Onde está o dinheiro da arte? Trump cortou
O Museu de História Afro-Americana de Boston permite, há 60 anos, que seus visitantes sejam transportados no tempo para quando abolicionistas como Frederick Douglass discursavam e caminhavam por corredores onde jovens soldados negros se reuniam para lutar na Guerra Civil. Mas a instituição pode ter de se reinventar nos próximos meses e anos para pagar suas contas. O museu recebeu uma doação de US$ 500 mil do Instituto de Serviços de Museus e Bibliotecas, agência federal que está na mira do presidente americano, Donald Trump. Ele pretende encerrar financiamentos públicos em arte e cultura e fechar agências que as promovem com o argumento de “diminuir o tamanho do governo federal para aumentar a responsabilização, reduzir o desperdício e entidades governamentais desnecessárias”. Entre elas, estão o National Endowment for the Arts (NEA), o National Endowment for the Humanities (NEH) e o instituto que fez a doação ao museu de Boston.
Centenas de grupos artísticos de diversos portes nos EUA receberam e-mails notificando-os sobre a retirada e o encerramento de suas bolsas na noite do último dia 2. Organizações dos mais diversos estados americanos também relataram que foram afetados. “O NEA está atualizando suas prioridades de política de concessão de subsídios para concentrar o financiamento em projetos que reflitam a rica herança artística e a criatividade do país, conforme priorizado pelo presidente”, dizia parte do e-mail enviado. De acordo com a mensagem, entre as prioridades de Trump estão: “Projetos que celebrem o 250º aniversário da independência americana, promovam a competência em IA, capacitem os locais de culto para servir às comunidades, auxiliem na recuperação de desastres, promovam empregos qualificados e tornem o Distrito de Columbia seguro e bonito”.
Os festivais de cinema foram especialmente afetados em diferentes partes do país. Para se ter uma ideia, o Festival Internacional de Cinema LGBTQIA+ de São Francisco (Frameline) teve cancelada uma doação de US$ 20 mil que receberia em 2025. Outros US$ 30 mil que seriam enviados para a organização sem fins lucrativos por trás do prestigiado festival de documentários True/False em Columbia, no Missouri, também foram abortados. No Maine, o Festival Internacional de Cinema de Camden (CIFF) também foi impactado, após o Points North Institute – um programa da ONG – ter a verba de US$ 45 mil cancelada pela agência. O medo fez com que outros festivais se calassem. Como o Sundance Institute, que recebeu US$ 100 mil ano passado, totalizando mais de US$ 3,5 milhões em financiamento do NEA desde 1998. Outros festivais, como o de Palm Springs, seguem ameaçados pelos cortes.
A tesourada
A Aliança Nacional de Humanidades estima que mais de 1.200 bolsas que apoiam programas de cultura e história em todo o país foram cortadas pelo National Endowment for the Humanities (NEH). O órgão aprova cerca de 20% dos mais de 5 mil pedidos de subsídios que recebe a cada ano, com seu orçamento de US$ 207 milhões financiado pelo Congresso no ano passado. Os cortes do NEH afetam uma ampla gama de programas e serviços, incluindo esforços específicos do Estado para reduzir a taxa de suicídio de adolescentes no Alasca e ajudar educadores do Alabama a ensinar história dos direitos civis.
O corte seco de Trump não atinge apenas festivais de cinema e museus renomados, mas também programas de arte em comunidades carentes e rurais que atendem a crianças. É o caso do Challenge America, que pode deixar de fora alguns projetos já financiados este ano. Entre eles estão o BronxArtSpace, que recebeu uma bolsa para exposições de arte comunitárias na cidade de Nova York; um programa de dança para alunos do ensino fundamental em Allentown, Pensilvânia; e um festival de pintura ao ar livre no Colorado. No campo, uma cidade de Michigan com menos de 2 mil habitantes realiza um festival de música clássica, enquanto a Zenon Dance Company and School, de Minneapolis, organiza uma turnê de dança pelas cidades rurais do estado.
