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O generalato da Venezuela

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As ruas do centro de Caracas seguem cheias nestes dias de incerteza na Venezuela. Funcionários públicos sobem e descem a Plaza Bolívar como se nada estivesse acontecendo ou prestes a acontecer no país. As lojas seguem abertas, os restaurantes oferecem o pabellón criollo como sempre aos trabalhadores que parecem já acostumados a viver num estado permanente de carestia. Em volta dos ministérios, palácios e pontos importantes da cidade, muita polícia, muitos agentes de inteligência, muita gente que sempre usou a força para manter o regime de pé. As piadas e brincadeiras seguem, mas falar de política, uma paixão venezuelana, e sobre o estado das coisas desapareceu das ruas caraquenhas.

Apesar de tudo parecer como sempre, as coisas estão diferentes. Muita gente sussurra rumores de que os americanos já estão no país — e há censura —, outros de que Maduro se prepara para fugir para a Rússia ou de que um golpe interno está prestes a ser deflagrado para que o chavismo se vá de uma vez. “As pessoas estão, como sempre foi nos últimos anos, com a esperança de que algo mude, não importa se por bombas, por algum acordo, por qualquer coisa”, me conta pelo WhatsApp Iolando Moreno, um motorista que já cruzou o país comigo, que já subiu as ladeiras do Petare e de Catia, me ajudando a entender o que é a Venezuela.

Caracas, me conta Moreno, está tranquila, mas naquela tranquilidade em permanente tensão, de que algo está prestes a ocorrer. A dúvida que paira sobre os venezuelanos não é se Maduro vai cair, se vai fugir ou morrer. Tampouco se María Corina Machado, a Nobel da Paz e líder do que sobrou da oposição, vai assumir o poder. Para os venezuelanos, esses não são os personagens chave dessa crise. Para Moreno e quase todos os conterrâneos, a grande dúvida é o que farão os mais de dois mil generais — um recorde mundial — e as tropas que eles comandam quando e se vier alguma mudança no Miraflores. São eles, de fato, que comandam o país, tanto nas operações legais quanto nas ilegais. São eles, enfim, que definirão os rumos incertos do futuro venezuelano.

A possibilidade de Nicolás Maduro finalmente deixar o poder — seja por um acordo negociado, um desgaste interno ou uma pressão internacional — paira há anos sobre a Venezuela como uma promessa distante. A cada ciclo de crise, anuncia-se seu fim iminente, mas o líder chavista persiste, sustentado por uma estrutura que o regime moldou com precisão e brutalidade ao longo de mais de uma década. Ainda que Maduro decidisse aceitar o exílio, abrindo caminho para que a oposição assumisse o governo, nada sugere que a transição resultaria em estabilidade. Pelo contrário: a arquitetura política e militar que o regime construiu é tão intrincada que sua desmontagem, ou mesmo sua simples substituição, poderia arrastar o país para uma espiral de violência e fragmentação.

No centro dessa incerteza está a dúvida de quem governaria de fato. María Corina Machado, indiretamente vitoriosa nas urnas, teria condições de exercer poder real se grande parte do aparato chavista — entranhado no Judiciário, no Legislativo, na administração pública e nas forças de segurança — permanecesse intacto? Mesmo com apoio popular e reconhecimento internacional, ela ainda precisaria negociar com governadores e legisladores formados politicamente dentro do chavismo, muitos dos quais temem não apenas perder privilégios, mas enfrentar retaliações. A própria oposição tampouco parece unificada quanto ao que fazer com as estruturas herdadas: aceitar um compromisso pragmático, com algum tipo de convivência institucional com figuras do regime, ou promover uma purga generalizada que romperia abruptamente com o passado? Nenhuma das opções é simples. Ambas dependem exatamente da reação das Forças Armadas.

A trajetória recente do país deixou os militares numa posição singular — simultaneamente alicerce do governo e parte de um mecanismo econômico obscuro que se tornou vital para a sobrevivência do regime. Maduro aperfeiçoou, ao longo dos anos, uma estratégia que especialistas descrevem como uma fusão funcional entre instituições: concedeu às Forças Armadas e ao Judiciário permissões extraordinárias para operar negócios, controlar empresas estatais e integrar redes de contrabando de gasolina, minerais e drogas. Essa simbiose transformou oficiais de alta patente em atores econômicos, alguns com fortunas construídas em meio ao colapso que atinge o restante da população.

