A guerra dos chips

Eles são a base de muitos dispositivos modernos. Estão no seu smartphone, na TV da sua sala e no computador que você pode estar usando agora para ler esse texto. São peças fundamentais para a produção de consoles de jogos, antenas de celulares, roteadores de internet, satélites, carros, equipamentos de diagnósticos médicos, computação de alta performance e até mesmo aviões de combate. Além disso, muitos avanços na inteligência artificial, computação em nuvem, internet das coisas e outras tecnologias dependem diretamente do desenvolvimento contínuo desse componente para impulsionar a inovação. Eles são, acima de tudo, a peça central da fricção geopolítica e da concorrência que estão remodelando o cenário econômico mundial e impulsionando decisões de investimento multibilionárias.

Integrante da classe de materiais capazes de conduzir correntes elétricas, os semicondutores são matéria-prima para a produção de chips usados nos mais diversos aparelhos eletrônicos. Com a popularização da IA e de veículos elétricos e autônomos, a demanda pelos semicondutores cresceu, fazendo com que o controle sobre a produção e o acesso à essa tecnologia virassem uma questão estratégica para muitos países e empresas. Por esta razão, dominar o mercado global de semicondutores é também dominar a economia mundial. Nesse cenário, duas nações se enfrentam em uma guerra: Estados Unidos e China.

A “guerra dos chips” entre as maiores potências do mundo tem raízes em uma série de fatores que se acumularam ao longo do tempo, com momentos de tensão e conflitos nos campos diplomático e econômico. Mas algumas das disputas atuais têm suas raízes no século 20, entre elas o apoio dos Estados Unidos aos nacionalistas durante a Revolução Chinesa, além da assinatura do acordo de proteção mútua com Taiwan, território considerado uma província rebelde pela China. Durante a Guerra Fria, houve uma tentativa do governo americano de reaproximação com a China para inseri-la no contexto da economia global capitalista. No entanto, a economia chinesa cresceu de maneira acelerada no final do século, alcançando um importante status no cenário internacional e ameaçando a hegemonia econômica norte-americana. A partir daí, essa rivalidade geopolítica e comercial alimentou as disputas por tecnologia, proteção da propriedade intelectual e controle sobre a cadeia de suprimentos de semicondutores.

China e EUA são historicamente líderes na fabricação de semicondutores. Entretanto, à medida que a China cresceu econômica e tecnologicamente, os líderes americanos começaram a se preocupar com a dependência em relação aos produtos tecnológicos chineses. Atualmente, a TSMC, com sede na cidade taiwanesa de Hsinchu, produz cerca de 90% dos semicondutores superavançados do mundo. Já a sul-coreana Samsung e a americana Intel também figuram na lista de maiores fabricantes de chips do mundo. Enquanto isso, a norte-americana Nvidia tornou-se fabricante líder mundial de chips de inteligência artificial. Também são potências a holding ASML, uma multinacional holandesa que produz máquinas para a criação de semicondutores, e a Advanced Micro Devices (AMD).

Nos últimos anos, os Estados Unidos têm se movimentado para bloquear o acesso da China aos semicondutores mais avançados, alegando questões de segurança nacional e risco de espionagem. Em 2018, o então presidente Donald Trump aprovou novas tarifas para produtos chineses, com objetivo de aumentar a compra de produtos nacionais e criar empregos. Quando a pandemia de covid-19 provocou interrupções nas cadeias de abastecimento, o governo entendeu que não poderia depender exclusivamente da China. Em 2022, Joe Biden assinou a Lei de Chips e Ciência para incentivar empresas de fora a construírem fábricas no território americano. No ano passado, os EUA também ampliaram a proibição da venda de chips de IA para restringir a capacidade chinesa “tanto de comprar quanto de fabricar certos chips high-end críticos para a vantagem militar”. O movimento de “encurralar” a China se intensificou nas últimas semanas, com a Casa Branca anunciando subsídios para empresas estrangeiras. A Samsung ganhará até US$ 6,4 bilhões para a fabricação de chips de última geração no Texas. Também foram aprovados recursos à Intel e à TSMC para evitar a escassez de semicondutores no país.

