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Quem vai pacificar o Brasil?

Cá entre nós: se tem uma palavra que anda maltratada e viciada na política brasileira é “pacificação”. Vira e mexe um dos governadores de direita que tentam herdar os votos bolsonaristas aparece pedindo paz, reconciliação, mas sugere que o único instrumento pra isso é a anistia, o perdão a quem tacou fogo na República. Parece bonito. Parece até gesto de grandeza. Mas, quando a gente olha de perto, não passa de fumaça marqueteira.

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Pacificar, no vocabulário dessa direita oportunista, significa absolver a tentativa de golpe, mais uma, virar a página sem responsabilização e, mais do que isso, seguir falando apenas com os seus.

Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado, Ratinho Jr. — todos repetem o refrão da pacificação. Mas basta olhar suas agendas para perceber o alcance dessa promessa. Tarcísio tem se reunido com banqueiros, CEOs, investidores estrangeiros, lideranças evangélicas. Caiado é figura carimbada em convenções evangélicas e eventos empresariais. Ratinho Jr. frequenta encontros de empresários, jantares políticos e até foi ao Vaticano.

Tarcísio de Freitas governa São Paulo com os votos (e os aplausos) de uma coalizão ampla de direita – que inclui Republicanos, o PSD de Gilberto?Kassab, União Brasil, MDB, PP, Avante, Podemos, PROS, Solidariedade e Patriota. Em Goiás, Ronaldo Caiado chegou à reeleição com respaldo forte do União Brasil e teceu aliança com MDB, PP e Republicanos, além de aparente simpatia do agro?—?um agrupamento que reforça seu protagonismo no campo de direita.

É óbvio que uma cidade, um estado ou um país em que há maioria parlamentar de um tipo não existe a necessidade de um governante formar frentes amplas para garantir governabilidade. Essa abertura de novos espaços num governo para outros partidos e atores políticos só se faz necessária onde essas outras correntes tenham, de fato, força política e eleitoral. Também não é desprezível que a maioria da população brasileira esteja situada ideologicamente do centro para a direita e esses governadores não se sintam pressionados a ampliar a interlocução com movimentos mais progressistas.

Agora, depõe muito contra esses paladinos da pacificação o hábito de só falar com os seus. De fazer política só pra dentro de seu campo ideológico, nunca pra fora — algo que se cobra incessantemente da esquerda.

Fazendo uma análise da agenda do último ano deles, do que ficou público, claro, você não encontra reuniões com representantes de movimentos de base social como o MST, o MTST, ou de religiões de matriz africana. Entidades da sociedade civil dedicadas a discutir segurança pública de forma crítica a seus governos também ficam de fora dos convescotes.
É pacificação só dentro da bolha — e guerra fria com o resto da sociedade. Não existe diálogo verdadeiro quando se fala apenas pra plateia amiga, né?
É claro que nos níveis dos secretariados a coisa é diferente. Não se faz política pública de assistência social em estado algum sem ouvir organizações que trabalham com direitos humanos, por exemplo.

E nesse sentido cabe um paralelo e uma crítica ao presidente Lula — que ainda não abriu as portas de seu gabinete de forma exuberante a lideranças evangélicas, com quem ele precisa seriamente se comunicar, enquanto elas têm sido recebidas por seus ministros, na tentativa de ampliar esse alcance.

Parte da esquerda construiu um cordão sanitário contra a extrema-direita — o que é mais do que necessário. Mas confundiu isolar o extremismo com rejeitar o diálogo com quem paira ao seu redor. Resultado: há setores inteiros da sociedade que ficam encastelados, inundados no discurso bolsonarista, sem serem sequer tocados pelo discurso da centro-esquerda.
Mas os governadores de direita não têm o pretexto do cordão sanitário, porque se lambuzam de bolsonarismo constantemente pra garantir sua viabilidade eleitoral. Usam seu poder e seu cargo pra pregar uma paz extremamente seletiva e somente quando lhes convém.

Foi o caso de Tarcísio esta semana, num discurso com cara de pregação de quase duas horas na Igreja Batista da Lagoinha, em São Paulo. Era um evento para “empreendedores cristãos”, aquela turma que deu muita liga com Pablo Marçal. Tarcísio foi lá conquistar potenciais votos que já são seus. O governador de São Paulo não falou a palavra pacificação, mas voltou a tratar de Jair Bolsonaro, sem mencioná-lo diretamente, com a seguinte frase: “a humilhação de hoje será a justiça de amanhã“.

Já Caiado deu uma entrevista uma semana atrás ao UOL em que voltou a tratar do tema pacificação exatamente nos termos da anistia a Bolsonaro e aos condenados pelo 8 de Janeiro. Certo. E os 55% dos brasileiros que, segundo o Datafolha, são contra a anistia? Vão se sentir pacificados?

