O Brasil velado em ‘O Agente Secreto’

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Um bom filme não precisa escancarar a realidade nua e crua, chocando e provocando fortes emoções no público. Pode fazê-lo, mas não é o único caminho. Com perspicácia e sensibilidade, é possível dizer tudo isso e muito mais, sem necessariamente ter de dizer. Kleber Mendonça Filho reconta um naco de nossa história sob o ponto de vista do Brasil velado em seu novo filme O Agente Secreto, premiado no Festival de Cannes, representante brasileiro no próximo Oscar, e que estreia no circuito nacional de cinemas em 6 de novembro. Com enredo se passando na Recife de 1977, em pleno regime militar, é fácil para o espectador pensar, à primeira vista, que a película trata da ditadura, que teve fim apenas em 1985. Mas observando com cuidado, desvela-se um Brasil tão atual que assusta. O diretor e roteirista diz muito sobre isso ao longo da obra, sem precisar falar escancaradamente. Aliás, o termo “ditadura” não é dito uma única vez ao longo das quase três horas de filme.
O thriller é construído para mostrar a tensão de uma época marcada pela repressão, enquanto tempera a trama com momentos cômicos, que dá mais suavidade ao filme. No enredo, Marcelo, com uma atuação impecável de Wagner Moura, é na verdade Armando, um especialista em tecnologia que misteriosamente teve de sair de São Paulo para o Recife em busca de paz. Mas em pouco tempo ele descobre que a mudança de estado não lhe trará o que realmente esperava.
O enredo do filme gira em torno do personagem de Wagner Moura, que mais uma vez mostra todo seu talento, ao montar uma personalidade única para o novo papel. Mesmo em momentos mais explosivos, não se vê resquícios de um Capitão Nascimento, que o consagrou em Tropa de Elite, ou dá o mesmo tônus empregado em Sergio, quando deu vida ao diplomata brasileiro Sergio Vieira de Mello, em um filme cheio de tensão e riscos dirigido por Greg Barker. Aqui, Wagner demonstra uma maior maturidade na construção de seu personagem, adaptando-se muito bem ao ritmo e densidade do roteiro proposto por Kleber Mendonça Filho. Como Marcelo, Wagner performa com sutileza, tensão, intensidade e humor a cada cena, mostrando por que foi eleito o melhor ator no Festival de Cannes e é um dos favoritos ao Oscar 2026.
Delegado Euclides
Um personagem que serve ao filme para mostrar essas nuances é o delegado Euclides, vivido por Robério Diógenes. A cena em que ele aparece num “passeio”, forma mascarada de chamar execução de suspeitos por crimes, no filme, poderia muito bem ser o retrato do Mão Branca, grupo de extermínio formado por cinco policiais civis, que aterrorizou a cidade de Campina Grande, na Paraíba, nos anos de 1980. O foco era pessoas ligadas a crimes, que compunha uma lista de 115 nomes marcados para morrer. Mão Branca era formado por Chico Alves, Antônio Gonçalves (Temporal), Cícero Tomé, José Carlos (Cacau) e Zezé Basílio, este último o único membro a ser condenado e preso pela prática. O mesmo vale para o Esquadrão da Morte, grupo paramilitar formado em 1968 por policiais em São Paulo visando perseguir e executar criminosos potencialmente perigosos. Ou das ações policiais corriqueiras, que mata negros e pobres nas periferias, sempre como um “caso isolado”, além de operações desastrosas, que matam inocentes, suspeitos e bandidos na mesma leva.
Impossível ver a cena com o depoimento de dona Cleide ao delegado e não se lembrar do caso da “patroa do elevador”, coincidentemente também ocorrido em Recife, neste caso, em 2020. Na trama fictícia de Mendonça Filho, Cleide é uma mulher residente em um prédio de luxo, que deixa o filho da empregada sozinho, quando o menino sai para a rua sem supervisão de um adulto e morre atropelado. Cleide chega ao depoimento como vítima, que apenas descuidou-se, sem responsabilidade pelo óbito. Na vida real, o menino Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, caiu do 9º andar de um prédio de luxo no Centro do Recife, que deveria estar aos cuidados de Sari Corte-Real, enquanto a mãe da criança passeava com o cachorro da casa a mando da patroa. Era tempos de pandemia e mesmo o serviço doméstico não sendo considerado essencial, e com a creche fechada, a doméstica precisou continuar trabalhando com medo de perder o emprego, quando levou o filho consigo. Sari foi condenada a 8 anos e 6 meses de prisão por abandono de incapaz com resultado morte, mas aguarda o esgotamento dos recursos na Justiça em liberdade.
Também vale observar o interesse de Euclides pelo alfaiate da cidade, interpretado por Udo Kier. O delegado faz questão de levar seus subordinados a uma visita indesejada e ressaltar que o velho alemão foi soldado da Segunda Guerra. Sua ênfase pode dar a entender que a admiração vem do fato de que um soldado alemão desse período era um militar nazista. Isso fica mais claro quando um dos costureiros fala, em alemão, que o alfaiate deveria preservar sua honra, já que ele era judeu, apesar de ter de lutar pela Alemanha na guerra. O delegado não sabe dessa parte.
A perna insistente
Mendonça Filho usa uma perna como metáfora para o passado tortuoso do Brasil, que insiste em voltar, ainda que se tente enterrá-lo a todo custo, especialmente o horror da ditadura. Logo nas primeiras cenas da película, uma perna é encontrada dentro de um tubarão encontrado morto. A polícia é chamada para investigar, mas em pouco tempo percebe-se que o membro conta muito da história do nosso país e das tentativas de se apagar o que foi o regime militar. Conforme a perna reaparece, é como se o diretor quisesse mostrar, não só como os desaparecidos desse período continuam sendo lembrados, mas como a sociedade ainda questiona o Estado brasileiro por respostas às vítimas do regime. E como a arte é fundamental para seguir cobrando.
O membro acaba se tornando uma espécie de figura folclórica, ao ser noticiada constantemente nos jornais, com supostos ataques da Perna Cabeluda em diferentes espaços, como um parque. Nessa cena, vale notar que a perna teria agredido dois homens que se beijavam em praça pública. O fato, que ocorre até nos dias de hoje, é atribuído ao membro com vida própria, mas sabemos quem faz isso na vida real.