Aqui vale um contexto socioeconômico. A Venezuela é um típico país rentista baseado na produção de petróleo. A partir de 1920, quando os Estados Unidos passaram a investir pesado no país, a Venezuela deixou de produzir tudo, não passou por um processo de industrialização e se acostumou a comprar praticamente tudo de fora: de carros a papel higiênico. Hugo Chávez foi tão bem sucedido nos seus anos no poder por que o barril do petróleo alcançou preços históricos na primeira década deste século. No entanto, ele adotou uma política populista de ampliação drástica nos subsídios, afastou-se da pequena elite produtiva e não criou mecanismos para que a Venezuela escapasse do puro rentismo. Quando Maduro assumiu após a morte de Chávez em 2013, as commodities despencaram e, com o Estado mais inchado do que nunca, rapidamente ele se viu sem reservas para manter o padrão dos anos anteriores. A crise que se abateu sobre a Venezuela nos últimos 10 anos é uma crise recorrente de um país que sempre apostou na fartura de um único ativo — ela já aconteceu muitas vezes e, em geral, foi o ponto central dos muitos golpes de Estado que marcam a história do país.

Pois são os generais que controlam a PDVSA, a estatal venezuelana de petróleo e virtualmente a única fonte de receita do país. São eles que controlam o que entra e o que sai do país, de forma legal ou ilegal. São eles que mantêm feudos estratégicos, têm acesso a um câmbio irreal e permitem que suas famílias possam ter uma vida digna e com algum conforto, uma exceção absoluta entre os venezuelanos. O sistema, ao mesmo tempo que paralisa a economia formal e sufoca o setor privado, garante a prosperidade de um número restrito de leais. Para esses oficiais, a continuidade do regime não é apenas ideológica — é uma necessidade material. Não à toa, eles são conhecidos como a “Boliburguesia” venezuelana.

Os Estados Unidos sabem disso — e não é de hoje. Em 2019, ainda no primeiro governo Trump, houve a crença de que a catástrofe econômica na Venezuela poria fim ao regime. Um integrante da oposição venezuelana, Juan Guaidó, chegou a se declarar presidente do país — e foi reconhecido por governos de direita na região naquele momento, como EUA, Brasil e Colômbia. Os Estados Unidos chegaram a montar uma operação de entrega de alimentos e remédios para entrar sem autorização oficial. Esperava-se que os militares, diante do iminente caos, desertariam em massa. Nada disso aconteceu e Washington aprendeu, desde então, que se Maduro caísse a maior probabilidade era a de que a Venezuela descenderia para uma guerra civil.

A pedido da Casa Branca, oficiais do Pentágono realizaram uma série de projeções sobre o que aconteceria no país se houvesse, de fato, uma troca de regime à força — os chamados jogos de guerra. O resultado foi muito parecido com o que ocorreu quando os EUA atuaram no Iraque e no Afeganistão. Os jogos de guerra mostraram que o caos e a violência provavelmente irromperiam dentro da Venezuela, à medida que unidades militares, facções políticas rivais e até grupos guerrilheiros que operam na selva disputassem o controle do país rico em petróleo. Douglas Farah, um consultor de segurança nacional especializado em América Latina que participou de vários desses exercícios enquanto era pesquisador na National Defense University, revisitou recentemente os jogos militares de 2019 e concluiu que nada mudou nos prognósticos de seis anos atrás.

Por isso, imaginar que um novo governo assumiria automaticamente o controle das Forças Armadas beira o irrealismo para muitos analistas. Em um artigo recente escrito para o International Crisis Group, Phil Gunson, um analista sênior sobre América Latina, diz que muitos generais podem resistir abertamente à mudança de regime. Mesmo que Maduro aceitasse sair, parte das forças de segurança poderia se rebelar, possivelmente iniciando uma guerra de guerrilha contra as novas autoridades.

