleito do país.

A Primeira República tem muitos nomes. Getúlio Vargas a chamava de República Velha porque, afinal, a sua seria a nova. Café com Leite lembra o domínio que São Paulo e Minas Gerais tiveram a partir daquilo que produziam. República Oligárquica é um apelido mais descritivo. Se estruturou num pacto entre paulistas e mineiros com as oligarquias regionais. Os primeiros compartilhariam a maioria das presidências, em troca os governadores e chefes locais teriam garantidas suas independências. O acordo não funcionou sempre, mas o regime durou quase 36 anos. É, para padrões brasileiros, incrivelmente longevo. Ainda assim, não foi um período estável. Como a maioria das democracias do tempo, pouca gente tinha direito ao voto. E revoltas de toda sorte aconteciam, parecia, a cada ano. Revoltas militares, como a da Chibata, a dos Sargentos, o Tenentismo. Revoltas populares no campo — Canudos, Contestado. Assim como revoltas populares urbanas — a da Vacina ou as inúmeras greves em São Paulo.

Também não é difícil, neste período em que o Brasil foi governado por onze homens, pinçar o pior. É Arthur Bernardes. Se Floriano Peixoto desafiou a Marinha revoltada a bombardear o Rio de Janeiro, Bernardes ordenou ele próprio que o Exército bombardeasse São Paulo. Ele, que era um presidente eleito para um Estado constitucional, passou seu mandato trancado no Palácio do Catete porque não se sentia seguro para sair. Também passou o governo mantendo o país em estado de sítio.

Foram, ambos, presidentes que não governaram. Que não viram outra possibilidade para a resolução de conflitos que não a violência. É verdade, também, que o Brasil comandado por eles era um país muito mais pobre e desestruturado. Que o tempo, no mundo, era mais violento, e guerras, como revoltas sangrentas, eram comuns. Neste período ocorreu não só a Primeira Guerra Mundial como houve conflitos armados nos EUA, no México, em Cuba, na Argentina, na Venezuela, no Paraguai, na Espanha, na Itália, na China, na Itália, em todos os países da África que eram colônias europeias, no Império Otomano, em cada ponta do Império Britânico — e isso para não estender demais a lista. O Brasil não era tão diferente assim do resto do planeta. Mas há, dentro deste contexto, dois líderes que reagiram de forma muito pior às cartas que receberam.

Como a segunda ditadura brasileira foi tocada por Getúlio Vargas do início ao fim, não há como indicar um líder pior ou melhor. Mas na Segunda República, marcada pela Constituição de 1948, não houve pior do que Jânio Quadros. Se a principal missão de um líder democrático é preservar a democracia, nenhum outro de seu tempo traiu o projeto como ele. Quando renunciou ao cargo após sete meses, sem uma explicação convincente, Jânio tinha plena consciência de que o comando das Forças Armadas não queria e resistiria à posse de seu vice, João Goulart. Ele compreendia que deixaria o Brasil, politicamente, numa situação instável, a passos do rompimento constitucional. De fato, o gesto culminou, menos de três anos depois, num golpe de Estado.

Mais de um, entre seus auxiliares, defendem que o objetivo de Jânio era dar ele próprio um golpe. Tinha esperança de que o povo, ou políticos, ou militares, em desespero tornariam a ele, concedendo poderes de ditador, clamando pelo retorno. Se foi isso, era delírio, não aconteceu. Não é só a renúncia irresponsável, porém, que faz de Jânio um mau presidente. Ele não tinha uma visão de país e isto era algo que os presidentes do tempo tinham. Getúlio era o homem da construção do Estado, da modernização, o organizador do trabalho em corporações. Juscelino Kubitscheck emanava otimismo e mirava um futuro que fez refletir na arquitetura ousada proposta por Oscar Niemeyer para Brasília. Se foi boa a decisão de mudar a capital é um tema ainda em debate, mas aqueles edifícios anunciavam um Brasil à frente do tempo. Mesmo Jango, com sua presidência irregular e acidentada, era um herdeiro da visão de Getúlio. Jânio — nada. Não tinha uma história para contar a respeito de que Brasil imaginava, que país gostaria de entregar. Seus meses no poder, perdeu-os tentando proibir biquínis. Foi um governo medíocre, incapaz de inspirar e que custou ao país sua democracia.

