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Ponto de Partida

Pedro Doria em análises profundas e didáticas sobre a política do Brasil e do mundo.

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O brasileiro entendeu tudo

A tese da esquerda, para a eleição de 2026, é simples. Defesa da soberania nacional e discurso contra as elites. É isso. Ou seja, a direita quer atacar o Brasil e os ricos têm de contribuir mais. A aposta da direita também é simples. Esta será uma eleição sobre segurança pública. O brasileiro não está em paz, tem medo de ser assaltado, e a esquerda está mais preocupada com o bandido do que com o cidadão de bem. É claro que um está fazendo uma caricatura do outro, mas eleição é assim. Faz duas semanas que aconteceu a operação no Morro do Alemão e a esquerda segue sem uma resposta clara para dar. Mas e a direita? Em grande parte, os políticos de direita estão tentando entender para onde ir. O que já é claro para todos? Lula perdeu uns pontinhos de popularidade, então na direita já se sabe que foi uma vitória. A primeira vitória, da direita, em vários meses. Mas sabe quem perdeu mais do que Lula no Alemão? Jair Bolsonaro. Porque, veja, há décadas que Bolsonaro é o político dono da frase “bandido bom é bandido morto” no Congresso Nacional. Era o primeiro deputado que apareceria na cabeça de qualquer um quando alguém justificava violência policial. E, no entanto, ninguém da família Bolsonaro viabilizou, chamou atenção, puxou decisões para si. Nada. Isso é importante, tá? Porque é uma mudança. Na opinião popular, foi uma derrota pequena do governo federal e uma derrota gigante da família Bolsonaro. Naquele episódio, o resto da direita ganhou independência e espaço para agir. A cada momento assim, a relação de poder interna da direita muda. Os partidos de direita vão precisando menos da popularidade de Bolsonaro e a família Bolsonaro vai dependendo mais dos favores de políticos de direita com poder. Guilherme Derrite, o secretário de Segurança do estado de São Paulo, deixou o cargo para voltar à Câmara dos Deputados e relatar o projeto da Lei Antifacção, enviado pelo Palácio do Planalto. O texto vai ser muito mexido. Os governadores começaram a chamar esses grupos criminosos como o Comando Vermelho de terroristas. Derrite foi para a Câmara fazer isso, trazer a palavra terrorismo para o centro do palco. Só que ele tem um problema que não é pequeno nessa operação. Terrorismo é um crime tão grave que quem cuida dele é a União. É o governo federal. É um crime contra o Estado nacional. Isso quer dizer que uma lei que classifique como terroritas os traficantes tira poder dos governadores e o entrega para o presidente Lula. Isso, ora, a direita não quer. Tem outros problemas, também. Se o Brasil começa a dizer para o mundo que tem grupos terroristas agindo em seu interior, o país abre espaço para sanções econômicas, empresas brasileiras podem ter investimentos cortados nelas se houver suspeita de envolvimento com o crime. Investimento cai. Ações militares contra o Brasil entram no radar. Classificar legalmente como terrorista é uma dor de cabeça que os governadores de direita não querem. Mas ao mesmo tempo, eles querem o peso da palavra para fazer campanha eleitoral. A saída de Derrite é montar um Frankenstein. Trata todas as penas como se fosse terrorismo sem chamar de terrorismo. Mas tem um problema aí, tá? Porque estão pensando errado sobre esse crime. Terrorismo é essa palavra que enche a boca, impõe gravidade, mas é pensar errado sobre o problema que o Brasil tem. Grupos terroristas atuam politicamente. Seu objetivo é ter ganhos políticos. A base pode ser ideológica, para grupos paramilitares fascistas ou comunistas. A base pode ser nacionalista, como foram IRA e ETA, na Europa, o a OLP, da Palestina. Pode ser religiosa, como é o caso do Hamas o da al-Qaeda. Mas, fundamentalmente, o objetivo é ter um ganho político. O Comando Vermelho, o PCC ou as milícias cariocas não estão nem aí pra isso. Seu objetivo é econômico. Querem ganhar dinheiro com o crime. Então como é que chamamos grupos que corrompem a polícia e o Estado, tomam o controle de certos territórios? Que cobram uma tributação