Outra frente de batalha

A vulnerabilidade venezuelana pós-Maduro tem ainda muitas camadas que operam nas sombras do regime. Maduro — e também Chávez — sempre permitiu que grupos armados de esquerda que lutavam dentro da Colômbia operassem livremente no país. O Exército de Libertação Nacional, da Colômbia, tem alguns milhares de combatentes bem treinados dentro da Venezuela, operando no tráfico de cocaína, na exploração sem controle de ouro e outros minerais e usando o país como base para ataques à Colômbia, como ocorreu no início deste ano.

O ELN já afirmou publicamente seu compromisso em defender o governo Maduro e ameaçou atacar qualquer força estrangeira que intervenha. Sua especialização em explosivos improvisados e drones armados amplia a complexidade de qualquer cenário de transição. As dissidências das Farc, igualmente presentes em áreas remotas, integram uma espécie de pacto tácito com o regime: administram serviços básicos, exploram mineração ilegal e ajudam a contornar sanções internacionais. E, somando-se a esse ambiente já inflamável, há as estimativas de que até seis milhões de armas circulem nas mãos de civis venezuelanos. É difícil imaginar um terreno mais propício para a eclosão de conflitos simultâneos, cada qual reivindicando seu próprio pedaço do poder.

Por isso, os venezuelanos não se importam tanto com quem vai substituir Maduro. O temor mais concreto é saber o que acontecerá depois. Pouca gente acredita que a queda de Maduro — por si só insuficiente para desmontar a estrutura que o sustenta — produzirá, milagrosamente, uma ordem estável. Há o temor oposto: o de um movimento caótico capaz de desordenar ainda mais um Estado já fragilizado pela crise econômica e humanitária. A burocracia está politizada, a infraestrutura se encontra em colapso e a economia funciona à base de improvisos e enclaves privilegiados. Qualquer novo governo precisaria reconstruir instituições, restabelecer serviços públicos, garantir segurança básica e iniciar a miríade de reformas urgentes que o país exige. E tudo isso sem o controle pleno do território, enfrentando a resistência de militares poderosos, a proliferação de grupos armados e o risco permanente de violência política.

O paradoxo é que, embora o regime que Maduro herdou de Chávez seja profundamente impopular — rejeitado pela maioria dos venezuelanos e até questionado por muitos de seus aliados —, ele mantém uma estrutura própria, descentralizada e com feudos de poder espalhados tanto pela economia legal quanto ilegal. O chavismo arquitetou um regime no qual apenas aqueles com poder suficiente para derrubá-lo são também os que mais perderiam com sua queda. A oposição, por sua vez, ainda que legitimada pelas urnas, não dispõe dos instrumentos materiais para romper sozinha a estrutura chavista que controla o país há mais de 25 anos. Civilidade democrática, nesse contexto, exige mais do que vontade; exigiria desmantelar uma engrenagem que se retroalimenta de corrupção, repressão e colapso econômico.

Ao fim e ao cabo, María Corina e Maduro parecem ser os atores principais de uma crise que, à distância, pode parecer simples de resolver com uma mudança de regime. Mas não são. Eles são atores coadjuvantes. O ator central nesta crise são as Forças Armadas que sustentam e se beneficiam do regime. Por isso, a Venezuela está diante da perspectiva de um futuro em que a derrubada do ditador pode ser apenas o início de uma disputa ainda mais perigosa, conduzida por forças que não têm compromisso com a democracia e que há muito aprenderam a prosperar no caos. O caminho para a reconstrução, se existir, será menos uma sucessão política do que a necessidade de reinventar o próprio Estado — um desafio gigantesco para uma nação exausta e sem uma liderança capaz de agregar as diferentes forças que comandam um país em frangalhos.

Moreno me conta que, mesmo depois de tantos anos de agonia, ainda há esperança de que agora, de fato, haja uma mudança. “Não importa qual, importa é que isso acabe.” Com quase toda sua família fora do país — uma constante nos lares venezuelanos —, ele me diz que, se algo não mudar agora, ele, como quase oito milhões de venezuelanos já fizeram, vai embora. Não sabe para onde, não sabe como. Só quer ir. “Não me preocupo tanto com a violência; me preocupo que nada mude.”

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