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A China diante da guerra

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No dia 24 de fevereiro tropas russas invadiram a Ucrânia com base em duas alegações: garantir a independência das províncias separatistas de Donetsk e Lugansk e promover uma “desnazificação” do governo ucraniano. Para um grupo de especialistas, o real motivo é que Vladimir Putin vê a Ucrânia como “parte da Rússia” e não deseja que ela integre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar ocidental que se expandiu em direção à fronteira russa até a primeira década deste século. Outro grupo considera que Putin teme que o vizinho se estabeleça como uma democracia forte de cultura eslava, o que poderia alimentar sua oposição, em casa.

Se, do ponto de vista dos combates, o conflito está restrito aos dois países, nos outros aspectos já se tornou uma guerra mundial. Estados Unidos e União Europeia vêm municiando o governo de Kiev com armamento e recursos, ao mesmo tempo em que impõem pesadas sanções econômicas a Moscou, no que são acompanhados por países como o Japão. Os efeitos dessa política são devastadores para a economia russa e se refletem em todo o planeta, com o aumento do preço de commodities, em particular petróleo e gás.

No meio de toda essa tensão há um player surpreendentemente quieto. A China, segunda maior economia do mundo, potência nuclear e dona de um dos maiores exércitos do planeta. Essa guerra não é simples para o governo de Beijing, tradicional aliado de Moscou, mas com fortes laços comerciais com Kiev. Para entender o que a China tem a ganhar e a perder com o conflito e quais os desdobramentos para sua política externa, o Meio conversou com o doutor em Ciência Política Maurício Santoro, professor da Universidade o Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Qual a posição da China diante da guerra na Ucrânia?

A China vem tentando equilibrar dois princípios contraditórios. Um deles é a manutenção de uma política de proximidade muito grande com a Rússia. Não é uma aliança formal. Os dois países não têm um tratado semelhante ao da Otan, por exemplo, que os obrigue a sair em defesa um do outro. Mas é uma relação de muito apoio político mútuo. Dias antes do início da guerra houve um encontro entre os presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping, no qual eles declararam que a relação entre os dois países era “uma amizade sem limites”.

Sem limites mesmo?

O que a guerra está mostrando é que existem, sim, limites e restrições a essa amizade, como em qualquer outra relação diplomática. E o limite em questão é o outro princípio da diplomacia chinesa, que é a não intervenção e autodeterminação dos povos. Esse tem sido um dos pilares das relações exteriores chinesas desde os anos finais de Mao Tsé-Tung (1893-1976), quando a China abandonou a ideia de exportar a revolução e interferir na política doméstica de outros países e passou a ter uma diplomacia mais voltada à busca do desenvolvimento, à atração de investimentos e criação de mercado para seus produtos.

Como se conciliam esses dois princípios?

É muito difícil. Daí as atitudes chinesas serem ambivalentes desde o início da guerra. Por um lado, a China se recusou a condenar e criticar publicamente a Rússia. Até relutou vários dias a utilizar a palavra guerra para descrever o que está acontecendo na Ucrânia. Por outro, a China não apoiou a Rússia na ONU; ela se absteve tanto no Conselho de Segurança quanto na Assembleia Geral. Beijing tem mandado ajuda humanitária para os ucranianos – remédios roupas alimentos – e defendido que a soberania da Ucrânia tem que ser respeitada e que o conflito deve ser resolvido pacificamente. Paralelamente, usa uma retórica muito crítica aos EUA, atribuindo-lhes parte da culpa na guerra. A mídia chinesa ressalta muito quantas guerras os EUA travaram e quantos países ocuparam. O que se pode dizer com certeza é que o conflito na Ucrânia tem sido muito ruim para a China, devido a problemas políticos, diplomáticos e até econômicos.

Como as sanções impostas pelo Ocidente à Rússia impactam a China?

A China é a principal parceira econômica da Rússia e, ao mesmo tempo, da Ucrânia, e a guerra está devastando a economia desses dois países. Na Ucrânia, por causa dos bombardeios, da destruição de infraestrutura, da paralisação das atividades comerciais e de 2 milhões de refugiados que já deixaram o país. O impacto econômico vai ser gigantesco. Na Rússia, as sanções econômicas são muito fortes, mais amplas das que foram aplicadas, por exemplo, contra o Irã ou contra a Coreia do Norte. A estimativa de bancos de investimento é que a economia russa tenha em 2022 a pior recessão desde o fim da União Soviética. Essas duas crises em parceiros importantes significam perdas para as empresas chinesas.

Há impactos positivos?

Então, ao mesmo tempo, a guerra incentiva a internacionalização financeira de alguns mecanismos que o governo chinês criou nos últimos anos, particularmente o sistema de pagamentos CIPS, ou CHIPS, pensado como uma alternativa ao SWIFT. A exclusão dos bancos russos do SWIFT é um grande empurrão para que eles adotem o CIPS e para que os governos da Rússia e de outros países comprem mais renminbi, a moeda chinesa, para diversificar suas reservas e se blindar contra sanções ocidentais. O Banco Central russo está impedido de manejar as suas reservas no exterior em dólares e euros, que é a maior parte da sua carteira de ativos. As reservas russas em renminbi e ouro não chegam a um terço do total. A essa altura os russos devem estar arrependidos de não terem aumentado essas reservas em moeda chinesa.

