Lula reorganizou a direita

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Qual o grande fato político do Brasil nesta semana?

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O depoimento de um ex-presidente da República e seus asseclas, acusados de tramar um golpe de Estado?

O protesto convocado por um pastor para defender esses golpistas?

A fuga de prisioneiros de um presídio de segurança máxima, colocando em xeque a política nessa área tão sensível para o atual governo?

Ou, ainda, a reunião de chanceleres das 20 nações mais poderosas do planeta em pleno Rio de Janeiro, sob comando do Brasil, pela primeira vez?

Não. A fala do presidente Lula sobre o massacre que Israel está promovendo em Gaza conseguiu ofuscar tudo isso, dar munição para a extrema direita lá mesmo de Israel e botar gente como a deputada Carla Zambelli em posição de pedir um impeachment… um pedido absolutamente infundado, claro, mas ainda assim um instrumento de pressão política.

Tratar das consequências internas da comparação que Lula fez entre o Holocausto e Gaza é muito importante, até para quem está defendendo que o presidente tem razão compreender o tamanho do problema desse discurso.

Primeiramente, não adianta tentar dizer que Lula não falou de Holocausto, mas de Hitler. Uma coisa não existe sem a outra, e qualquer pessoa com o mínimo de honestidade intelectual entende que o presidente quis dizer que Benjamin Netanyahu e o governo de Israel estão fazendo com os palestinos o que Adolf Hitler fez com os judeus: ou seja, promoveu, inicialmente, um apartheid, depois, um genocídio.

Hoje mesmo a jornalista Mônica Bergamo publicou um manifesto de um coletivo de judeus em apoio a Lula, admitindo que, para esse grupo, essa comparação faz sentido, porque ecoa algo que está em seu imaginário. Eles dizem o seguinte: “A contradição do povo judaico ser ora vítima e agora algoz é palpável, tenebrosa e desalentadora. Lula externou o que está no imaginário de muitos de nós”. Parece ser uma posição minoritária. Outras entidades judaicas aqui no Brasil, como a Conib, foram na mão contrária, condenando com veemência a comparação e apontando seu despropósito.
Também saiu notícia de que Lula disse a ministros que sua fala não foi improvisada, mas parte de uma estratégia para conter a “sanha assassina de Israel contra civis palestinos”. Seus defensores, oficiais e militantes, garantem que essa fala vai mudar o patamar das conversas globais sobre Israel e Gaza, aumentando a pressão para que aconteça um cessar-fogo. Analistas apontam que o risco é justamente o oposto, de Netanyahu conseguir mobilizar apoios porque a comparação indevida une os judeus, no mundo todo, coisa que ele mesmo nem de longe consegue fazer.

Cada um de nós que está absolutamente revoltado com as imagens e os relatos que vêm de Gaza, com aquelas cenas de morte, destruição, dor, tragédia, por mais que também tenha se horrorizado com o ataque terrorista brutal do Hamas a Israel, está desejoso de um cessar-fogo, de um fim pra essa violência descomunal.

Mas existem níveis em que essa conversa sobre como o Brasil se relaciona com outros países é tida. Você, a tia do zap, os amigos do futebol, as pessoas comuns podem falar o que quiser sobre isso, discutir se genocídios são ou não comparáveis, fazer botequismo sobre o que o chefe de Estado quis dizer, sobre por que Lula quer bater de frente com Netanyahu e não com Vladimir Putin, outro líder de extrema direita absurdamente violento e imperialista. Nessa camada, o debate pode verter ainda pro lado da militância. O sujeito vai defender Lula ou atacá-lo independentemente do mérito de sua fala. É do jogo das liberdades individuais e de opinião.

Pesquisadores, acadêmicos e especialistas já se preocupam mais em basear a discussão em conceitos, na História, em consensos científicos que definem o que é uma coisa, o que é outra. É assim que se estabelecem as leis e os tratados internacionais que deveriam guiar as guerras e, posteriormente, eventuais condenações que nações que os desobedeçam venham a sofrer. É para isso que existe o Tribunal de Haia, por exemplo.

