Suspense, sí señor
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A disseminação dos serviços de streaming transformou de forma radical a maneira como vemos TV — frequentemente sequer é numa TV. Mas a Netflix em particular nos trouxe um benefício em especial: abriu nossa janela para a produção para além dos enlatados americanos. Hoje conhecemos a linguagem narrativa de diversos países da Ásia e da Europa continental e acostumamos nossos ouvidos aos mais variados idiomas.
Um dos países cuja produção foi mais beneficiada por essa abertura foi a Espanha, especialmente após o sucesso de A Casa de Papel, com suas cinco temporadas, e de Merlí, com três, além de spin offs para ambas. Um dos gêneros mais ricos desse lote ibérico é o suspense, que acaba de receber na Netflix duas adições de destaque: O Cuco de Cristal e Duas Covas.
Pensando nisso, montamos uma resumida lista de séries de mistério que valem a pena conferir na plataforma, mostrando que há crimes a desvendar para além da Casa de Papel.
Baseada no livro homônimo de Javier Castillo, a série se desenvolve paralelamente em duas épocas, 2004/2005 e 2024, com uma retrocedida a 1979 no penúltimo episódio. Em uma noite, o menino Juan vê o pai, o policial Miguel, tentando nervosamente limpar sangue das mãos e das roupas. Interpelado, ele diz que o sangue não é seu e que apartou uma briga, mas faz o filho jurar que guardará segredo para não preocupar a mãe. Vinte anos depois, em Madri, a jovem médica Clara sofre um infarto no meio de um atendimento e acorda do coma induzido com o coração alheio no peito.
Tendo de se adaptar à nova realidade, Clara fica obcecada em descobrir a identidade do doador, mantida em sigilo pela lei espanhola. Com a informação de que era um homem morto em um acidente de carro, ela faz uma pesquisa online e, auxiliada pelo próprio conhecimento médico, chega a Carlos, um rapaz com a sua idade, 26 anos, que vivia na pequena e fictícia cidade de Yesques. Após um contato telefônico um tanto constrangedor, Clara é convidada por Marta, mãe de Carlos, a visitar o vilarejo.
Chegando lá, ela fica sabendo que Yesques é marcada por desaparecimentos misteriosos, o último deles, em 2005, do policial Miguel, marido de Marta e pai de Juan e Carlos, dias depois do sumiço de mais uma jovem. Juan, hoje policial, guarda até hoje a promessa que fez ao pai na última vez que o viu. De volta a 2004, um incêndio, uma morte e um pingente de cristal em forma de pássaro reabrem uma ferida no peito de Miguel, o desaparecimento, em 1979, de Magdalena, sua irmã mais velha. Para todos no vilarejo, ela fugiu dos maus tratos nas mãos do pai abusivo, mas o irmão não acredita nisso.
Por trás de toda a trama de O Cuco de Cristal está o abuso contra as mulheres. Frases como “ela depois retirou a queixa” e “o que acontece em casa fica em casa”, esta dita pelo próprio chefe de polícia, sucedem-se de forma incômoda, mostrando uma comunidade que por si só já oferece algum solo fértil para que algum grau de psicopatia ou umas doses a mais de álcool sejam desculpas para tragédias.
Sem spoilers, alguns detalhes, como um rabisco instintivo que Clara começa a fazer após o transplante, passam a ideia de que possa haver algo menos “natural”, quase como uma “memória” do órgão doado. Mas não. Não há qualquer sobrenatural ou fantasia em Yesques, apenas maldade e indiferença.
Com apenas três episódios, assistir de uma só vez a Duas Covas nem qualifica como “maratona” — 400m rasos, se muito. A série, também recém-chegada ao streaming, começa com o desaparecimento de duas amigas de 16 anos, Verónica e Marta. Após dois anos, a polícia não chega a lugar algum e decide encerrar o caso, para a revolta de Isabel (Kiti Mánver), avó de Verónica, que se junta Rafael (Álvaro Morte), pai de Marta, para investigar o sumiço por conta própria.
A dupla entende o motivo para a ineficiência da polícia ao constatar que o desaparecimento está relacionado a uma rede de exploração sexual que envolve homens muito poderosos. Dada a curta extensão da série, não é possível avançar em detalhes sem dar spoilers, então é melhor explicar o título. Diz o ditado: “se busca vingança, cave duas covas”, já que esse desejo também acaba por consumir o vingador.