própria. Vão lá e achacam o dono da birosca, o sujeito que dirige a van. Se quer trabalhar nessa área, tem de me pagar um arrego? Como é que chamamos um crime que impõe certos serviços. Luz, compra de mim. TV a cabo? Compra de mim. Gás? Segurança? Se estes grupos começam a ficar tão poderosos que, além de entrar na Polícia e no Estado, também começam a se impor em grandes negócios, e forçar sociedade em empresas de capital aberto, e encontram outros caminhos de lavagem de dinheiro, qual é o nome que damos para esse tipo de crime? A gente pode dar um passo além. O que acontece se estes criminosos começam a ter seus próprios deputados, seus próprios políticos? Isso tem nome, gente. Tem série de TV, tem filme, aliás tem grandes séries de TV e grandes filmes sobre exatamente este tipo de crime, brutal, que depende de substituir o Estado em sua atuação. O nome é máfia. E sabe de uma coisa? Tem uma nova pesquisa, do Instituto Ideia, que mostra com clareza que a população está entendendo tudo do que está acontecendo. Vem comigo. O Ideia fez essa pesquisa em 6 de novembro e nos dá muito mais sutileza sobre o que o brasileiro pensa sobre o problema do crime que ocupa territórios de cidades, como acontece aqui no Rio mas não só. Quando a polícia é aplaudida por matar, a sociedade presta menos atenção na corrupção dentro dela. 48% concorda. 19% discorda. Quando as pessoas se sentem inseguras, aceitam que a polícia aja sem prestar contas por seus atos. 50% concordam, 21% discordam. Quando a polícia tem liberdade para agir sem prestar contas, a corrupção dentro dela aumenta. 61% concorda, 15 discorda. A violência da polícia leva o crime a se armar mais e isso faz a polícia agir com mais violência. 50% concordam, 25% discordam. Ver mortes em operações dá a sensação de que a polícia está agindo, mesmo sem resolver o problema. 51% concordam, 21% discordam. Segura essas, vamos para outro pacote de perguntas. O envolvimento de policiais, empresários e políticos corruptos dificulta o combate ao crime organizado. 81% concordam, 5,4% discordam. O combate ao crime deve priorizar a investigação e punição dos chefes, empresários, políticos e policiais corruptos. 80% concordam, 5% discordam. Facções e milícias crescem porque conseguem circular dinheiro e armas com ajuda de gente influente. 84% concordam, 4% discordam. O acesso de criminosos presos a celulares mostra que parte da polícia e do Estado participam do crime. 74% concordam, 7% discordam. A sociedade percebe que uma polícia mais violenta não resolve nada. E a sociedade tem toda a convicção de que o problema está dentro das polícias, dentro das assembleias legislativas, até em alguns palácios de governos. Com a Cosa Nostra, foi assim. Com a máfia de Al Capone, na Chicago dos anos 1930, igual. Estes sistemas criminosos se tornam intermediários entre mercados ilegais e o poder público. Fazem isso corrompendo. Ambos criam toda uma rede de economia paralela, com negócios que incluem drogas, contrabando, jogo, prostituição, venda de gás, transporte, TV a cabo. A partir daí, porque tem muito dinheiro sujo acumulado, começam a penetrar em negócios legítimos para fazer a lavagem da grana. O ponto aqui é o seguinte. Existem soluções conhecidas. Para lidar com máfias, é preciso seguir simultaneamente dois caminhos. O primeiro é ir atrás do dinheiro. Esses grupos criminosos geram muito dinheiro e precisam lavá-lo. A gente precisa entender como estão lavando suas fortunas e cair dentro dos mecanismos e das empresas que resolvem este problema deles. O segundo caminho é o de reocupação de territórios. Se tem um bairro de uma cidade em que o bandido pode chegar prum pequeno empresário e dizer metade do seu lucro, paga pra mim, a polícia tem de agir. Inclusive com força. Para impedir. Mas, para que a ação da polícia tenha sucesso, a gente não foge de fazer uma limpa dentro da polícia e dentro da política. Porque, vejam, existe uma razão para o problema não ter sido resolvido. A polícia trabalha mais para o crime do que para a sociedade. Em muitos estados, os políticos locais trabalham mais para o crime do que para a sociedade. Olha a pesquisa do Ideia. Os brasileiros já sabem disso.