Tem um terceiro nível que é o da diplomacia. Embaixadores, negociadores que atuam em nome de seus países, precisam agir e falar com extrema cautela, para evitar melindres que descambem em conflitos e crises. Ao mesmo tempo, precisam agir e falar de forma eficiente para avançar agendas, conseguir resultados. É um dos trabalhos mais delicados do mundo, e dos mais necessários, porque quando feito com eficácia pode evitar guerras, articular acordos. E é isso que impede a barbárie. A diplomacia é a arte de uma política desprovida de paixões, de arroubos. Ela pode parecer lenta ou até inócua. Mas quando bem praticada movimenta o mundo no sentido da civilização. Da convivência pacífica. Dos pactos.

E, por fim, existe o nível da política. Dos chefes de Estado, presidentes, primeiros-ministros. Idealmente, ele (e vou falar no masculino porque, né?), mas idealmente esse chefe de Estado se coloca no mundo conciliando, em alguma medida, os outros três níveis. É natural que ele emule um tanto do sentimento de seu povo, dos cidadãos comuns. É até previsível que ecoe um pouco da militância que o apoie, embora não seja desejável.

Mas, proporcionalmente, um presidente deve privilegiar em sua postura os níveis dos especialistas e dos diplomatas. É evidente que a política pura constitui, por si só, uma quarta camada, porque engloba, ao mesmo tempo, o que o líder quer projetar para seu público interno com o pragmatismo dos interesses externos da nação, para fazer andar e valer estratégias políticas mais complexas, de que a diplomacia sozinha não dá conta. Só que não se pode abrir mão dela nesse esforço. E nem ignorar o que essa política externa provoca na política interna.
Cá entre nós, Lula parece ter ignorado. Ou subestimado. É disso que eu quero falar hoje. Fica aqui comigo.

Lula falou que o que acontece hoje em Gaza só tem paralelo histórico com o que Hitler fez com os judeus na Etiópia, depois de uma semana imerso em reuniões com líderes de países africanos e no Egito. Sua viagem é parte do esforço que ele empreende desde seu primeiro mandato: articular uma aliança entre os países do Sul global, tendo o Brasil como um de seus protagonistas. Seja por razões socioeconômicas, geopolíticas ou ideológicas, Lula persegue esse objetivo na arena internacional e não esconde esse desejo.

Acontece que o Sul global é zona de influência de Rússia e China. E isso, na prática, se alinhava ideologicamente com as ideias anti-imperialistas da esquerda brasileira nos tempos da Guerra Fria. Tudo que se configurava contra os Estados Unidos serviu o propósito da esquerda na luta. E a antiga União Soviética e a China comunista lideravam isso.

O mundo deu tantas voltas, mas tantas voltas nas últimas três décadas que esse jogo está completamente embaralhado. Muitos ainda não compreenderam que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, não é só um ditador. Ele é da extrema direita. Assim como Netanyahu, Bolsonaro… Não compreenderam ou preferem não admitir para poder sustentar ideologicamente a aversão ao imperialismo americano e europeu.

Mas a geopolítica atual é tão complexa que permite aberrações como Donald Trump, um dos líderes mais perversos da extrema direita de que se tem notícia, ser um entusiasta confesso de Putin. Duvida? Dá uma olhada no que Tucker Carlson, trumpista raiz, vem falando das maravilhas russas para os espectadores da direita nacionalista americana. É de ficar boquiaberto, gente.

Bem, Israel está nessa equação. Tem um governo de extrema direita, é aliado dos Estados Unidos e está cometendo toda sorte de crimes contra a humanidade em Gaza. Conta com o apoio histriônico das direitas nacionalistas e fundamentalistas religiosas pelo mundo. Aqui no Brasil, é muito comum ver líderes religiosos, especialmente evangélicos, evocando Israel numa mistura que confunde, propositadamente, ideologia e fé.

Vamos supor que seja verdade que a fala de Lula não tenha sido um escorregão, um erro, um improviso. Que tenha sido uma opção estratégica. Quando Lula escolhe assumir para si o papel de verbalizar uma ideia tão divisiva, para dizer o mínimo, ele entrega para essa direita fundamentalista brasileira algo de que ela estava muitíssimo carente: unidade.

Jair Bolsonaro nunca esteve tão próximo de uma acusação formal por seus crimes. Investigado em muitas frentes, o cerco se fechou no quesito golpe de Estado de uma maneira bastante importante com as operações mais recentes da Polícia Federal e as provas coletadas a partir da delação de Mauro Cid e dessas incursões. O desespero foi tamanho que Silas Malafaia, uma das lideranças mais estridentes dos evangélicos que se embrenham com política, convocou um protesto na Av. Paulista.

