O avesso do avesso
“Você apenas pensou que havia um problema com você, mas talvez nunca tenha percebido que toda aquela vontade de ficar calado, que toda aquela vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor da sua pele. Que o seu receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as orientações que você recebeu desde a infância: ‘não chame a atenção dos brancos. Não fale alto em certos lugares, as pessoas se assustam quando um rapaz negro fala alto. Não ande por muito tempo atrás de uma pessoa branca, na rua. Não faça nenhum tipo de movimento brusco quando um policial te abordar. Nunca saia sem documentos. Não ande com quem não presta. Não seja um vagabundo, tenha sempre um emprego.’ Tudo isso passara anos reverberando em você. Como uma espécie de mantra. Um manual de sobrevivência.”
Nas 188 páginas de O Avesso da Pele, livro de Jeferson Tenório, não consta a palavra censura. É nas entrelinhas da obra, por meio dos relatos do personagem Pedro, que se compreendem as interdições impostas cotidianamente às pessoas negras.
Nas últimas duas semanas, o livro vencedor do Prêmio Jabuti 2021 vem sofrendo uma série de censuras. O movimento teve início com um vídeo gravado pela diretora da Escola Estadual Ernesto Alves, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Em redes sociais, a diretora expõe trechos da obra em que constam palavras de baixo calão e cenas de sexo, avaliando que o material é impróprio e a oferta da obra em escolas estaria acontecendo sem o pedido de professores. O vídeo foi compartilhado por alguns políticos como a deputada estadual Kelly Moraes (PL-RS) e os deputados federais Zé Trovão (PL-SC) e Bia Kicis (PL-DF). Eles diziam que a adoção do livro à gestão atual do Ministério da Educação e ao PT. Isso é falso.
O Avesso da Pele faz parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) desde 2022, aprovado para distribuição em escolas públicas durante a gestão do governo Bolsonaro. A decisão de adquirir as obras cabe às escolas. Segundo o Ministério da Educação, “a aquisição das obras se dá por meio de um chamamento público, de forma isonômica e transparente. Essas obras são avaliadas por professores, mestres e doutores, que tenham se inscrito no banco de avaliadores do MEC. Os livros aprovados passam a compor um catálogo no qual as escolas podem escolher, de forma democrática, os materiais que mais se adequam à sua realidade pedagógica, tendo como diretriz o respeito ao pluralismo de concepções pedagógicas”. A adoção da obra na escola de Santa Cruz do Sul foi aceita pela própria autora do vídeo, conforme comprovante divulgado pela Companhia das Letras, editora do livro, nas redes sociais.
Poucos dias depois da repercussão do vídeo, a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul informou que não havia orientado a retirada do livro das escolas e que elas seriam instruídas a utilizar adequadamente os livros literários. No caminho contrário, as secretarias de educação do Paraná e de Goiás determinaram o recolhimento de exemplares da obra. Conforme as pastas, o conteúdo do livro passará por uma “análise pedagógica e posterior encaminhamento”.
Não é a primeira vez que Tenório passa por retaliações por conta da publicação. Em 2022, o escritor denunciou que estava sofrendo ameaças de morte após o anúncio de uma palestra em uma escola em Salvador.
“Resistir fazia parte da sua vida e você nunca havia se questionado por que as coisas eram assim. Nunca se questionou por que era pobre, nunca se questionou por que vivia sem pai. Nunca se perguntou por que a polícia o abordava na rua com tanta frequência. A vida simplesmente acontecia e você simplesmente passava por ela. (…) quando pela primeira vez você ouviu a palavra “negritude”, o seu entendimento sobre a vida tomou outra dimensão, e você se deu conta de que ser negro era mais grave do que imaginava.”
O racismo e todas as suas complexidades são o tema central da obra de Tenório. As palavras de baixo calão ou as cenas de sexo, mencionadas pela diretora, estão no contexto de uma crítica ao estereótipo que a sociedade perpetua de pessoas negras e sua sexualidade.
“A tese central é a de que o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade”, escreve Silvio Almeida no livro Racismo Estrutural. O atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania considera que o racismo não é um fenômeno patológico. Mas a manifestação normal da sociedade. “O fato de pessoas negras frequentarem certos ambientes e isso causar espanto também demonstra o quanto nós naturalizamos a ausência de pessoas negras em certos locais”, especifica o ministro. Em um país onde 55,5% da população se declara negra, dos 540 parlamentares eleitos em 2022 para a Câmara dos Deputados e o Senado, 141 são pretos ou pardos. Dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino é o único autodeclarado pardo. Em 195 anos de existência, houve apenas três homens negros como ministros do STF. Já a população carcerária brasileira é de 68% de negros.
