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Misteriosamente, o afoxé sobrevive

O Bar do João fica de frente para o Dique do Tororó, único manancial natural de Salvador, onde pousam os orixás do artista plástico Tatti. As estátuas de sete metros representam Oxalá, Iemanjá, Oxum, Ogum, Oxóssi, Xangô, Nanã e Iansã. Outras quatro, menores, circundam a calçada, representando Oxumaré, Ossain, Logun-Edé e Ewá. Ao lado do bar, sobe-se a escadaria da Ladeira de Nanã. É um dos acessos ao Engenho Velho de Brotas, bairro com quase 26 mil habitantes, onde 84,71% das pessoas se declararam pardas ou negras no censo realizado em 2010. Naquele 8 de outubro de 2018, a proteção dos orixás não salvou a vida de Romualdo Rosário da Costa, 63 anos, o Mestre Moa do Katendê.

Quem é do afoxé sabe que o endereço é sagrado. Nanã é a orixá dos mangues e do pântano. É dela a chave dos portais da encarnação, desencarnação e reencarnação, a “dona da morte” ou a “dona da vida”, considerando os planos da existência da fé espírita. O afoxé Badauê nasceu ali, inventado pelo Mestre Moa e seu grupo de amigos. Compositor, percussionista, artesão, um dos maiores na capoeira de Angola, seu nome está marcado no grafite colorido no muro que ladeia os degraus de concreto: “Moa vive”. Foram 12 facadas de intolerância política que levaram a sua vida, logo após a votação do primeiro turno em 2018, do qual saíram Jair Bolsonaro e Fernando Haddad para a disputa da segunda fase. Moa foi morto por defender Haddad. O autor do crime era bolsonarista. Mas um pouco de Moa havia morrido antes. Era o “mistério” de seu afoxé que surgiu em 1979 e desfilou, pela última vez, em 1992. A explosão do Badauê havia sido foi tão brilhante que deixou marcas na música brasileira. Sua música foi parar no álbum Cinema Transcendental, lançado por Caetano Veloso em 1979. A letra era simples: “Misteriosamente, o Badauê surgiu. Sua expressão cultural o povo aplaudiu”, repetia. Na época, Caetano pediu ajuda ao amigo Antônio Risério, antropólogo e autor do livro Carnaval Ijexá, para localizar o anônimo autor da música que embalou o carnaval, pegar nome, endereço e CPF, dar os devidos créditos e mandar depositar os direitos autorais.

O carnaval da Bahia devia muito a Mestre Moa. O “moço lindo do Badaduê”, cantado por Caetano na canção Beleza Pura, também devia sua fama a ele. A canção faz referência ao dançarino Negrizu, que se apresentava no bloco e se orgulhava: “O vento me fazia compor o movimento”, diz. Ele ainda se define como “filho do Badauê”. “É o que sou hoje”, diz, em entrevista à TVE da Bahia. O bloco também inspirou Clara Nunes na canção Ijexá, de Edil Macedo e Paulo César Pinheiro. Moraes Moreira cantou o bloco em Eu sou o Carnaval. “Toda cidade vai navegar no mar azul Badauê”, diz o refrão.

O Badauê foi um cometa, que bebeu e lançou luz às raízes da cultura negra da Bahia. Bebeu do Ilê Ayiê, ao mesmo tempo que abrilhantou seus festivais. Bebeu do Filhos do Congo, ao mesmo tempo que dividiu os olhares com um dos afoxés mais tradicionais da Bahia. Bebeu dos Filhos de Gandhy e muito do seu surgimento se deu na onda do “tapete branco” que flutuava, em 1972, pelas ruas de Salvador com o prestígio de ter a música Filhos de Gandhi, composta por Gilberto Gil.

Cadê a fantasia?

Hoje, a despeito da dificuldade de autofinanciamento de alguns afoxés, o carnaval da Bahia ainda deve muito a eles. A indústria do carnaval que desfila do Farol da Barra até Ondina atrai tudo: artistas, grandes empresas, verbas públicas, marcas de cerveja, bancos públicos e privados, mídia
e redes sociais. Um universo que não se vê presente na mesma proporção, salvo raras exceções, nas manifestações mais originais de resistência negra na cidade. “Existem cerca de 30 afoxés hoje em Salvador. Nesse carnaval, devem sair em torno de uns 10 ou 11”, disse Ednaldo Santana Santos, o Nadinho do Congo, que lidera a 3ª geração do afoxé mais antigo da Bahia, o Filhos do Congo.