Outros projetos que tiveram seus subsídios negados variam da Berkeley Repertory Company à Three Percent, um importante recurso para literatura traduzida, sediada na Universidade de Rochester, que recebeu uma carta do NEA, afirmando que agora “priorizaria projetos” que vão desde faculdades e universidades historicamente negras (HBCUs) até uma iniciativa para “fazer a América saudável novamente”.
O NEA
Desde que foi fundado pelo Congresso em 1965, o National Endowment for the Arts concedeu US$ 5,5 bilhões em subsídios, sendo o maior financiador de artes nos Estados Unidos, ao passo que também é uma das menores agências federais. Em 2024, o orçamento do NEA foi de US$ 207 milhões, enquanto em 2022 era de US$ 180 milhões, o equivalente a 0,003% de todo o orçamento federal no ano. Não dá bilhão com B de bola, como diria Ciro Gomes.
O fundo financia as artes e a educação artística em todos os 50 estados, Porto Rico e a capital Washington, concedendo bolsas a organizações sem fins lucrativos, órgãos públicos, universidades e escritores individuais para projetos. Para receber o fomento, as organizações devem descrever o projeto em que estão trabalhando, o orçamento necessário e planejar a contrapartida financeira com fontes não federais. Um painel de especialistas independentes analisa e discute o mérito artístico do projeto, o impacto que terá em sua respectiva área e as comunidades que atenderá. Eles encaminham suas recomendações ao Conselho Nacional de Artes, composto por artistas renomados, que envia as propostas ao presidente da NEA, que por sua vez decide quem será contemplado.
A mão conservadora
O interesse dos conservadores americanos em eliminar agências como o NEA já não é novidade. Eles argumentam que o financiamento federal para as artes acaba apoiando muitos projetos tolos. No início da década de 1980, o presidente Ronald Reagan propôs sua eliminação gradual, mas desistiu depois que um painel consultivo reunido por ele observou os benefícios financeiros do programa. Um acordo bipartidário no Congresso acabou salvando o fundo anos depois. Mas o debate sobre investimento público ganhou força em 1989, após a exposição de uma fotografia feita por Andres Serrano, intitulada Piss Christ, em que retrata um crucifixo mergulhado em urina. Parte do projeto foi patrocinado pelo NEA, o que gerou revolta de grupos católicos e uma redução nos orçamentos para novos fomentos.
Em um artigo de 1997, a Heritage Foundation, uma organização conservadora sem fins lucrativos, explicava dez razões para eliminar o financiamento público. Entre elas, afirmam que o fomento da agência federal “desencoraja doações de caridade para as artes”, além de declarar que a NEA é uma “assistência social para elitistas culturais”. Já a ONG Cato Institute também apoia o fim do fundo, argumentando que grandes obras de arte podem ser criadas sem dinheiro público e que o fomento “distorce e politiza os empreendimentos artísticos” e “obriga os contribuintes a financiar projetos aos quais se opõem”.
Mas os defensores da iniciativa pública nas artes afirmam que o processo de seleção inclui um painel especializado e independente e que o dinheiro financiou trabalhos importantes por décadas. “É a marca de uma grande democracia apoiar as artes, que são uma expressão do que nos torna humanos”, disse a Associação de Diretores de Museus de Arte, em comunicado. Como exemplo, uma bolsa do National Endowment for the Humanities ajudou a financiar a viagem da exposição Tesouros de Tutancâmon, entre 1976 e 1979, uma exposição inovadora que atraiu 1,36 milhão de visitantes somente ao Metropolitan Museum of Art. Além disso, dois dos vencedores do Prêmio Pulitzer deste ano já foram contemplados com incentivos públicos. O romancista Percival Everett, autor de James, e a vencedora do prêmio de poesia Marie Howe receberam bolsas de escrita criativa.