No período militar, também parece fácil identificar em Emílio Garrastazu Médici o pior de todos. Com nenhum outro dos generais ditadores a diferença entre o Brasil da propaganda e o Brasil da realidade foi tão aguda. A economia, artificialmente sustentada, estava bombando no Milagre, mas no ministério todos tinham consciência de que estava para implodir. Médici não era como Jânio — ele propunha uma visão. Foi o Brasil que fez a Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói, obras gigantes e caríssimas. Assinou o acordo para Itaipú. Instalou o Mobral para alfabetizar adultos e lançou o Projeto Rondon, que convidava estudantes universitários a conhecer o país enquanto prestavam trabalho voluntário. A população era convocada a servir ao Brasil. Enquanto isso, a repressão política estava a toda. Foi o auge do AI-5, a tortura era generalizada, pessoas simplesmente desapareciam — é o caso do ex-deputado Rubens Paiva.

Há algo de cruel neste contraste. No governo anterior, de Arthur da Costa e Silva, a oposição popular estava nas ruas, em passeatas. No que o sucedeu, de Ernesto Geisel, o Congresso Nacional chegou a ser fechado. Havia ditadura e a ditadura não conseguia fingir ser outra coisa. Com Médici, não. Em nenhum outro período a violência dos porões do regime foi tão incentivada pelo Planalto enquanto se vendia ao país o presidente no estádio de futebol, radinho de pilha ao ouvido, os noventa milhões em ação. O mais próximo que o país teve de um governo totalitário — algo como o nazismo ou o stalinismo ou o governo dos Kim na Coreia do Norte — foi Médici. Um regime de terror que expõe uma cara artificialmente feliz, cravejada de símbolos nacionais, e convence boa parte da população de que tudo vai bem. Nada ia bem.

(Não se trata, aqui, de afirmar que foi como o nazismo, o stalinismo ou os Kim, porque o Brasil não teve algo do tipo em sua história. É só que nenhum presidente chegou tão perto.)

E Bolsonaro?

A história do Brasil é farta em maus presidentes. Jair Bolsonaro é uma síntese dos defeitos de seus piores. Seu instinto para resolução de problemas é o mesmo de Floriano Peixoto e Arthur Bernardes: a violência. A diferença é que, diferentemente do mundo de um século atrás, ele não pode bombardear São Paulo ou qualquer canto do país. Seria inadmissível. Mas incentiva a violência de policiais contra a população pobre assim como a violência política por parte de seus apoiadores. Mais de uma vez afirmou que o objetivo de facilitar acesso a armas é para que a população resista às decisões de governadores, o que seria inconstitucional. E como tem falado de estado de sítio.

Assim como Jânio Quadros, falta a Jair Bolsonaro uma visão de país. Ele não é um líder capaz de inspirar e não tem conseguido articular uma ideia de que Brasil considera ideal, como este país se destacaria mundialmente, com que rosto se mostraria no futuro. Tem os cacoetes moralistas nos costumes de Jânio e só. E, assim como Jânio, também eleito numa democracia a toda hora atenta contra ela. Seu filho Zero Três fala em fechar o Supremo, todos na família evocam o AI-5. E, claro, seu modelo de presidente é obviamente Médici. Bolsonaro é nostálgico de slogans como Brasil, ame-o ou deixe-o, tenta trazer para si a simbologia do presidente que gosta de futebol, além de idolatrar Carlos Alberto Brilhante Ustra, o principal torturador do tempo da Ditadura.

Mas é possível ir mais fundo no argumento de que Bolsonaro é particularmente ruim na função. Em teoria da liderança, o estudo do que faz bons líderes, uma das primeiras distinções que os especialistas apontam é a entre o líder posicional e o inspirador.

