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Quem copia quem, afinal?

Os rappers canadenses Drake e The Weeknd já foram parceiros musicais, quando colaboraram juntos em uma música chamada The Ride (Spotify). Já Heart On My Sleeve viralizou no TikTok e atraiu milhões de visualizações em várias plataformas, como o Spotify, sendo reproduzida mais de 600 mil vezes em poucos dias. A canção, sobre a estrela pop e atriz Selena Gomez, que já namorou The Weeknd, agradou — e confundiu os fãs. A música soava como se tivesse sido cantada por duas das maiores estrelas do mundo. Na verdade, foi um artista chamado Ghostwriter que usou a ferramenta de inteligência artificial para fazer suas vozes soarem como a deles. A pedido da Universal Music, a canção foi imediatamente removida das plataformas digitais sob acusação de violação de direitos autorais e fraude.

O uso de inteligência artificial para simular vozes de artistas conhecidos e remixar músicas já existentes é a nova batalha das grandes gravadoras e artistas no mercado fonográfico. É um campo quase inexplorado e complexo, que mistura diferentes leis de direitos autorais e publicação que há décadas garantem que cantores, compositores e empresas da indústria musical recebam o seu devido crédito. Mais do que os direitos de publicação de uma obra, a proteção da propriedade intelectual vem sendo defendida cada vez mais como “criatividade humana”. É porque agora ela disputa com esse outro tipo de inteligência. A explosão da IA generativa e o avanço dessa tecnologia, para o bem ou para o mal, é recebida por alguns especialistas — e até seus próprios criadores — como um risco para a humanidade.

Em termos jurídicos, ainda não existe um limite claro em relação ao uso de gravações geradas com a tecnologia. Mas algumas regras em legislações do Reino Unido, da União Europeia e dos Estados Unidos, por exemplo, podem ser usadas para interpretar aspectos envolvendo música, IA e arte no geral. Um artigo do escritório de advocacia britânico Clifford Chance lembra que, de acordo com a lei de direitos autorais inglesa, obras geradas por IA em circunstâncias nas quais não há autor humano podem, teoricamente, ser protegidas. No entanto, o US Copyright Office, nos Estados Unidos, decidiu recentemente que a arte gerada por IA, incluindo a música, não pode ser protegida por direitos autorais, pois “não é produto de autoria humana”.

Numa segunda camada, há a distinção entre se copiar a voz ou apenas emular o estilo de um cantor ou cantora. Segundo o escritório, é improvável que, de acordo com a legislação inglesa e da União Europeia, uma maneira ou estilo de cantar de um artista seja protegido por direitos autorais. Ou seja, se uma música, criada por IA ou por imitação vocal, mimetiza apenas o estilo de um artista, isso pode não configurar plágio — e mais, ela pode até ter seus próprios direitos autorais. “Uma voz deepfake, que não copia especificamente uma performance, provavelmente não será coberta e pode até ser considerada uma obra protegida por direito próprio.” No entanto, a lei da Califórnia também reconhece que quando “uma voz distinta de um cantor profissional é amplamente conhecida e é deliberadamente imitada para vender um produto, os vendedores se apropriaram do que não é deles e cometeram um delito”. Em outros casos, se uma ferramenta copiasse melodias ou letras específicas, por exemplo, isso provavelmente constituiria violação de direitos autorais.

As ferramentas de inteligência artificial podem ser usadas para “criar” músicas de diferentes maneiras. Existem as composições geradas por IA, como partituras e acordes; gravações geradas por IA; gravações manipuladas pela ferramenta, por exemplo, sintetizadores de vocais imitativos para criar vozes deepfak; para misturar faixas e escrever letras (por exemplo, no ChatGPT). Heart On My Sleeve é um exemplo de faixa que usa IA para manipular gravações. No caso, treinar o algoritmo para imitar as vozes dos artistas com base em gravações do catálogo dos artistas. Isso, para a UMG, viola direitos autorais.

Existe um lado dessa criação artificial que reside na paixão de fãs por seus ídolos e no exercício criativo de promover parcerias que não aconteceram. Versões de deepfake de artistas conhecidos fazendo cover de outras músicas dominam as redes sociais. Tem Michael Jackson cantando The Weeknd em Die For You (YouTube), Rihanna cantando Beyoncé em Cuff It (Twitter), Ariana Grande cantando Anitta em Envolver (YouTube) e até os Beatles cantando Oasis (YouTube). Existem diversos sites e tutoriais disponíveis online para que os fãs façam seus próprios covers e músicas geradas por IA. Para a criação de covers, segundo o Music Radar, o programa mais utilizado para a tarefa é o SoftVC VITS Singing Voice Conversion (ou So-VITS-SVC). Colocando um arquivo de áudio de qualquer cantor no software, é possível realocar o mesmo timbre vocal em outra canção.

Há, ainda, inúmeras músicas criadas originalmente por bots, livres de direitos e publicadas em plataformas de streaming. E também os aplicativos que usam IA para criar músicas “originais”. Essas são as que causam mais preocupação entre as gravadoras. Segundo as empresas, esses geradores de trilhas sonoras ameaçam os artistas de carne e osso e, consequentemente, toda a indústria musical. De olho nesse cenário, uma ampla coalizão de músicos e artistas de vários países lançou a Human Artistry Campaign (Campanha de Arte Humana). O grupo definiu princípios para melhores práticas de IA e enfatizou que a proteção de direitos autorais deve ser concedida apenas a músicas criadas por humanos. Enquanto isso, a academia do Grammy anunciou novas regras para barrar a indicação de canções feitas por inteligências artificiais.