A China, por sua vez, acusa os EUA de praticarem “terrorismo tecnológico” e de obstruir injustamente seu crescimento econômico. Como resposta, Pequim começou a proibir o uso de computadores e servidores equipados com CPUs da AMD e Intel no país. A medida estabelece que órgãos do governo não podem mais comprar equipamentos com esses chips, apenas instituições municipais. Ao proibir a compra e o uso de hardwares de gigantes americanas, o governo chinês visa reduzir a dependência do sistema operacional Windows e outros programas ocidentais. Dessa forma, o país focará em soluções feitas no próprio país para acelerar a evolução tecnológica de chips chineses.

A grande questão é se os americanos conseguirão usar sua influência para enfraquecer Pequim na guerra pelos semicondutores e na disputa tecnológica. Para o economista José Eduardo Roselino, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), está claro que as sanções impostas pelos EUA “visam barrar o desenvolvimento chinês”. “A questão não é de sigilo ou de segurança nacional, e sim de uma disputa pela fronteira tecnológica”, disse. “Mas tudo indica que os chineses estão, sim, conseguindo produzir seus próprios semicondutores.”

Embora seja cedo para medir o avanço chinês nessa empreitada, Roselino citou os últimos lançamentos da Huawei. Depois de voltar ao mercado de celulares avançados com o modelo Mate 60, a multinacional de telecomunicações lançou nesta semana o Pura70. O chip Kirin 9000S usado nos dois modelos da Huawei foi supostamente fabricado pela empresa chinesa SMIC, apoiada pela China. A Huawei está sob sanção dos EUA desde 2019, o que a impede de fazer negócios com empresas americanas e usar propriedade intelectual de companhias do país. A empresa não tem mais acesso aos serviços do Google para seus smartphones, por exemplo. Na visão de Roselino, a capacidade tecnológica demonstrada pela China ao longo dos anos e o movimento da Huawei indicam que a política americana pode não sair como planejada. “Talvez os americanos tenham reagido tarde demais para tentar barrar o desenvolvimento chinês. Aparentemente, a China está lançando semicondutores, e o desafio dos analistas ocidentais é entender como eles conseguiram fazer isso.”

Para ele, o sistema financeiro chinês baseado no controle estatal faz com que o país tenha uma “capacidade enorme” de direcionar recursos, com uma “estrutura de ciência, tecnologia e inovação extremamente sofisticada”. “Desde o início dos anos 2000, a questão tecnológica é central no planejamento do Estado chinês. Eles entendem que o projeto nacional deles depende de construir forças produtivas mais avançadas, com uma economia cada vez mais voltada para a inovação.” Roselino acredita que os grandes “perdedores” desta guerra podem ser as empresas ocidentais e as aliadas dos Estados Unidos. Isso porque a China é o maior mercado para companhias como a Intel.

Por outro lado, Chris Miller, professor associado de História Internacional na Universidade Tufts, nos EUA, reconhece que a China fez enormes avanços, mas ele acredita que o país continua pelo menos cinco anos atrás nessa corrida. Em entrevista ao Brazil Journal no fim do ano passado, o autor de livros como A Guerra dos Chips (Globo Livros, 2023) diz que as proibições vão intensificar a dificuldade de empresas chinesas terem acesso aos chips mais sofisticados, gerando dúvida sobre a capacidade da China de produzir esse tipo de semicondutor.

Segundo o economista, é cedo para dizer. “O novo chip da Huawei (usado no Mate 60) é uma conquista, mas é uma conquista altamente irracional, em termos econômicos. Não é um grande avanço. Conseguiram fazer um celular um pouco pior do que o iPhone e potencialmente bem mais caro”, disse Miller. “Não é que seja especialmente bom, mas é bom o suficiente para que a China possa começar a proibir formal ou informalmente o uso de produtos estrangeiros como iPhones, no mercado chinês”. Em um artigo para o Financial Times, ele afirmou: “Dado que as restrições ocidentais às exportações de chips para a China significam que o país não pode produzir os chips de processador mais avançados, grande parte da produção do país será de chips de processadores básicos, que são amplamente utilizados em automóveis, bens domésticos e dispositivos de consumo”.

O mercado de smartphones não é o único parâmetro para analisar a capacidade da China e dos Estados Unidos nessa guerra tecnológica. Pequim pretende construir uma cadeia de fornecimento de semicondutores local que esteja protegida da ameaça de sanções dos Estados Unidos para se tornar uma superpotência automobilística em veículos elétricos e autônomos. Mas este é um assunto para outra pauta.

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