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O primeiro choro

Maria Altamira** chega cedo para ajudar Mãe Chica porque não é nada, não é nada, mas dá trabalho fazer o bolo que ela sempre faz para o Natal. Mas a mãe não gosta de ajuda na cozinha; Maria insiste. “Olha a sua idade, mãe! Não quero te ver cansada na hora do jantar. Aliás, quem vem? Só o Lino, a madame insuportável e o pirralhinho mimado?” “Não fale assim, filha. Lino é seu irmão”. Maria já ia dizer, “Meu não, eu sou adotada,” mas mordeu a língua bem a tempo de não magoar Mãe Chica, que a criou como filha. Chica continua, “Só chamei vocês, mas Lino avisou que vai passar rapidinho porque o Natal mesmo vai ser na casa dos sogros.” “Bravo!”, responde Maria. “Com a graça de Deus, ele tem sogros, gente de bem, patriotas, respeitadores dos costumes, defensores da pátria, defensores do monstro que é a Usina de Belo Monte” e faz uma continência, revirando os olhos para a mãe. “Por favor, não quero brigas, discussões nem caçoadas hoje. Quero paz neste Natal.” “Vai ter paz, juro que vou ficar só brincando com o mimadinho, trouxe até um presente pra ele, um arco e flecha Yudjá.” Chica suspira fundo, enquanto Maria ri, “Ah, mãe, não ponha maldade nisso. É só um presente. O pai e a mãe podem não gostar, mas o pirralho vai adorar.” “Meu neto tem nome, viu?” “Ah, desculpa. Juro que não vou estragar sua noite.” Outro suspiro: “Sei. Agora, se tu quer mesmo me ajudar, pega a forma grande ali debaixo da pia.”

Logo, Maria vai arrumar a mesa da sala. Ainda não tinha se acostumado com a pequenez e localização daquela nova moradia de Mãe Chica que fora forçada, no caos tremendo que a Usina de Belo Monte trouxe para a cidade de Altamira, a vender sua casa a uma dama do tráfico. Não era uma casa muito maior do que essa, mas estava no centro, um ponto que, para infelicidade de Chica, se era bom para ela, melhor seria para a venda de drogas. Sua vergonha depois que, ameaçada e perseguida, acabou tendo que aceitar um precinho vil pelo lar onde passara a maior parte de sua vida, a impediu de contar o que estava acontecendo para os filhos, nem mesmo para Lino, o único que, naquele momento, estava morando na cidade de Altamira. Maria e Avenor estavam em São Paulo e, quando souberam da venda, já nada poderia ser feito. E quando Chica, por fim, criou coragem para contar a Lino seu aperto, ele, enfurecido, arrematou o baque, gritando-lhe que aquilo só tinha acontecido por culpa da estupidez e burrice dela.

Ainda hoje, o coração de Maria Altamira é um punho se fechando a cada vez que pensa na tristeza da mãe que, depois de tudo que sofreu, parecia ter murchado.

A perspectiva da ceia de Natal, no entanto, faz renascer a vitalidade alegre de Mãe Chica. Iam jantar um arroz de forno, receita antiga, e depois, o bolo que ela só fazia para essa ocasião. A casa estava enfeitada com folhas verdes das poucas árvores próximas, e laços de fita vermelha que ela guardava de natais passados. Coisa pouca, mas fazia a casa respirar um momento especial. Sempre foram assim os natais na casa de Mãe Chica, quando os amigos dos filhos se reuniam ao seu redor. Coisa pouca, alegria muita. E agora, mesmo com a mudança ocorrida com Lino, suas brigas com a irmã, Avenor morando de vez em São Paulo, e os amigos de então espalhados pelo mundo, a data em sua casa ainda seria comemorada em torno de seu Menino Jesus de gesso, vestido de azul e deitado no bercinho de gravetos, feito por Avenor quando criança, e cercado pelos brotinhos de feijão que ela plantava no tempo certo para florescer ‘verde, que te quero verde’, e cercar o berço.

Como previsto, Lino e o filho foram os primeiros a chegar. (Não deu pra a esposa vir, explicou: está ajudando a mãe com a festa). De presente, trouxe, desajeitado, uma bolsa até bonita, mas de pouca serventia. Nesses tempos, quando Chica saía, levava apenas sua carteira antiga com o dinheiro contado. Que não lhe fossem roubar o que não tinha! Para a irmã, ele só desejou um Feliz Natal, de longe. Ótimo, porque ela tampouco trouxe presentes para esse irmão com quem foi tão ligada quando criança, mas com quem agora mal conversava, separados pelo barramento da usina, contra o qual lutaram quando jovens, ao lado dos amigos ribeirinhos e indígenas, até que Lino se convenceu que o progresso, afinal, exigia sacrifícios (não dele, que se tornou um funcionário daqueles que, pouco antes, considerava inimigos.) A Usina de Belo Monte era um tipo de barragem que se estendia por todo lado e também os separava.