Mas a instabilidade na economia mundial não é prejudicial à China?

Sim. A disparada no preço de produtos como petróleo, gás natural, trigo e níquel prejudica muito os chineses. Qualquer época de instabilidade como a que estamos vivendo traz consequências muito negativas. E é preciso lembrar que ainda estamos numa pandemia. E no caso da China, o pior momento dela, com o número de casos disparando.

De que forma a ação da Rússia pode influenciar a postura da China em relação a Taiwan?

Para responder, temos de olhar o que a Rússia fez desde 2008 na Geórgia depois na Ucrânia. Em geral, o modelo russo teve como base o apoio a enclaves separatistas nos dois países. Na Geórgia, Abecásia e Ossétia do Sul; na Ucrânia, as duas províncias do Donbass, Donetsk e Lugansk. Ao contrário de outros aliados da Rússia, inclusive na América Latina, a China não reconheceu esses enclaves como países independentes. Porque eles criam um precedente perigosíssimo. Imagine, por exemplo, algo semelhante em Taiwan, Hong Kong ou Xinjiang. A última coisa que os chineses querem ouvir é esta ideia de um território com pretensões separatistas obtendo o reconhecimento internacional de vários países como um Estado independente. O segundo ponto é uma questão mais ampla sobre a ordem internacional, sobre o uso da força.

Como assim?

Os chineses estão observando como os Estados Unidos e a União Europeia reagem ao uso da força por um país que está reivindicando território de um vizinho. E essa resposta foi relativamente fraca em 2014. As sanções que foram impostas à Rússia desde a anexação da Crimeia até o início do conflito armado da Ucrânia foram relativamente pequenas. Inclusive a Rússia sediou até uma Copa do Mundo depois de anexar a Crimeia. Agora é diferente. Minha opinião é que essa resposta profunda vai contar muito na maneira como China lida com Taiwan. Inclusive porque esta é muito mais importante para os Estados Unidos do que Ucrânia, pois está no coração das principais rotas de navegação do comércio global hoje em dia, as rotas que atravessam o Mar do Sul da China. Então se o que está acontecendo na Ucrânia já provocou toda essa resposta por parte dos Estados Unidos e da Europa, um eventual conflito em Taiwan seria ainda muito mais impactante.

Hoje o governo russo é um baluarte da extrema direita. Como explicar esse apoio da China comunista?

A relação da China com a Rússia e com a antiga União Soviética é mais complexa do que a similaridade ou a diferença dos seus sistemas ideológicos. Em 1949, quando houve a revolução comunista na China, a União Soviética era, sim, o aliado mais importante. Mas essa aliança não durou mais do que 15 anos, devido a disputas de liderança no bloco comunista e até questões de fronteira. No final dos anos 1960, soviéticos e chineses chegaram a travar um conflito que, embora não sendo considerado uma guerra, matou mais de mil pessoas. Foram essas tensões que levaram à aproximação entre China e Estados Unidos no início dos anos 1970. Moscou e Beijing eram governos comunistas, mas havia outros interesses nacionais que os empurravam para um conflito.

Como isso mudou?

Nos últimos 20 anos a Rússia da era Putin tem uma agenda de tentar restaurar o seu prestígio global tentar recuperar sua esfera de influência no seu exterior próximo e enxergou na China um parceiro importante. Tanto do ponto de vista da economia, quanto da política e da diplomacia, já que ambos têm uma postura de oposição a muitos dos princípios defendidos pelos Estados Unidos e pela Europa. Sobretudo depois da crise financeira global de 2008, vimos Rússia e China muito mais propensas a um discurso de confrontação com o Ocidente. É muito diferente dos anos 1990, quando a Rússia vivia um caos econômico e a China estava, em nome do desenvolvimento, com uma postura muito mais de diálogo e de aceitação daquilo que o Ocidente vinha propondo. No século 21 há um retorno do nacionalismo na China e na Rússia e de uma política internacional mais conflituosa.

A China se vê como uma potência global, nos moldes dos EUA e da antiga União Soviética, ou está mais para um domínio político regional e um protagonismo econômico global?

No período das reformas na China, entre os anos 1980 e 2000, eu diria que o foco da China era muito mais o desenvolvimento econômico. Mas, desde antes de Xi Jinping se tornar presidente, em 2012, o país voltou a ter um discurso nacionalista muito assertivo, com disputas territoriais mais fortes, tanto pelos limites marítimos no Mar do Sul da China, quanto, por exemplo, na fronteira com a Índia, onde ocorreram confrontos armados. O que a China ainda não tem é uma política de intervenções militares no exterior. Sua única base militar fora do território fica no Djibuti, no Chifre da África, de onde fazem operações contra pirataria em alto mar. A pergunta é até quando esse não intervencionismo chinês vai durar, à medida que crescem seus interesses econômicos no exterior, com grandes investimentos em toda a Eurásia, no Oriente Médio e, de maneira crescente, na África. O que acontecerá se uma guerra civil em um desses países afetar de forma mais incisiva os interesses econômicos chineses?

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