Nova chance para um capitão esquecido
Foram necessários quase 60 anos para ser reparada uma injustiça histórica, mas finalmente o capitão Christopher Pike sentou-se na cadeira de comando da U.S.S. Enterprise sem servir de escada para ninguém. Estreou ontem na Paramount+ Star Trek: Strange New Worlds (Jornada nas Estrelas: Estranhos Novos Mundos, embora não haja título oficial em português), que é, ao mesmo tempo, mais uma série derivada do universo criado pelo roteirista e produtor Gene Roddenberry (1921-1991) e um retorno a sua concepção original. Vivido agora pelo ator Anson Mount, Pike pode ter conseguido o comando, mas será que conseguirá obter algo mais importante que lhe foi negado, o impacto cultural?
Em 1964, Roddenberry, já um roteirista respeitado, tinha uma ideia: uma série de ficção científica inspirada, entre outras fontes, nas aventuras de Horatio Hornblower, um heroico capitão da marinha inglesa na virada dos séculos 18 e 19, escritas por C.S. Forester (1899-1966). Queria fazer entretenimento para adultos. Conseguiu vende-la para a Desilu, produtora independente do casal de astros Lucille Ball e Dezi Arnaz, que financiou um piloto, A Jaula (os links remetem à Netflix) e o apresentou primeiro à CBS e depois à NBC.
‘Cerebral demais’
Na história, Christopher Pike (Jeffrey Hunter, um astro consagrado de Hollywood) comandava a Enterprise tendo como primeira-oficial a impassível Número Um (Majel Barrett) e como oficial de ciências o meio alienígena Sr. Spock (Leonard Nimoy). O roteiro, sobre um planeta cujos habitantes mantinham um zoológico de outras raças inteligentes, lidava com questões como realidade x percepção e o desejo por liberdade. E a NBC detestou.
Os motivos da rejeição foram vários. Para começar, a história era, na avaliação dos executivos, “cerebral demais” para o público americano. Também era inadmissível que uma mulher, a Número Um, fosse superior hierárquica a virtualmente todos os homens da tripulação. Ainda no campo do machismo, os uniformes de homens e mulheres eram iguais, sem realçar a formas femininas. Por fim, aquele sujeito de franjinha e orelhas pontudas parecia demais o diabo.
Entretanto, a NBC viu potencial no conceito e, num movimento raro, bancou um segundo piloto, e Roddenberry os obedeceu em quase tudo. O novo roteiro, Onde Nenhum Homem Jamais Esteve, era recheado de ação, a Número Um desapareceu e as mulheres a bordo foram embaladas em microssaias e botas de salto alto. Só do Sr. Spock ele não abriu mão. Mas eis que Jeffrey Hunter decidiu investir na carreira cinematográfica e recusou voltar ao papel de Pike. Em vez de simplesmente escalar outro ator, Roddenberry criou um novo capitão, James T. Kirk, vivido pelo canadense William Shatner. Ele, e não Pike, faria história.
Muitas raças, uma só espécie
Jornada nas Estrelas estreou em 8 de setembro de 1966 trazendo elementos incomuns para a TV americana, e não estamos falando da temática de ficção científica. A tripulação era multiétnica e com homens e mulheres trabalhando como iguais, premissa estabelecida como crucial por Roddenberry no guia da série. O ator George Takei, americano de ascendência japonesa, dizia que o piloto Sr. Sulu foi seu único personagem naquela década que não era um vilão.
A atriz e cantora negra Nichelle Nichols, que interpretava a tenente Uhura (adaptação da palavra uhuru, “liberdade” em swahili), a oficial de comunicação, estava insatisfeita com seu papel. No início de 1967, num encontro de militantes dos Direitos Civis, comentou com o reverendo Martin Luther King Jr. que pensava em pedir demissão. Levou uma bronca, no estilo Luther King, claro. Ela não podia desistir, disse o pastor, pois toda semana meninas negras viam na TV uma mulher negra que não era empregada, que trabalhava de igual para igual com homens e mulheres brancos. King, ela descobriu, era um grande fã da série.
Assassinado em 4 de abril de 1968, Luther King não viu a série romper uma barreira até então impensável. Em novembro daquele ano, no episódio Os Herdeiros de Platão, Kirk e Uhura protagonizaram o primeiro beijo entre uma pessoa negra e uma branca na TV americana, embora, no roteiro, os personagens estivessem sendo forçados. A NBC temia que a cena provocasse reação nos estados racistas do Sul, mas Nichelle Nichols recordaria que o episódio motivou o maior volume de correspondência elogiosa na série.
Uma ONU no espaço
Racismo não era o único tema em que a série ousava. Num momento em que os EUA travavam uma Guerra Fria com a União Soviética e uma bem quente no Vietnã, Roddenberry levava à telinha um futuro no qual a Terra estava unificada após conflitos que quase a destruíram. “Sempre achei, e continuo achando, que, se a Humanidade não aprender a viver junta, morrerá junta”, disse ele a Stephen Whitfield, autor, em 1968, da primeira “biografia” da série. Mais que pacificada, a Terra era integrante da Federação Unida dos Planetas, uma espécie de ONU galáctica, cujo braço de desbravamento, a Frota Estelar, era regida pela Primeira Diretriz, uma regra que proibia a interferência no desenvolvimento de outros povos.