Quando recebeu a ligação do Meio, o doutor Nadinho do Congo, advogado, professor, negro de pele retinta, ainda estava às voltas com a tarefa de conseguir dinheiro para pagar o carnaval deste ano. “Afoxé não é só Filhos de Gandhy, não”, avisou, deixando transparecer a rivalidade com o primo rico, grande e famoso, que figura no livro dos recordes como maior bloco do mundo. Neste ano, o Filhos do Congo foi habilitado para receber R$ 200 mil no edital Carnaval Ouro Negro, programa da Secretaria de Cultura do estado que ajuda no financiamento dos blocos carnavalescos. Das 62 agremiações habilitadas para receber recursos do fundo, estão somente 11 afoxés. Os demais são blocos afros, grupos de samba e de reggae. “Muitos afoxés não conseguiram entregar suas certidões negativas de dívidas de impostos”, contou. “O dinheiro ainda não saiu. Aqui em Salvador a gente tem uma cultura de atraso nesse processo que me deixa irritado”, reclamou, a menos de 10 dias para o desfile. “A gente precisa de uma certa forma ter os valores antes para agilizar a compra de pano, material. A cultura é forte, mas a comunidade é pobre e não tem como comprar as fantasias. Temos que doar.”

A formação atual dos Filhos do Congo surgiu em 1979, resgatando a expressão mais antiga do Congos d’África, afoxé criado no início da década de 1920. A primeira geração era liderada pelo Velho Rodrigo nas imediações do Dique do Tororó, que comandava um terreiro próximo ao dique dedicado a Omolu. No final da década de 1940 passou a se chamar Filhos do Congo e, liderado pelos descendentes do Velho Rodrigo, desfilou por alguns anos, até ter sua trajetória interrompida por falta de recursos. Mesmo o Gandhy, considerado mais rico, enfrentou dificuldades financeiras que levou o afoxé a fechar suas portas entre 1974 e 1976.

Apesar dos percalços, alguns afoxés estão sendo criados na cena cultural baiana e com incentivo dos mais antigos. São exemplos disso o Dança Bahia, o Laroyê Arriba (formado só de mulheres) e o Kambalaguanse, grupos que receberam, por meio da Lei Aldir Blanc e por uma ação do Filhos do Congo, equipamentos como câmeras e tripés para registro documental de seus desfiles.

Atabaques, xequerês e agogôs

Mas qual a diferença entre o afoxé e um bloco afro? A principal é a ligação com o candomblé. Todo afoxé está ligado a uma Casa de Axé, que
determina toda orientação. Muitos se referem ao afoxé como “candomblé de rua” e outros recorrem à etimologia para explicar seu significado. “Afo” se traduz em “assoprar palavras” e “axé” é energia. É o espalhar da energia dos terreiros. “É o sopro que anuncia a alvorada”, poetiza Nadinho. A batida é necessariamente o Ijexá, ritmo que aportou na Bahia, trazido pelos negros do sudoeste da Nigéria escravizados, no final do século XVII até a metade do século XIX. “O afoxé é uma forma de manter os atabaques, os xequerês e os agogôs vivos. São os instrumentos do candomblé e que a gente leva para o asfalto.”

Conservador dos costumes do candomblé, ele ainda busca se justificar sobre a introdução de outros instrumentos musicais na festa. “Levamos uma banda harmônica, mas trabalhando com o Ijexá. Até na África muita coisa já mudou”. Mas a ousadia tem limite: o Filhos do Congo não leva às ruas os pontos do terreiro e não aceita que cerimônias de abertura sejam feitas no asfalto. “Eu não posso fazer um padê (cerimônia para Exu) na rua, nem levar o canto de entidade. Se bobear vai ter gente caindo (incorporada). Eu faço dentro de casa, descarrego e peço aos guias para tomar conta do nosso povo que vai brincar na rua”, contou sobre a íntima ligação do afoxé com a religião. “Um afoxé não é uma mercadoria de trio.”

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