Em contraponto a Silvio Almeida, o sociólogo Muniz Sodré não considera o racismo estrutural. Caso fosse, já teria sido exterminado. “Acho que o racismo funciona exatamente porque ele não é estrutural. Minha visão é que o racismo que existia no Brasil estava consolidado e ligado à escravatura. Portanto, a estrutura escravista existia”, ressalta em entrevista para a Folha de S. Paulo. Sua defesa é a de que o racismo é, na realidade, institucional — e tem como marca a negação do preconceito. O autor do livro O Fascismo da Cor reforça que a sociedade não reconhece a discriminação racial no Brasil, tampouco os racistas reconhecem que o são.
Almeida e Sodré são professores. Acontece que, quando se proíbe qualquer tipo de obra numa instituição de ensino, proíbe-se junto o debate. A refutação de ideias. A construção de novas percepções. E a ciência.
“‘É necessário preservar o avesso’, você me disse. ‘Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que a sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias, existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.’”
As relações afetivas interraciais e as dificuldades no mercado de trabalho estão entre os muitos aspectos do racismo levantados na obra. Mas permeiam também a reflexão de um filho sobre sua relação com o pai, que foi morto num episódio de violência policial.
“A diretora fez uma leitura completamente distorcida e deturpada do livro, apagando a sua verdadeira discussão: a morte de pessoas negras pela violência policial. Por isso, reforço que O Avesso da Pele não é livro sobre sexo, mas uma reflexão sobre o letramento racial de jovens negros”, reforça Jeferson Tenório em coluna no UOL, complementando que o banimento dos livros é uma prática fascista antiga, que tem como objetivo eliminar pensamentos críticos.
Para o autor do livro Escola Partida: ética e política na sala de aula, Ronai Rocha, há uma nova configuração de vigilância das práticas escolares. “Começamos a perceber um interesse maior em saber o que se passa na escola, principalmente em conteúdos mais sensíveis, ligados a valores religiosos, à sexualidade. E esse interesse não é apenas dos pais, mas políticos também passam a se envolver. Por vezes, determinado livro cai no radar desses movimentos. Curiosamente, costuma cair mais no radar de políticos. São raros os casos em que a escola toma essa iniciativa”, explica.
Por um lado, é positivo que a sociedade não esteja alheia ao que acontece dentro da escola e das salas de aula, destaca Rocha. Porém, é preciso impor limites e respeitar decisões pedagógicas, porque os conteúdos didáticos passam por avaliações e são selecionados por um corpo técnico. Sua adoção, geral e idealmente, está num contexto em que o professor ou a professora vão discutir e desdobrar os temas. “No caso de Santa Cruz, o professor provavelmente leu o livro e julgou que possuía habilidade didática com as passagens que foram chamadas de baixo calão. O conteúdo do livro faria sentido para o grupo de adolescentes com o qual ele trabalha. O livro é um objeto didático, não é qualquer leitura a ser feita para os alunos lerem e darem risada.”
“Ainda custo acreditar que isso tenha acontecido com você. Eu sei que os negros são os que mais morrem por armas de fogo. Vemos isso a todo momento na TV, mas a gente nunca acha que isso vai acontecer com a gente. Você assiste àquelas reportagens com os parentes das vítimas, pessoas negras em bairros periféricos, chorando, reclamando da violência, do descaso das autoridades, e a gente fica triste e solta um que-merda-quando-isso-vai-acabar, e volta a comer seu prato de arroz com feijão. Então, de uma hora para outra, assim, sem mais nem menos, é a sua vez de chorar um morto. É a sua vez de conhecer a dor da perda”
A violência policial é responsável por 3,2 mortes a cada 100 mil habitantes no Brasil, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. A corporação mais letal é do Amapá, seguida por Bahia, Rio de Janeiro, Sergipe, Pará e Goiás. Das vítimas, 83,1% eram negras e 68,1% das mortes aconteceram em via pública.
No dia 7 de abril de 2019, o músico Evaldo Rosa estava de carro com a família e quando passava por uma travessa próxima à favela do Muquiço, no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro, o veículo foi alvejado por 62 tiros de fuzil do um comboio do Exército Brasileiro. Ele morreu na hora. O catador de recicláveis Luciano Macedo tentou ajudar o músico e também foi fuzilado. No total, foram 257 tiros. No dia 1º de março deste ano, o Superior Tribunal Militar votou para absolver os militares das mortes de Evaldo e Luciano. Cinco dias depois, o policial militar Alessandro Marcelino de Souza foi condenado por homicídio culposo — quando não há a intenção de matar — pelo homicídio de Johnatha de Oliveira Lima, de 19 anos. O jovem levou um tiro nas costas na comunidade de Manguinhos, na Zona Norte do Rio, em 2014.
“Depois que você morreu, passei meses pensando na minha própria morte. Mesmo com tão pouca idade, eu pensava na morte, pois você, muito cedo, me deixou consciente da nossa finitude. E isso é triste, mas eu te agradeço. As pessoas que te mataram ainda estão soltas. E não sei por quanto tempo elas continuarão livres. Mas elas nunca saberão nada sobre o que você tinha antes da pele.”