“Há muito potencial com a inteligência artificial, mas também riscos para nossa comunidade criativa”, disse Harvey Mason Jr., CEO da Recording Academy, em entrevista à BBC. “É crucial que acertemos isso desde o início, para não correr o risco de perder a magia artística que apenas os humanos podem criar”, completou. Mas há quem discorde de Mason. A cantora canadense Grimes antecipou a discussão e disse que autoriza que criadores insiram seus vocais em criações feitas usando inteligência artificial. Para isso, ela pede 50% dos royalties — a mesma fração requerida em participações orgânicas em produções de outros artistas.

Nos últimos dias, a nova “canção final” dos Beatles, anunciada por Paul McCartney, dividiu opiniões. Mas a tecnologia permitiu a extração da voz de John Lennon de uma demo antiga. Graças a esse recurso, a canção pôde ser finalizada, explicou McCartney. Os Beatles, considerados a maior banda de todos os tempos, chancelarem oficialmente a criação de uma música com a tecnologia é um passo relevante na indústria. Mas aqui está afastada a polêmica dos direitos, já que Paul recebeu a gravação de Yoko Ono, viúva de Lennon, ela estava entre várias outras composições registradas por Lennon numa fita cassete chamada “For Paul”.

As gravadoras estão jogando pesado para ganhar mentes e corações na briga. Para a Universal Music, músicas como Heart On My Sleeve levantam a questão de qual lado da história as partes interessadas no ecossistema da indústria querem estar: do lado dos artistas, fãs e da expressão criativa humana, ou do lado dos deepfakes, fraudes e negando aos artistas sua devida compensação. Falando assim, a escolha parece óbvia. Mas a cada semana surgem músicas surpreendentes geradas por IA e preocupações sobre os “danos generalizados e duradouros” de tais ferramentas para criadores de música e detentores de direitos vai sendo questionado. A própria essência da criação, na verdade. Uma música gerada originalmente por uma IA pode ser protegida por direitos autorais? Se sim, quem será o dono dela? Um artista pode “proteger” sua própria voz como forma de propriedade intelectual? O que é e qual é o futuro da criatividade? Existe mesmo originalidade? Ou tudo é cópia, referência?

Para Brian Uzzi, professor da Universidade Northwestern, nos EUA, a discussão do impacto da IA nos empregos e na inovação não está relacionada apenas ao dinheiro e ao poder, mas à morte potencial da criatividade humana. “Se os consumidores querem apenas gratificação imediata e os empresários querem lucros, o Drake fake e seus semelhantes são o futuro lógico nos campos criativos”, explica. No entanto, a inovação, segundo ele, é o que mantém a raça humana à frente de seus próprios problemas. “Se os humanos não exercitarem sua criatividade ou não forem recompensados por isso, a criatividade será perdida — perdemos o que não usamos, assim como os músculos.” Entre as soluções possíveis para o que ele chama de “crise de criatividade”, está a possibilidade de atualizar a concepção de propriedade intelectual e atualizar as leis de patentes, que foram criadas para proteger os “pequenos criadores” e incentivar a inovação.

Vale lembrar que a regulamentação da própria IA no mundo caminha a passos largos, considerando o rápido avanço da tecnologia. Nesta semana, a União Europeia, por exemplo, aprovou a versão inicial do projeto que visa regular o uso de inteligência artificial no bloco. Se aprovadas — o que pode ocorrer até o fim do ano —, as regras só devem entrar em vigor a partir de 2025. O ponto central da proposta é proteger a humanidade contra quaisquer ameaças da IA à saúde e à segurança e proteger os direitos e valores fundamentais.

Em março, uma carta aberta assinada por mais de 1.300 cientistas, empresários de tecnologia e representantes do meio acadêmico pediu que os experimentos com IA fossem pausados. Entre os signatários estão Elon Musk, instituições de Oxford, Cambridge, Stanford, Columbia, além de empresas como Google, Microsoft, Amazon e até o historiador Yuval Noah Harari. O “pai” do ChatGPT, Sam Altman, fundador da OpenAI, defende que a regulamentação da inteligência artificial é essencial e se diz preocupado com a rápida evolução da tecnologia. Ele e outros cofundadores da empresa alegam que as autoridades atuais não são capazes de acompanhar o ritmo acelerado de crescimento da IA e propõem a criação de um órgão internacional para regular a tecnologia. Conhecido como o “padrinho” da inteligência artificial, Geoffrey Hinton se demitiu do Google em maio, dizendo que se arrepende do seu trabalho e alerta sobre os crescentes perigos da tecnologia.

A inteligência artificial matará a criatividade humana? Para especialistas como Brian Uzzi, analisar os prós e contras da criatividade impulsionada pela IA parece ser o caminho. Para isso, é preciso levar em consideração as várias partes interessadas, como consumidores, criadores e outros. “Vamos começar o diálogo agora, antes que a IA faça isso por nós.”

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