Não dá para falar de pacificação de um país dividido sem um olhar honesto sobre os números. Teve uma pesquisa do DataSenado, em junho do ano passado, feita com mais de 21 mil entrevistados, mostrando que apenas 15% dos brasileiros se identificam como de esquerda e 29% como de direita — ou seja, nesse levantamento a direita é o dobro da esquerda, mas os dois juntos ainda mal representam a metade dos eleitores. Olha só: 40% não se identificam nem com a direita, nem com a esquerda, e nem com o centro. Aí, uma pesquisa do Ipec, também de 2024, chegou a números parecidos: 24% de direita e somente 11% de esquerda, com ampla dispersão no meio.

Chega 2025 e um levantamento da Quaest, de abril, mostrou que 19% se dizem petistas, mas há um bloco à esquerda — cerca de 12% — que se identifica como esquerda mas não apoia o PT. Na direita, 21% se definem como direita, mas sem alinhamento com Bolsonaro. Ou seja: a polarização existe, mas ela não é absoluta e nem só em torno de PT e Lula ou extrema direita e Bolsonaro — tem muito eleitor fora desse jogo.

Pois como é que vai se construir pacificação falando pra um espectro só o tempo todo? A esquerda já está cansada de saber que precisa de alianças à sua direita pra se eleger e, depois, pra governar. Tem sido assim desde 2002, na primeira vez que Lula chegou ao poder. Com seus muitos erros e acertos, ele voltou 20 anos depois usando a mesma prática, ou a retórica sobre ela.
A gente teve um governo de extrema direita que puxou todo o espectro político pra seu polo. Os políticos que disputam o espólio bolsonarista tendem a se sentir confortáveis falando só ali, para conservadores, para o mercado financeiro que tem para eles sempre os braços e bolsos abertos.

Agora, isso é genuinamente democrático? É querer mesmo pacificação?

Usando aqui um jargão de quem pede desculpas nas redes sociais, “quem me conhece sabe” que eu sou grande defensora da real politik. De um certo grau de pragmatismo nas escolhas que protagonistas políticos têm de fazer pra conseguir navegar no mar de Brasília, que, olha, é turbulento, viu? Fazer oposição é parte da coisa toda. Como eu tenho dito, políticos politicarão.
Agora, eu também sou grande defensora da democracia, mais que tudo. E não consigo imaginar muita pauta progressista sendo simplesmente ignorada, ou pior, revertida, porque esses políticos da direita passaram a se sentir tão confortáveis assim, a ponto de praticamente ignorar que elas existem.

Há quem acuse ainda o Supremo Tribunal Federal de não ajudar a pacificar a política. Mas esse é o papel do STF? Desconfio que não. A literatura sobre democracias mostra que cortes constitucionais são guardiãs da Constituição, e seus ministros são como árbitros das regras do jogo. Ao decidir impasses, podem até reduzir tensões. Mas, quando tentam se colocar como protagonistas da pacificação, correm o risco de virar parte do conflito, e não freio dele.

A pacificação verdadeira nasce do próprio jogo político, dos pactos difíceis, dos consensos mínimos entre adversários. Acima de tudo, da disposição desses adversários em conversar.

E, afinal, onde vemos chances de pacificação real? No Congresso. Foi assim com a Reforma Tributária, aprovada por maioria esmagadora, unindo partidos que raramente concordam em algo. Foi assim com a PEC da Transição, que abriu espaço fiscal para o governo e recebeu votos de quase todo o espectro político. Foi assim na resposta emergencial às enchentes no Rio Grande do Sul, quando Câmara e Senado correram para aprovar verbas e medidas de apoio. Tende a ser assim, ou deveria ser assim, numa legislação para proteção de crianças nas redes sociais. Até na moção de repúdio aos ataques terroristas do Hamas, aprovada por unanimidade, houve espaço para um consenso raro.

A Constituinte de 1988 foi fruto de uma composição ampla: esquerda, centro e até setores da direita que vinham da ditadura se sentaram à mesa. E deram ao Brasil a Constituição que ainda hoje sustenta e rege nossa democracia.

Esses são momentos em que a esquerda e a direita se encontram não para proteger seus flancos, mas para responder a necessidades concretas do Brasil. Aí está a pacificação que interessa: aquela que olha para o país real, e não para a autopreservação das bolhas políticas.

Um caminho de pacificação política seria a ampliação do cordão sanitário incluindo candidatos da direita, sabe? Como bem apontou o incrível Sérgio Abranches em entrevista que deu pra mim e pro Pedro Doria, um campo majoritário, o da direita, não precisa dos votos do minoritário, que é a extrema direita. Esses votos virão naturalmente.

O Brasil de hoje precisa dessa maturidade. Precisa entender que pacificar não é encenar conciliação com extremista diante da própria bolha. Pacificar é atravessar fronteiras. É chamar para a mesa quem pensa diferente. É reconhecer que setores inteiros da sociedade — agronegócio, evangélicos, movimentos sociais e progressistas — não vão desaparecer, e que ignorá-los só os deixa reféns do extremismo. Se quisermos paz de verdade, vamos precisar olhar para além da própria plateia.

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