Nelson, acima de tudo Rodrigues
Nelson Rodrigues (1912-1980) não foi somente o maior dramaturgo brasileiro, foi um dos maiores escritores, desnudando a hipocrisia moralista da sociedade em peças, colunas de jornal e romances, alguns dos quais permaneceram inéditos até bem depois de sua morte. Embora ele próprio se declarasse um reacionário, sua obra revolucionou a cultura brasileira. Mas Nelson era bem menos singular do que se pode supor. A compreensão do Brasil que marca seu trabalho era uma característica familiar.
Seu pai, Mário Rodrigues (1885-1930), jornalista de ampla cultura, intensa atividade política e gosto pela polêmica, fez nome em Pernambuco e mudou-se com a família para o Rio, então capital do país, para, no comando de jornais como o Correio da Manhã e seu diário A Crítica, mudar a imprensa carioca.
Três de seus irmãos foram notáveis em suas áreas. Mário Filho (1908-1966), fundador do Jornal dos Sports, foi quem primeiro identificou o futebol como uma paixão popular, tornando-se um dos maiores incentivadores dos esportes no país. Joffre Rodrigues (1915-1936) fez a ponte entre os morros e o asfalto cariocas, organizando os primeiros desfiles de escolas de samba. E Roberto Rodrigues (1906-1929), ilustrador, era um ícone da arte moderna, assassinado em plena redação d’A Crítica por uma mulher, alvo de matéria sensacionalista do jornal.
No entanto, hoje todos estão virtualmente esquecidos – não contando Mário Filho ser o nome oficial do estádio do Maracanã.
O pesquisador, editor, diretor e produtor teatral Caco Coelho decidiu resgatar a memória dessa família e preencher uma lacuna na cultura brasileira. Editor da obra de Nelson, ele lançou em dezembro o livro Dossiê Rodrigues – A Genealogia (Ed. Mecenas), abrangendo o período de 1900 a 1934. Diferentemente da biografia O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro, focada na vida do dramaturgo, e do estudo Nelson Rodrigues – Dramaturgia e Encenação, de Sábato Magaldi, que olha apenas sua produção teatral, as mais de mil páginas do Dossiê procuram traçar uma biografia da obra dos Rodrigues.
Caco conversou com Meio sobre seus notáveis personagens e o que lhe revelaram os 25 anos de pesquisa dedicados ao projeto. Confira os principais trechos da entrevista.
De que forma Mário Rodrigues ajuda a formar o escritor Nelson Rodrigues
Na obra literária do Nelson, a cultura vem do Mário, o conhecimento, a paixão pelo Brasil. Eles, os Rodrigues, são cúmplices, autores e pronunciadores daquele sentimento de brasilidade que nascia. Paixão não só pelo Brasil que é, mas pelo Brasil que poderia ser e não é. Tanto que abro o livro com uma citação do Nelson: “O Brasil precisa ser feito, e nós não fazemos.” Enfim, Mário era de uma cultura assombrosa. Seus primeiros textos, escritos ainda com 14 anos, trazem citações com solidez de conhecimento. Sua inteligência era respeitada até por adversários figadais, como Assis Chateaubriand (dono dos Diários Associados), segundo o qual ninguém parava em pé diante da pena de Mário Rodrigues. E, ao mesmo tempo, era de uma de um envolvimento, de uma sensibilidade e uma afetuosidade tremenda. Aquele que ele destruía de manhã, de tarde ele abraçava e recebia com o maior afeto. Então, é Mário quem arma essa dialética para todos os Rodrigues. Não haveria uma peça ou uma linha de Nelson se Mário Rodrigues não tivesse apontado esse caminho. Aponta como se dissesse “esse é o caminho que precisamos criar de sensibilidade brasileira”.
E qual a consequência desse abraço à brasilidade?
A consequência é que eles vão ser os primeiros a perceber a paixão pelo futebol e pelo samba, vão ser os primeiros a nortear a maneira como se lê o jornal, a presença do jornal na nossa literatura e também no modo de entender o país. Joffre Rodrigues, irmão de Nelson, era um poeta deslumbrante, que vai ter grande influência no que chega a nós como rodrigueano. Rodrigueano é um insight. Nasce como um emblema do Mário Rodrigues, passa pela percepção que Mário Filho teve ao fazer as primeiras entrevistas no país com jogadores de futebol. Foram muito mais de 100. Se fomos percebidos como país do futebol, muito disso se deve a Mário Filho. O próprio estádio do Maracanã, que hoje leva o nome dele, é fruto de uma mobilização que ele capitaneou. Roberto Rodrigues foi considerado o maior desenhista das Américas, o sujeito que levou Cândido Portinari para a Escola de Belas Artes. Joffre, além de poeta, foi criador dos desfiles de escolas de samba. Havia uma programação intensíssima de carnaval no Rio, com clubes, blocos, as grandes sociedades, de onde vieram os carros alegóricos, mas foi Joffre que trouxe dos morros as escolas de samba. E hoje não há uma linha sobre eles.
E como pessoas que foram tão influentes na cultura do Rio acabaram virtualmente esquecidas?