O líder posicional tem poder porque calhou de ocupar um cargo de liderança. Vale para um gerente ou para o presidente da República. Para quem não tem a capacidade de inspirar, de motivar, resta apenas o argumento do cargo. Este tipo de líder quase sempre tem consciência de sua inadequação e, por isso mesmo, não raro é autoritário. Precisa constantemente lembrar que está no poder e não tem muita percepção — ou preocupação — com o impacto de suas ações sobre os outros. O que sempre acontece com este tipo de líder é que aos poucos suas equipes de comando vão se deteriorando. Os que pensam com a própria cabeça saem, aqueles subservientes ficam. O resultado são equipes que não pensam, só obedecem. Ao invés de o time ser capaz de criar e conseguir resultados ainda maiores do que o líder sozinho seria capaz de alcançar, pela criatividade coletiva, fica só o mínimo denominador comum do alcance de visão de um líder que em geral já tem grandes limitações.

Para consultores em gestão, quanto mais alto o cargo de um líder destes, maior a ameaça que representa para a empresa. Em democracias é mais delicado. Presidentes não são demissíveis e Repúblicas não têm conselhos administrativos. No caso de Bolsonaro, um de seus principais limites é também uma característica que o faz único na história do Brasil. Nunca houve um presidente que não pelo menos ambicionasse governar para todos os brasileiros. Bolsonaro governa para os seus 20 a 30%. É uma tática que visa a eleição de 2022 — se garantir esta base, chega ao segundo turno. Não tenta ampliar seu eleitorado, aposta que num ambiente polarizado o desgosto com o adversário pode levá-lo à reeleição. É seu cálculo.

Há outros argumentos menos metafísicos — o das obrigações que vêm com o cargo, por exemplo. Ao assumir a presidência após sua eleição, o político faz o juramento escrito no Capítulo II, Seção I, artigo 78 da Constituição: o de “defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. Isto quer dizer que há uma visão básica de país que ele não escolhe, já foi definida pela Assembleia Constituinte que encerrou seu trabalho em 1988. Quer dizer, também, que ele ocupa um cargo com essencialmente três comandos. O do Estado, o do Governo e o das Forças Armadas.

Quando inventa crises artificiais com nações que antes eram amigas, ele trai sua obrigação como o chefe de Estado que chega com políticas de Estado já determinadas. É sua obrigação constitucional manter boas relações com as outras nações. Como chefe militar deve respeitar a hierarquia — o que frequentemente não faz, na constante celebração dos praças em cerimônias de formatura, como se tentasse os conquistar atravessando generais e coronéis. O movimento em direção a policiais militares, cuja revolta incentivou no Ceará contra o governo estadual, é similar. O último decreto de armas que publicou tentava tirar das Forças Armadas a capacidade de controlar a venda de armamento e munição.

Sobra a chefia de governo. A garantia das terras e da segurança dos povos indígenas é sua obrigação constitucional. Assim como é sua obrigação preservar o meio ambiente e as reservas federais. E, claro, está lá explicitamente no título VIII, capítulo II, seção II, artigo 196. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de risco de doença e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção.”

Neste momento, todas as nações do G-20 ou da OCDE têm uma política para combate à pandemia que inclui isolamento social, máscara quando sair à rua é necessário, limpeza das mãos e vacinação ampla. Quando boicota todas estas ações, quando não assegurou no ano passado amplo e variado estoque de vacinas, o presidente Jair Bolsonaro está em flagrante desobediência de uma de suas mais importantes obrigações. A de estabelecer políticas que garantam redução do risco de doença. Não é ele quem decide que políticas devem ser tomadas. São os técnicos especializados que o aconselham. Quando troca ministros seguidamente por desejar ignorar suas recomendações, há quebra de seu juramento.

Bolsonaro tem as piores características dos piores presidentes e defeitos graves que são seus próprios — a incapacidade de liderar para todos, a incapacidade de inspirar, a incapacidade de ouvir. E com tudo isto viola suas obrigações constitucionais as mais básicas de uma forma que nenhum líder desta nossa Terceira República violou.

Trinta e sete homens, uma mulher. Muitos tiveram vários destes defeitos, destas deficiências. Só Bolsonaro tem todos.

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