Trump queria, mas María levou
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A venezuelana María Corina Machado seguiu o roteiro esperado de todo laureado pelo Comitê Norueguês. Quando soube de sua vitória do Nobel da Paz, demonstrou surpresa e declarou não ter palavras para expressar o que sentia naquele momento. Passado o choque, a líder inconteste da oposição ao chavismo afirmou que o prêmio deveria ser dedicado, na verdade, a todos os venezuelanos que lutam contra a opressão e as injustiças de um governo autoritário liderado por Nicolás Maduro. Em seguida, Machado recorreu às redes sociais para dedicar sua conquista ao presidente americano, Donald Trump, a quem classificou como um dos principais apoiadores da luta venezuelana pela democracia.
Ambígua sobre uma intervenção militar americana na Venezuela para depor o regime chavista que controla o país há 26 anos, María Corina sabia, ou soube logo nas primeiras horas da manhã, que Trump ansiava mais do que tudo pelo Nobel da Paz de 2025. Ela, assim como grande parte da comunidade internacional, reconheceu que o prêmio se tornara uma obsessão para o presidente dos EUA, uma obsessão que tem moldado a geopolítica mundial em tempos de instabilidade e incerteza. Entre os resultados dela está o acordo de paz entre Israel e Hamas alcançado esta semana.
Em Washington, a notícia de que María Corina Machado havia conquistado o Nobel da Paz não foi bem recebida. Logo pela manhã, o porta-voz da Casa Branca, Steven Cheung, usou as redes sociais para criticar a decisão do Comitê. “O Comitê Nobel provou que prioriza a política acima da paz”, escreveu no X. No mesmo post, deixou claro que a escolha de María Corina havia incomodado seu chefe na Casa Branca, sem mencionar, no entanto, o nome da política venezuelana, uma das mais importantes aliadas dos Estados Unidos na América do Sul. “Trump continuará fazendo acordos de paz, encerrando guerras e salvando vidas. Ele tem o coração de um humanitário, e nunca haverá ninguém como ele, capaz de mover montanhas com a força de sua vontade”, completou.
Trump fez pressão inédita sobre os noruegueses para garantir o Nobel da Paz. Há poucos meses, o presidente ligou para Jens Stoltenberg, atual ministro das Finanças da Noruega e ex-secretário-geral da OTAN, deixando claro que contava com a premiação. Na conversa, Trump mencionou o desejo de discutir com Stoltenberg as tarifas contra a Noruega, além do próprio Nobel da Paz, numa atitude que se assemelha ao que fez com o Brasil ao pressionar o Planalto para evitar o julgamento de Jair Bolsonaro. Nas semanas seguintes, emissários da Casa Branca sinalizaram aos líderes noruegueses que os Estados Unidos poderiam considerar a Noruega como “inimiga” caso Trump não fosse o escolhido.
A escolha de María Corina parece ser uma confluência de fatores que marcaram a premiação deste ano. A nomeação de uma mulher que se opõe a um regime ditatorial em desalinho com os interesses ocidentais está em sintonia com o histórico recente de laureados com o Nobel da Paz. Ao mesmo tempo, a escolha reforça a relação entre a política externa norueguesa e as estratégias dos Estados Unidos, concedendo um dos prêmios mais prestigiosos do mundo a uma das poucas aliadas de Trump na América do Sul — um continente cético quanto ao retorno da Doutrina Monroe, defendida pelo presidente americano.
Entre 1901 e 2001, o Comitê Norueguês concedeu o Nobel da Paz a apenas nove mulheres. Homens brancos, especialmente europeus, receberam a honraria 79 vezes no mesmo período. Com as crescentes pressões por equidade de gênero, o Comitê passou a ser mais receptivo às candidaturas femininas a partir dos anos 2000. Entre 2002 e 2025, dez mulheres conquistaram o prêmio. Quase todas, como María Corina, se destacaram por sua luta contra regimes ditatoriais contrários aos interesses ocidentais, enfrentando o Irã, o Talibã, o Estado Islâmico e a Rússia. Regimes totalitários aliados ao Ocidente, como a Arábia Saudita, El Salvador ou o Egito, não têm se saído bem nas últimas edições do prêmio. Essa tendência aponta para um alinhamento crescente do Comitê com causas que, de alguma forma, reforçam ao status quo geopolítico ocidental.
María Corina é uma aliada antiga dos Estados Unidos. É descendente das elites venezuelanas que se uniram aos americanos ainda na década de 1920 para explorar o petróleo farto do país. Ao longo dos 80 anos seguintes, a Venezuela estreitou seus laços com os EUA ao ponto de o beisebol ser o esporte nacional do país. A chegada de Hugo Chávez ao poder em 1999 rompeu o controle dessa elite sobre a única fonte de riqueza da Venezuela no último século, a PDVSA, a estatal petrolífera.
Ao longo dos anos, María Corina e seu grupo político se posicionaram entre as alas mais radicais da oposição ao chavismo, buscando apoio internacional para uma mudança de regime. Considerada uma figura de linha dura, ela foi consolidando sua influência interna à medida que outras lideranças políticas venezuelanas deixavam o país. Mesmo impedida de disputar as eleições presidenciais de 2024, ela liderou um movimento de oposição que venceu Maduro nas urnas, mas não levou por conta das fraudes eleitorais. Desde então, sua aliança com Donald Trump se intensificou.
Poucos nomes deveriam agradar tanto o presidente americano quanto María Corina Machado. Ainda assim, sua escolha parece ter incomodado Washington pelo simples fato de o Nobel da Paz não ser de Trump.