Lino não aceitou sequer um pedaço do bolo feito pela mãe com tanto esmero (iria jantar logo mais, explicou). Em compensação, fingiu que não viu a gulodice do filho (aliás, nunca via) comendo um pedação caprichado e equivalente a dois, sob o sorriso benevolente da vó e da tia.

Depois que eles saíram, Maria escutou o assobio de Jurandir na janela. Ele vinha da aldeia Muratu, onde os dois estavam vivendo com os parentes Yudjá/Juruna. Beijou Maria, abraçou a sogra e colocou dois presentes aos pés do berço do Menino Jesus. Elogiou os arranjos de folhas verdes e fita vermelha; era sincero, e não poupava elogios às habilidades das mãos da sogra, que fora demitida do hospital onde começou a trabalhar, mocinha, como ajudante de enfermagem. O novo diretor (vindo no compasso da construção de Belo Monte) foi quem a demitiu por velha, apesar de sua experiência e energia intacta, e Chica – que sonhara morrer trabalhando naquele hospital onde muitos pacientes, especialmente os indígenas, preferiam seus cuidados aos de qualquer outra enfermeira com diploma – agora se distraía fazendo arranjos com folhas e fitas que, às vezes, vendia no mercadinho perto.

Já tinham jantado e estavam começando a comer o bolo quando ouviram um roçar na porta.

— É o roçar de Saião, mãe! Não sabia que ele estava na cidade.

— Nem eu — disse Mãe Chica. — Mas já devia saber que ele não ia deixar de vir, como nunca deixou, ainda mais sabendo que tu também tá na cidade, filha.

Maria nem escutou o que a mãe falava; já estava abrindo a porta e abraçando o querido amigo da infância e de sempre. A seu lado, uma jovem de uns 18 anos no máximo, barriga proeminente de grávida, sorria na expectativa. Ele a apresentou, orgulhoso e alegre:

— Esta é Mussí, minha noiva fazendo nosso filho crescer, e tu vai ser a madrinha dessa barriga, Altamirita, é bom já ficar sabendo. — Encantada, Altamira abraçou Mussí. Viu logo que também era indígena, uma parente. E que alegria ver Saião contando para todos que os dois iriam morar na aldeia do povo de Mussí, que viviam mais para o norte.

— Você vai deixar sua vida desgarrada, meu filho? — brincou Mãe Chica, e se virou para Mussí — Eu chamo esse moço de filho porque é como se fosse, criado com Maria e Lino. Faz parte do meu coração tanto quanto eles.

Mussí sorriu. — Ele já me disse que a senhora é mãe pra ele.

— Pois num sou? Ele perdeu a mãe muito cedo! E todo Natal, seja como for e de onde estiver, ele aparece para me trazer um presente. Deixa eu ver logo o que é dessa vez, meu menino.

Saião lhe dá uma caixa de presente, embrulhada em papel vermelho. Dentro, um celular último tipo. Mãe Chica dá um pulinho de alegria e um abraço apertado nele, mas em um minuto sua fisionomia se entristece, ela olha para Mussí e desiste de perguntar a ele se é roubado. Será que a menina estava sabendo que ia se casar com um ladrão de carga de caminhão? Saião contou pra ela ou vai deixar a pobrezinha descobrir no dia que a polícia vier atrás dele? Olha para o rapaz com tristeza: ele já não lhe prometera que não lhe daria presente roubado? Mãe Chica relembra a vida triste do menino que roubava na feira para levar comida para a mãe drogada. Ou que almoçava na casa de Chica com Avenor, Lino e Maria, e pedia para levar o que sobrara para a mãe. Cresceu roubando. Coisas miúdas de pequeno, comida, uma roupa nova, e adolescente, coisas maiores, até começar a fazer parte das gangues de carga, ficar conhecido da polícia e viver foragido. Passava um tempo sumido, mas sempre aparecia, uma amizade forte o unia àquela família. Mãe Chica sempre pelejou para Saião deixar a vida bandida que, mais dia, menos dia, o deixaria morto ou na cadeia, mas ele lhe perguntava: “Como sair disso, Mãe Chica? O que sei fazer, a não ser roubar?” “Vem morar comigo”, ela dizia. “Pelo menos comida e roupa tu vai ter até arrumar alguma coisa legal pra fazer.” “Aqui ninguém vai me dar emprego, a senhora sabe”. E tinha razão. Sua fama de menino vadio e ladrão fora a que se colara à sua pele, e não a do menino que se esforçava para cuidar da mãe, e tinha um bom coração, como todos que o conheciam sabiam. Mãe Chica sabia. Ah, se ela pudesse fazer mais por ele! Muitas vezes, conversava com Maria sobre o destino de Saião, mas nunca encontrava saída, a não ser lhe dar o afeto e o aconchego de uma família.