Claro, era TV americana. Em 1967, o roteirista estreante David Gerrold apresentou sua proposta para o episódio Problemas aos Pingos: uma grande empresa sabota o fornecimento de sementes para uma colônia humana a fim de tomar o mercado de uma concorrente. A resposta da produção foi curta e grossa: “Big Business nunca são vilões na TV americana. Arranje alienígenas.” Os Klingons, a raça hostil de plantão, assumiram a sabotagem.
Glória depois do fim
A despeito da ousadia, ou talvez por causa dela, Jornada nas Estrelas não era um megassucesso. Além disso, sua produção era cara, e a NBC só não a cancelou na primeira temporada porque pesquisas mostravam que ela era vista por um público qualificado, gente como Luther King e o escritor Isaac Asimov. Ainda assim, a terceira e última temporada só aconteceu após uma mobilização pesada de fãs.
O fim da série, em junho de 1969 a transformou, paradoxalmente, num fenômeno. Num sistema chamado syndication, os episódios passaram a ser reexibidos por centenas de pequenas emissoras locais, atingindo um público muito maior que o da rede. Seus fãs formaram um grupo tão fiel que ganharam um nome próprio, os trekkies, com uma fação militante, os trekkers, capaz de passar dias discutindo o sistema de propulsão da Enterprise, nunca explicado nos episódios.
Uma série de desenhos animados, livros e merchandising pôs em movimento uma máquina de fazer dinheiro. Fãs organizavam convenções onde se comprava e vendia de tudo e aspectos técnicos da Enterprise eram motivos para brigas acaloradas. Uma segunda série começou a ser planejada sem Leonard Nimoy, que havia pegado ranço de Spock, mas a ideia foi trocada por longas para os cinemas após o sucesso de Guerra nas Estrelas (link no Disney+), em 1977.
Alguma coisa ficou para trás
Em 1987, diante dos lucros que a marca produzia, a Paramount encomendou de Roddenberry uma nova série. Ambientada quase cem anos após a original, Jornada nas Estrelas: A Nova Geração estreou em setembro daquele ano e foi um sucesso estrondoso. Muitos dos argumentos e personagens concebidos para a série abortada nos anos 1970 foram reaproveitados. O respeitado ator inglês Patrick Stewart emprestou seu vozeirão ao sisudo capitão francês Jean-Luc Picard, que comandou a Enterprise D por sete bem-sucedidas temporadas.
Mas, a despeito do sucesso e da qualidade da produção – um episódio chegava a custar mais que o orçamento de toda a série original –, o aspecto de desbravamento, de testar os limites do que se podia fazer em termos de conteúdo na TV aberta, não estava mais lá. Em parte, porque, nos quase 20 anos entre as duas séries, a sociedade e a mídia americana haviam mudado, os tabus eram outros. Também porque alguns princípios foram deixados de lado.
No oitavo episódio, Justiça, Picard viola abertamente a Primeira Diretriz para salvar o filho da médica de bordo, condenado à morte por um crime trivial aos olhos terráqueos, mas cujo princípio mantinha a paz e a ordem naquela sociedade. Uma superioridade moral ausente da série clássica. Não por acaso, é considerado um dos piores episódios da Nova Geração, pau a pau com o racista Código de Honra e o machista A Ordem Estabelecida, também da primeira temporada.
Muito do otimismo e da visão até um tanto ingênua de Roddenberry também desapareceu da série. Em filmes como Insurreição, de 1998, e diversos episódios das séries subsequentes, a Frota Estelar e a Federação aparecem como instituições amorais, prontas a se aliar ao mais forte contra o mais fraco e abandonar seus cidadãos em nome de interesses maiores. O que não impediu o sucesso das séries derivadas Deep Space 9, de 1993 a 1999, com o primeiro capitão negro, e Voyager, de 1995 a 2001, com a primeira mulher no comando. Enterprise, de 2001, não agradou tanto e durou apenas quatro temporadas.
Streaming, a fronteira final
Para fins de mercado brasileiro, Jornada nas Estrelas virou Star Trek em 2009, quando J.J.Abrams, turbinado pelo sucesso da série Lost, dirigiu um reboot cinematográfico da série original, criando uma linha do tempo alternativa para não ficar preso aos fatos da franquia.
Mas a fronteira final a ser desbravada era o streaming, e o universo de Roddenberry debutou ali em 2017 com Star Trek: Discovery (link no PrimeVideo). Atualmente em sua quarta temporada, é a primeira série da franquia protagonizada por uma mulher negra, a agora capitã Michael Burnham (Sonequa Martin-Green), tem o primeiro casal abertamente gay e o primeiro personagem não-binário. E talvez aí esteja a questão. São todos os primeiros em Jornada nas Estrelas, mas não desbravam caminhos. É ousado tê-los? Certamente. Fazem história? Improvável.
E como o novo capitão Pike – que apareceu na segunda temporada de Discovery – vai se sair? É difícil dizer por apenas um episódio, mas o começo foi promissor, sem spoilers. A Número Um e os uniformes iguais para homens e mulheres estão lá. A ideia de usar o nosso conturbado momento político como origem dos conflitos que arrasaram a Terra na cronologia da série mostra um destemor em desagradar que de alguma forma nos remete à série dos anos 1960. Que se danem os esquecidos executivos da NBC, Christopher Pike merecia aquela cadeira.