Malafaia vem sendo ambíguo sobre como tratar a fala de Lula e tirar proveito dela politicamente.  Por um lado, se declarou contra o convite do embaixador de Israel para a manifestação, dizendo que isso tiraria o foco do protesto. Por outro, disse que Lula não deu um tiro no pé com os evangélicos ao fazer a comparação, mas na cabeça. E articula uma nota de repúdio a ser assinada por mais líderes religiosos contra Lula.

Bolsonaro é bem menos ambíguo.  A ideia de chamar o embaixador de Israel pro protesto partiu de seu advogado, Fabio Wajngarten. Nas redes sociais, o ex-presidente vem exaltando sua aliança com Netanyahu, sua devoção a Israel. Malafaia admitindo ou não, a pauta de Israel deve pintar na Paulista.

Não só isso. Mais de 90 deputados, incluindo 20 de partidos que se dizem da base, mas são pouco fieis, se mobilizaram para articular um descabido pedido de impeachment de Lula. Ele não deve prosperar. Mas sabe o que isso provoca, na prática? Um extemporâneo empoderamento de Arthur Lira, presidente da Câmara, num momento em que ele não estava com essa bola toda.

O presidente da Câmara é quem controla o fluxo desses pedidos. E Lira não terá qualquer pudor em usar esse movimento para se colocar em posição de vantagem na negociação com o Planalto, ainda mais depois de Lula tirar recursos das emendas que são tão caras a Lira e seu grupo político.

Tudo isso num momento em que o bolsonarismo deveria estar fragilizado. Desunido. Sem rumo.

Eu nem acho que, como defende Celso Amorim, o efeito da fala de Lula no cenário internacional é esse de mobilizar a opinião pública contra Israel. Isso já vinha acontecendo pela aberração do que se vê em Rafah, por exemplo, por si. Há tantas maneiras de condenar Netanyahu sem ter de recorrer a Hitler, ao Holocausto. Parece um misto de ingenuidade com soberba fazer isso. A comparação enfraquece e desqualifica o Brasil como mediador isento de conflitos internacionais.

Mas, ainda que tivesse o efeito propagado por Amorim, em que medida ele valeria a pena diante do que faz com a direita no cenário doméstico? Essa fala de Lula aliena a maior parte dos judeus progressistas e reorganiza a extrema direita e o Centrão no Brasil. Prova disso é que a oposição se organizou nas redes tão rapidamente, como mostra pesquisa da Qaest, que 90% das menções sobre o tema foram negativas a Lula.

Politicamente, o custo interno é muito alto. Lula já tem tido imensa dificuldade em emplacar, na opinião pública, o que considera conquistas de seu governo. Seus índices de aprovação oscilam dentro da margem de erro. Falei recentemente aqui de como ele vinha mantendo um índice interessante de aprovação entre evangélicos, o que poderia significar que esse público não estava tão avesso a ele quanto os líderes religiosos queriam fazer parecer. O efeito dessa posição anti-Israel nessa parcela da população ainda está para ser medido.

Lula tem muitas maneiras de exercer sua almejada influência política internacional. O meio ambiente é uma delas. Caso queira muito se embrenhar em disputas e guerras entre outros países, há um caminho correto para se fazer isso. É pela defesa incondicional dos direitos humanos. Ela é tão nobre, tão ampla, que abarcaria a solidariedade expressa com o povo judeu que sofreu a inenarrável violência do dia 7 de outubro quanto a desumana represália contra o povo palestino. Só que nela teria de caber a condenação de Rússia, China e Venezuela.

Sabe, a Declaração Universal dos Direitos Humanos nasceu na esteira dos horrores do Holocausto, um ato de desumanidade tão incomparável que resultou num pacto global para que nada sequer parecido com aquilo se repetisse. Se Lula quer usar sua voz de potencial líder do Sul global e da esquerda mundial para ajudar Gaza, que recorra a esse pacto, não à singularidade do ato que a motivou. A dignidade humana está sendo claramente violada em Gaza. Disso não há dúvida e contra isso a extrema direita não tem como espernear.

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