Saião soube, de imediato, o que ela estava pensando do celular.

— Fica tranquila, Mãe Chica, não é roubado. Um amigo que me deu mas pensei logo em trazer pra senhora. Sei que seu celular tá velho demais, a senhora mesma vive dizendo que ele tá parecendo jabuti, com a casca cheia de remendo, é ou não é?

— É, meu celular tá velhinho mas não era para você me dar outro. Eu digo que ele tá que nem jabuti, mas é pra fazer graça.

— Eu prometi pra senhora num lhe dar mais presente roubado, e cumpro minha promessa.

— Tu, que sempre disse que não mente pra mulher, agora tá mentindo? – comentou Maria, irônica.

— Não, Altamirita, não tô mentindo. Mussí tá de prova, num é, xodó?

— Verdade mesmo, o celular num foi roubado – Mussí sorriu, achando graça da conversa. — Um amigo rico que gosta dele deu de presente. — Ela riu mais. — Quem conhece Saião gosta muito. Meu pai gosta. Minha mãe, também. Os parentes.

Isso todos ali sabiam que era verdade. Saião tinha o carisma e a generosidade que atraíam quem se aproximasse dele. Um ser humano com um coração que não se corrompeu ainda que a vida tenha lhe traçado um caminho do qual não conseguia escapar.

Maria se levantou e carinhosamente mexeu em seu cabelo: Se um dia eu tiver que te visitar na cadeia, tu sabe que arranco seu couro cabeludo, num sabe?

A noite seguiu com alegria e risadas, mas Saião e Mussí não demoraram. Estavam abrigados longe, no lugar que lhe servia de esconderijo quando estava na cidade. Quando pudesse, viria buscar Maria e Mãe Chica para conhecerem seu filho que logo nasce. Despediram-se já com saudades.

Maria Altamira e Jurandir dormiriam ali aquela noite, também uma maneira de fazer mais companhia para Mãe Chica. Sempre que vinham à cidade de Altamira, remando pelo Xingu, faziam o pouso ali.

No meio da noite, batidinhas na porta. A primeira a acordar foi Mãe Chica. Abre a fresta da porta e um menino, pé no chão, quase sem fôlego pela corrida, sussurra: “Saião pediu pra avisar que tá cercado pela polícia. A mulher tá tendo o nenê. Pediu pra senhora vir comigo. Por favor. Ele mandou pedir por favor.”

Mãe Chica não vacilou: “Fique aí que já me visto.”

Maria Altamira e Jurandir, que também já tinham assomados à porta, iriam juntos.

Era longe o lugar, mas chegaram. Encontraram os policiais cercando um velho barraco no meio do mato. Cara de quem estavam tudo, menos contentes, com aquele cerco na noite de Natal. Mas o próprio chefe tinha ido buscá-los, um a um, depois que recebeu a denúncia de que ladrões de carga estavam na cidade, inclusive o famigerado Saião que, há anos, ele procurava. Natal ou não, ele não escaparia. Um “olheiro” tinha indicado seu esconderijo. E dessa vez, tinha até a ordem de prisão, amassada no bolso esquerdo da farda, parecendo queimar seu peito.

Os soldados barraram a entrada no barraco: ali ninguém entrava, só saía.

Gemidos abafados de Mussí se faziam ouvir na escuridão do mato. Maria explicou aos soldados que tinham vindo fazer o parto da mulher lá dentro, mas o chefe aproveitou para dizer que Saião tinha era que se render pra acabar logo com aquela história. Eles prometiam levar a mulher para o hospital. Eles não tinham escapatória. Que o menino morresse, se fosse essa a vontade de deus. Maria, no entanto, com muita argumentação, convenceu-o de que Saião jamais se renderia sem ver o filho e o menino estava correndo o risco de não conseguir nascer. Se isso acontecesse, aí mesmo é que Saião jamais se renderia.

