Antídoto contra hipocrisia
Zé Celso Martinez Corrêa tinha acabado de ser cremado quando Marcelo Drummond convidou Monique Gardenberg para realizar um sonho antigo de seu marido: dirigir uma montagem de Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues. Era um desejo que vinha desde 2008. Em 2023, pouco antes de morrer, Zé Celso havia decidido encarar a peça e chegou até a convidar a atriz Regina Braga. Mas aí aconteceu o incêndio trágico que acabou lhe custando a vida. Dois anos depois dessa conversa na volta do crematório, a peça estreia em São Paulo, no Sesc Pompeia, onde fica em cartaz até dia 11 deste mês. No dia 30, chega ao Teatro Oficina.
Na nova montagem, criada coletivamente com a turma do Oficina, o texto de Nelson Rodrigues ganha vida extrapolando a ideia tradicional de teatro, com a incorporação de diferentes linguagens, como é natural para Monique, essa baiana radicada em São Paulo que começou como produtora de shows, para depois dirigir uma série de espetáculos de teatro, filmes e séries de TV. Essa peça é especial porque Monique usou a liberdade do Oficina para homenagear pessoas importantes em sua vida: “o Zé [Celso], meu irmão André, o Erasmo [Carlos], o [Antonio] Cícero, a Pina [Baush]”, disse ao Meio por telefone. Leia abaixo os principais trechos da entrevista em que ela fala da peça e também de outra criação sua, a terceira edição do C6 Fest, que acontece em São Paulo de 22 a 25 de maio, trazendo artistas como Air, Wilco, Pretenders, MShell Ndegeocello e Mulatu Astatke.
Como foi dirigir o Oficina e ter de lidar com a sombra de Zé Celso no processo?
Nesse processo todo, ele era uma inspiração. Eu não podia trair tudo que o Zé construiu. Então estavam presentes em mim o tempo todo a alegria, a força de vida do Zé, sabe? E as misturas que ele fazia muito bem, o jogo com vários signos. Tenho isso um pouco também e esse trabalho era um prato cheio para fazer isso. Um campo fértil. Tinha a loucura do Nelson Rodrigues, a força criativa do Oficina, um coletivo que, para cada coisa que você propõe, eles trazem mais. Então é uma entrega, uma troca espetacular para um diretor. Por exemplo, você nunca imaginaria o Oficina fazendo um balé da Pina Bausch. E a gente faz, entende? É tão lindo você ver o Oficina, que fazia Bacantes, que fazia O Rei da Vela, de repente impecavelmente executando uma coreografia delicada da Pina Bausch. E me encontro muito bem com o Zé e com o Nelson na loucura, na liberdade, na intensidade.
No programa do espetáculo, tem uma frase do Zé Celso que diz: “Nelson precisa de muita leitura, interpretação, para não ser assassinado por quem projeta nele o seu psicologismo de arrivista moralista”. Como vocês fugiram disso?
A minha leitura de Senhora dos Afogados é que a gente está retratando uma certa classe dominante, hipócrita no seu moralismo. Porque é o moralismo que só serve às aparências. É uma família extremamente religiosa onde o patriarca, Misael, é capaz de matar. Nesse sentido, a peça atende muito bem à crítica política e social que está em tudo o que faço. Quem vê o Nelson dessa maneira é porque não consegue dar a volta na crítica que ele está fazendo. Tem frases que são incríveis, do ponto de vista de colocar um espelho nessa gente. E eu falo de uma certa parcela da classe dominante. Tem essa mulher que mataram há 19 anos, e o Misael responde: “mas ela é uma mulher da vida”. Ele joga na cara que a vida da mulher da vida vale menos. Assim como hoje um tipo como ele poderia dizer que uma vida de um indígena ou de um negro vale menos. Nesse sentido, essa obra é uma crítica ferrenha à sociedade hipócrita.
A peça é escrita em 1947. De lá para cá parece que essa classe média retratada por ele se amplifica. Qual o seu sentimento em relação a isso?
É muito assustador que muitas questões fiquem impunes no Brasil. E a sensação que dá ali é a de que Misael fica impune também. Corre um rumor na sociedade, todo mundo comenta, mas ele está prestes a ser nomeado ministro. É muito importante fazer esse texto agora, quando essa gente grosseira e essa classe genocida fica beirando o poder, né?
A peça do Nelson deriva de Electra Enlutada, do Eugene O’Neil, que, por sua vez, vem de Ésquilo. Ou seja, você tem várias camadas de remix para chegar na Senhora dos Afogados. Como vocês trazem esses elementos clássicos para a montagem?
Eles ajudam o entendimento do movimento de criação do Nelson. O pessoal do Oficina queria me matar, mas eu fiquei um mês na mesa só trabalhando o texto com todo mundo. Eles não aguentavam mais, às vezes tinha que amarrar na cadeira. Mas era muito importante que o entendimento ficasse bem claro de como ele constrói a dramaturgia. É óbvio que todas essas referências, Orestíada, Édipo, Narciso, que foram dele, também foram usadas por nós. Mas a peça é viva. Eu sempre achei que a cena do banquete, onde ele narra que essa mulher morta apareceu para ele, é Macbeth. Uma coisa que não é citada por nenhum texto que li sobre essa peça. A aparição da prostituta morta é igual ao Banquo quando aparece para o Macbeth. E sempre quis botar alguma coisa de Shakespeare lá, como eu fiz no Ó Pai, Ó, usando O Mercador de Veneza na voz de Lázaro [Ramos], mas com o linguajar totalmente chulo. E hoje eu consegui, pegar quatro falas do Macbeth para dar ao Marcelo [Drummond].
Você trabalha com muitas linguagens, teatro, cinema, TV, produz shows, como entende o seu papel como artista?
É quase uma necessidade para sobreviver. Acho que a arte, essa atividade toda, é o que me salva. Porque a vida foi muito dura. Então, viver essas coisas na arte – e elaborar muitas perdas também na arte –, me ajuda a encontrar sentido.
Logo depois dessa temporada já vem o C6 Fest, que é um filho seu e da sua irmã, se a gente entender que ele é a continuação do Free Jazz Festival. Daí a peça retorna ao cartaz, mas no Teatro Oficina. Como conjugar as coisas e como está o festival neste ano?
Fui a idealizadora desse projeto lá em 1985 com a minha irmã Silvinha. Hoje ele é tocado pelos meus sócios na Dueto [Jeffrey Nealey, Carlos Martins e Clarice Philigret], com uma equipe toda preparada para cuidar do evento. E temos uma parceria com o Musicalize para fazer toda essa parte executiva do local. E está indo super bem, devemos lotar o sábado já. Então tem uma turma muito linda junto e eu fico mais numa supervisão.
Você não se meteu na curadoria neste ano?
Eu sempre digo que sou quase uma direção de curadoria, porque não me considero curadora no sentido de ser conhecedora do que eles me trazem o tempo inteiro. Eu recebo uma série de sugestões e juntos a gente faz o desenho final. Mas quem levanta, traz os nomes, pesquisa e aponta os caminhos é a curadoria.
Neste ano sem o Zé Nogueira, que fazia desde o Free Jazz e faleceu no ano passado.
Nem fala. Há um mês fez um ano. O Lourenço Rebetez entrou no lugar do Zé e agora faz uma dupla com Pedro Albuquerque no jazz. E, para as outras coisas, voltamos para a dupla original: o Ronaldo Lemos e o Hermano Vianna.