Enfrentando um sério bloqueio criativo, o pianista Alex, premiado e atormentado compositor de trilhas sonoras, se isola em uma casa antiga, mas confortável numa cidadezinha na costa das Astúrias. O isolamento é relativo, já que mantém um contato próximo com o simpático casal mais velho, Leo e María, da casa mais próxima e um romance mais ou menos secreto com Judy, dona da hospedaria local. Numa noite de tempestade, voltando de um jantar na casa dos vizinhos, a 500 metros da sua, Alex é atingido por um raio. Sobrevive com o corpo marcado por cicatrizes e passa a ter visões cada vez mais sombrias envolvendo as mortes ultraviolentas de Leo e María.
Detalhes confirmados das premonições, como um portão quebrado, o deixam alarmado, ao mesmo tempo em que as visões passam a envolver também Judy e os filhos de Alex, que vivem no exterior com a mãe e o padrasto. Ao mesmo tempo, Alex descobre que os vizinhos têm um segredo no passado que pode explicar o motivo para alguém querer matá-los de forma tão cruel. Quando, num movimento inesperado, as crianças vão ficar com ele, o cenário para o desfecho trágico está montado.
Embora tenha apenas seis episódios, A Última Noite em Tremor é uma série longa. Primeiro porque cada parte tem uma hora de duração. Segundo porque o ritmo é propositadamente lento, detalhando o passado do protagonista, em particular sua relação com os pais, expondo um momento decisivo da vida de Judy e elevando a cada sequência a tensão. Longe de ser cansativo, o formato nos deixa sentados na ponta do sofá conforme cada peça que compõe o mosaico da tragédia vai se encaixando.
A exemplo do Cuco de Cristal, esta série de duas temporadas saiu da imaginação do escritor Javier Castillo. Sua personagem principal é a jovem jornalista Miren Rojo (Milena Smit) que estagia no Diario Sur, principal periódico da cidade turística de Málaga, e tenta superar o trauma de um estupro brutal (como se houvesse outro tipo). Ela mergulha no caso de uma menina, Amaya Nuñez, que desapareceu na multidão durante uma importante festa folclórica da cidade. Mesmo tutoreada por um colega veterano, sua investigação, assim como a da polícia, bate em um beco sem saída. Quem quer que tenha levado Amaya desapareceu sem deixar vestígios.
Anos depois, Miren, já uma repórter calejada, mas ainda carregando seus traumas, recebe uma fita de vídeo em que Amaya, um pouco mais velha do que na época de seu desaparecimento, brinca em uma sala. A perspectiva de que a menina, agora provavelmente adolescente, esteja viva reacende o ímpeto da jornalista para quem a impunidade do sequestrador é um paralelo para o que aconteceu após seu estupro. Reabrir o caso, porém, vai reabrir feridas, inclusive na família de Amaya. Embora tenha duas temporadas, a primeira encerra a narrativa do desaparecimento de Amaya, com a segunda sendo uma investigação diferente.
Quando a primeira temporada foi lançada, em 2023, especulou-se que Castillo, nascido em Málaga, tivesse se inspirado em um crime real, mas o escritor, que participou da adaptação para a série, desmentiu o rumor. Segundo ele, ao verter o livro para outro formato, foi necessário deixar de lado alguns elementos e trazer outros, o que pode ter aguçado alguma semelhança com o o caso verdadeiro.
O título dessa série de mistério diz muito, ao contrário de seu protagonista. Sergio Ciscar (Arón Piper), então adolescente, é condenado pelo assassinato dos pais: os dois caíram do prédio onde a família vivia, e uma testemunha viu o jovem observando os corpos da janela. Em sua defesa, ele alegou… nada. Desde a noite do crime, Sergio não diz uma palavra, embora médicos constatem que ele é capaz de falar, apenas não quer.
A situação intriga a psiquiatra Ana Dussel (Almudena Amor), que convence a Justiça, com a ajuda de um pastor, a autorizar um experimento. Após seis anos, Sergio é posto em liberdade condicional por bom comportamento — o que é até justo, já que nesse tempo todo ele nunca disse uma palavra rude a alguém na cadeia. O que o rapaz não sabe é que todos os seus movimentos, o apartamento onde vive e o local onde trabalha estão sendo monitorados ininterruptamente por câmeras e microfones pela equipe de Ana, ao mesmo tempo em que a polícia só espera algum passo em falso para levá-lo de volta à cadeia.
Ana tem um interesse especial no caso, já que Blanca, a mãe morta de Sergio, era um psiquiatra de renome que pesquisava drogas para alterar comportamentos violentos. Mais que resolver o caso, ela busca saber o que aconteceu com o trabalho da vítima. Já Sergio tem uma motivação própria: encontrar a irmã mais nova Noa, que testemunhou o crime e pode ser a chave de todo o mistério. Há ainda uma moça, Marta (Cristina Kovani), por quem o jovem se interessa, apesar de (ou por) ela ter um relacionamento tumultuado com um namorado abusivo.