— É Natal! — soou a voz enérgica de Mãe Chica. — É um inocente que está morrendo. O senhor vai deixar um filho de Deus não nascer? Nenhum cristão faz isso.

O chefe por um momento pareceu se comover, coçou a cabeça, hesitou um pouco e disse, bravo, como quem não quer dizer o que está na sua boca:

— Vou deixar a senhora entrar, sua ajudante também, mas esse aqui fica de refém. Se o ladrão escapar, levo esse como cúmplice. — E fez um sinal para o soldado a seu lado algemar Jurandir.

Elas entraram.

Saião, ao lado de Mussí, olhou-as como se com elas entrasse a única salvação.

— Graças a Deus, vocês chegaram. Mussí pede desculpas, mas não está dando conta.

De fato, bastou um olhar para Mãe Chica perceber que a situação era complicada. Fez o nome do pai, pedindo ao Menino Jesus que lhe desse forças e conhecimentos, ele que também havia passado bonito e forte por essa provação. Tinha trazido panos limpos e olhou aliviada para um fogareiro onde um caldeirão com água estava fervendo. Saião, em seu pânico, fora capaz de pensar nisso.

Ela sorriu para Mussí.

— Viemos te ajudar, filha. Pode ficar tranquila.

E assim foi. Um parto demorado, dolorido, gritos cortantes da brava Mussí. Muita tensão entre Mãe Chica e Maria e Saião que ficou agarrado à mão da noiva, como se fosse ele a sentir as dores. Maria tinha a impressão de que às vezes ele também gritava junto com a mulher que paria.

Até que, dia rompendo, o choro do pequenino ser humano se irradiou, anunciando a beleza e força da nova vida que também rompia, destravando o peito de todos, até dos soldados lá fora. O primeiro choro de um serzinho tão frágil, inocente, inofensivo — a nascer no mato denso, à beira de um rio que, embora conspurcado, não deixava de ser o rio que todos eles, culpados ou não, amavam — era o mesmo choro primevo que acompanhava a humanidade desde sempre e demonstrava, mais uma vez, o quanto ela, a humanidade, dependia de todos eles.

Um dos soldados chorou, como se tivesse escutado um milagre.

Saião abriu uma frestinha da porta e repassou sua alegria: “É um menino!”

Os soldados se abraçaram, como se fossem irmãos daquele pai.

Por fim, quando depois de se despedir de Mussí e seu filho, Saião abriu a porta e saiu com as mãos estendidas, largo sorriso nos lábios, não se sabe quem puxou palmas e as palmas vieram como se, para isso, eles tivessem esperado todo o tempo que durou o cerco. Mesmo o chefe que, no entanto, logo se recompôs e deu sua ordem: “Vamo, vamo. Tá na hora, seu pai de meia tigela. Tava achando que ia escapar dessa, hein?” E Saião foi algemado, sem que o sorrisão largo abandonasse seu rosto. Não seria a cadeia que acabaria com a felicidade daquele dia.

Dentro do barraco, Mãe Chica estava arriada na única cadeira velha. Nunca tinha feito um parto tão difícil. Deviam estar perto da beira do rio. Com a porta do barraco agora aberta, dava para sentir a brisa do Xingu chegando. O dia prometia ser bonito. Maria secou as lágrimas de Mussí e lhe disse, “Você e o nenê vão ficar em nossa casa até Saião ser solto. Não vai demorar muito. Eles podem prender Saião, mas soltam. Ele tem um amigo advogado que é muito bom. Já foi preso outras vezes, e nunca ficou muito tempo.”

Mussí, nenê aconchegado nos braços, abriu um sorriso de agradecimento:

— Quando sair da cadeia, ele me falou que vai largar de vez essa vida pra morar na minha aldeia, com nosso filho.

Maria Altamira sorriu:

— Se ele disse, é verdade. Saião nunca mente pra mulher.

*Escritora e tradutora, Maria José Silveira é formada em Comunicação, Antropologia, com mestrado em Ciências Políticas. Seu primeiro romance, A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas (Globo/2002), recebeu o prêmio APCA de Escritora Revelação. Tem livros publicados nos Estados Unidos, China, Itália, França, Chile e Espanha.

**Os personagens deste conto inédito, feito especialmente para o Meio, foram tirados do romance Maria Altamira, da mesma autora, publicado pela editora Instante, e finalista dos três principais prêmios literários do Brasil em 2021: Oceanos, Prêmio São Paulo, Jabuti.

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