Eu fui exatamente atrás da resposta para esse vil silêncio, nada inocente. Como é um dossiê, em vez de responder, preferi oferecer condições para que as pessoas entendam do que se trata, inclusive trazendo a complexidade de lados dos embates. A resposta que eu encontro é que nós, brasileiramente, temos um apagamento da História. O que Mário e os filhos faziam era falar, escrever e promover um Brasil que infelizmente não temos, mas poderíamos ter tido. Mário Rodrigues fez campanha de implantação de trens no Nordeste, que até hoje não foi feita, nos anos 1910. Na década seguinte já enxergava que o álcool era o combustível que nós deveríamos usar. Havia também a questão política. Desde 1922 Mário era ligado ao movimento dos tenentes. Ele passou a noite no Forte de Copacabana como os 28 revoltosos – que entraram para a História como os 18 do Forte. Foi preso em 1926 e passou mais de um ano na cadeia. Mas, nas eleições de 1930, apoiou Júlio Prestes, o candidato oficial, por conta de um conflito com o ex-presidente Epitácio Pessoa, tio de João Pessoa e articulador da aliança em torno de Getúlio. Epitácio mandara prender Mário por conta de uma reportagem. Com a revolução de 1930, já depois da morte de Mário, uma multidão depredou as instalações d’A Crítica. Na época a expressão era “empastelar”.
O que te motivou a resgatar essa memória?
O filósofo franco-argelino Jacques Derrida dizia que toda pesquisa é um instrumento para o futuro. Ela olha para o passado para aprender. A chama que levou foi essa. Eu me indagava qual a grande questão de Nelson. Era a traição? E aí concluí que a única questão dele era a brasilidade. A manifestação sensual, a alma feminina, tudo isso é instrumento de percepção da brasilidade.
Mas não há um conservadorismo nessa visão pecaminosa do sexo na obra dele? Na ideia de que toda nudez será castigada?
Eu tento oferecer instrumentos para compreender exatamente essa dialética que há na ideia de que toda nudez será castigada. A sociedade não condena a nudez? Não se mostra conservadora mentirosamente? Não tenta falsamente dizer que não é racista? É preciso entender que, ao mostrar isso, ele está fazendo uma denúncia. Não está passando a mão na cabeça, não está de acordo. O próprio Nelson contribui para essa confusão. No momento que ele chama a si mesmo de reacionário, e nós acreditamos, perdemos a profundidade da obra e ficamos numa superfície iludida por uma palavra ambígua. Ele, na verdade, se dizia reacionário por defender a liberdade individual. Em Álbum de Família, ele mostra uma sociedade repressora, machista e autoritária. Tira o manto azul da culpa e o sacode, soprando a poeira para nos mostrar como verdadeiramente somos. A vida como ela é. E nessa dialética há uma poética.
O que despertou essa paixão pela obra do Nelson?
Foi um movimento naturalmente teatral. Eu na infância já o via na TV em programas esportivos. Aquilo ficou, e mais tarde, já no Rio de Janeiro, eu me vinculei muito ao teatro por ser então casado com a atriz Vera Holtz. Foram oito anos no palco, ela como atriz, eu como produtor. Em 1989, Vera fez a novela Que Rei Sou Eu na TV Globo, interpretando a assistente do bruxo Ravengar, vivido pelo Antônio Abujamra. Eu e ele nos tornamos muito amigos e criamos uma companhia teatral para Vera, os Fodidos Privilegiados. Fodidos por fazermos teatro, privilegiados idem. Na imprensa éramos “F… Privilegiados”. Nossa terceira montagem foi A Serpente, última peça do Nelson, que eu e Abu dirigimos. Anos depois, um amigo me falou de um espetáculo em Nova York em cima de compêndios das peças de Shakespeare, e eu, numa reunião da companhia, propus fazermos isso com o nosso maior dramaturgo, o Nelson.
Chegaram a montar?
Então, um dos diretores da companhia, Tanah Corrêa, que faleceu no ano passado, lembrou que naquele momento a família do Nelson ainda estava com uma preocupação grande de envelopar a obra teatral, para que não se mexesse. Foi quando o Abujamra propôs irmos além do teatro. Eu mergulhei nas biografias do Nelson e descobri que havia um conjunto de obras inéditas. Nos enfurnamos na Biblioteca Nacional e localizamos a primeira leva de romances. Nós entregamos Núpcias de Fogo para o Ruy Castro, que ainda era o editor da obra do Nelson. Depois eu, já como o editor, publiquei A Mentira, primeiro romance que ele assinou com seu nome. Localizamos as colunas, o romance e as cartas que ele assinou como Myrna e o último romance como Suzana Flag.
O que você concluiu dessa pesquisa na obra inédita de Nelson?
Eu proponho uma classificação da obra dele diferente, mas não antagônica à do Sabato Magaldi. Não se conhecia todo esse material nem se percebia o quanto a cronologia influiu na obra do Nelson. Cada vez que ele mudava de local de trabalho havia uma divisão estilística na obra. Além disso, quando se promove o cruzamento entre o romance e as peças, percebe-se que todos estão ligados. Tudo o que nós vemos na peça A Valsa, aquele ambiente familiar melífluo, está no romance O Homem Proibido. Da mesma forma o romance A Mentira e a peça Viúva, Porém Honesta. Eu vejo três trilogias claras na obra teatral do Nelson. Primeiro a “tragédia brasileira”: Álbum de Família, O Anjo Negro e A Senhora dos Afogados. Depois a “trilogia do jornal”, na qual as redações têm uma grande importância: Boca de Ouro, O Beijo no Asfalto e Bonitinha, Mas Ordinária. E a “trilogia mundana”: Os Sete Gatinhos, Perdoa-me Por Me Traíres e Viúva, Porém Honesta. Aliás, há um deslize na interpretação do Sábato. Ele diz que Nelson inventou seu mundo. Não. Álbum de Família fala de Casa Grande e Senzala, dos porões da família colonial. O mundo dele é o Brasil.