A trama mistura o pior de vários mundos. A falta de limites éticos na busca de uma descoberta científica revolucionária; o furor punitivista dos agentes da lei, interessados em punir um culpado mesmo sem entender o caso; e as dificuldades para uma pessoa, mesmo falante, se reintegrar à sociedade após uma temporada atrás das grades.
Sabe aquelas séries em que nada nem ninguém é o que realmente parece? Isso define com perfeição A Sagrada Família, que se estendeu por duas temporadas. No final da década de 1990, a mãe solteira Gloria (Najwa Nimri) vive em Madri com o filhinho temporão Hugo e a babá, Atiana (Carla Compra), relacionando-se com outras mulheres de classe média alta e diferentes relações com a maternidade. Uma tem um filho com deficiências de aprendizado, outra é estéril e busca uma adoção, e a terceira, Caterina, parece ter uma vida comum, não fosse pela extrema curiosidade sobre Gloria.
Das portas das casas para dentro, as histórias são outras. Gloria na verdade é Julia Santos, Atiana é sua filha Mariana e Hugo é seu filho/neto. Há ainda um outro filho adulto, Abel, na verdade Eduardo (Iván Pellicer), que passa os dias confinado em casa. Calma, faz sentido. Julia tinha um filho mais velho e favorito, Santi, cuja esposa, a argentina Natalia, tinha problemas de saúde que não lhe permitiriam sobreviver a uma gestação. Para que o casal realize o sonho da maternidade, Julia se oferece como barriga de aluguel.
Como se a situação já não fosse rocambolesca, Santi morre afogado ao tentar salvar Mariana, o que compromete seriamente a sanidade de Julia. Vendo no bebê seu último elo com o filho morto, ela decide sequestrar a criança, com a cumplicidade de Mariana e Eduardo. Os três simulam as próprias mortes e de Hugo em um acidente de carro, fogem da Argentina para a Espanha sob identidades falsas e de lá pretendem, com documentos forjados, migrar para o Estados Unidos.
Mas Gloria/Julia não é a única a guardar segredos. A nova amiga Caterina (Alba Flores) e seu marido German (Alex Garcia) se chamam Edurne e Diego e são detetives/matadores agindo a mando do pai de Natalia, um poderoso empresário argentino. Ele não acredita no acidente e contrata a dupla para localizar e trazer de volta o neto, de preferência livrando-se dos raptores. Para completar a teia, em uma de suas escapulidas noturnas do porão, Abel/Eduardo conhece e começa a ter um relacionamento com German/Diego.
Por mais caótico que soe, o roteiro de A Sagrada Família é bem amarrado e nos leva a questionar os limites entre o amor e a loucura e o quanto é possível sustentar uma mentira com tantos envolvidos. Najwa Nimri, rosto familiar das séries A Casa de Papel, Vis a Vis e 30 Moedas, destaca-se no elenco sólido.
Trilogia Baztán
Pode-se argumentar que não se trata exatamente de uma série, mas de três longas metragens baseados em livros de Dolores Redondo: O Guardião Invisível, Legado nos Ossos e Oferenda à Tempestade. Mas como os três têm a mesma protagonista, a inspetora Amaia Salazar (Marta Etura), e contam uma trama linear ambientada na cidade de Baztán, em Navarra, merecem entrar na lista.
Uma jovem é achada estrangulada em um bosque perto da dita cidade. Está nua, teve os cabelos penteados e os pelos raspados e tem sobre o púbis um txantxigorri, doce típico da região. Não é o primeiro caso assim e tem toda a aparência de um crime ritualístico, o que condiz com o ambiente extremamente supersticioso do lugar. A polícia decide enviar a inspetora Salazar, uma policial-prodígio com estágio no FBI e natural de Baztán.
O problema é que ela não tem qualquer motivo para retornar a sua cidade natal, de onde traz as lembranças dos abusos cometidos pela mãe, a ponto de o pai entregá-la para uma tia. A mãe hoje está em um manicômio, mas a rispidez a que Amaia estava habituada agora vem de Flora, sua irmã mais velha que dirige os negócios da família, mais especificamente, uma padaria. Não chega a ser surpresa quando se revela que foi de seus fornos que saiu o doce que estava na vítima.
Embora haja uma certa aura de sobrenatural, com um Deus ex machina explícito no fim do primeiro filme, o mal ali é bem mundano: desejo por poder se alimentando da loucura, do misticismo e da superstição. A única nota destoante é que, no terceiro filme, Amaia parece desaprender tudo o que trouxe do FBI e não consegue ver a situação que qualquer espectador identifica como óbvia, mas nada que comprometa a excelente trilogia.

