Aprendizados: Mamdani em NY e megaoperação no Rio

Transporte público com gratuidade universal, creches em tempo integral, congelamento de alugueis. Tudo isso faz parte das promessas de governo de Zohran Mamdani, democrata que é hoje o mais jovem prefeito de Nova York - socialista e muçulmano.

Mamdani para Esquerda e Centro

A eleição de Zohran Mamdani traz lições para o Partido Democrata, nos Estados Unidos? Mais do que isso, traz lições para a esquerda para além dos Estados Unidos? E para o Centro liberal? A resposta é, sim, traz. Mas calma, nem todas as lições são óbvias. Algumas das características do sucesso de Mamdani, como candidato, são muito tipicamente novaiorquinas e não se aplicam ao resto dos Estados Unidos, quanto mais ao mundo. Às democracias ocidentais. Mas tem outros pontos que fizeram parte da campanha que têm eco para muito além da cidade. Antes de tudo, Mamdani jamais será presidente dos Estados Unidos. Ele nasceu em Uganda. De acordo com a Constituição, apenas americanos natos podem se candidatar à Casa Branca. Mas ele pode ser Speaker da House, que é tipo presidente da Câmara e é o cargo mais alto do Congresso. O futuro dele é esse. Se tudo der muito certo na Prefeitura, pode também seguir o caminho de Bernie Sanders, que foi prefeito de Burlington, a maior cidade de seu estado, Vermont, e de lá se tornou o senador mais à esquerda do Congresso. Bernie está com 84 anos. Precisa de um sucessor de líder da esquerda Democrata. Elizabeth Warren, outra senadora, é um nome. A deputada Alexandria Ocasio-Cortez pode ser candidata ao Senado no ano que vem. Mais carismática do que Warren. Tem uma disputa aí. Esse é meio que o tamanho da esquerda americana, tá? Esquerda como nós a reconheceríamos na América Latina e na Europa, lá são uns cinco, seis deputados federais, dois senadores, e agora o prefeito de Nova York. E esse é o primeiro ponto a compreender sobre o Mamdani no cenário americano. A cidade de Nova York é um dos cantos mais progressistas do país. A Califórnia é barbaramente progressista. Mas essas são exceções. Um político muçulmano, filho de um professor da Universidade de Columbia e uma cineasta iraniana, que se declara socialista, de tempos em tempos pode encantar um lugar como Nova York. É uma cidade do mundo, cosmopolita, e que se orgulha disso. Nova York é onde a expressão “melting pot” surgiu. O caldeirão de gentes diferentes que se derretem e se misturam para virar uma coisa particular, única. E, ironicamente, a cidade símbolo dos Estados Unidos talvez seja uma das cidades menos americanas dos Estados Unidos. Isso quer dizer que alguém com o discurso de Mamdani não tem qualquer chance de se eleger presidente americano? Calma. Eu não iria tão longe. Só que, antes, é preciso entender que Mamdani representa, ao mesmo tempo, duas esquerdas diferentes. Sim, porque há muitas esquerdas, assim como há muitas direitas. Por um lado, aos 34 anos, com esse perfil cosmopolita, filho de pais sofisticados culturalmente, ele dá liga muito fácil com um tipo muito particular de eleitores jovens, muito comuns nas grandes universidades americanas. O eleitor woke. Não é só isso. Foi justamente no campus da Universidade de Columbia que se deu o maior conflito entre o governo Trump e os estudantes que se levantaram contra Israel por conta da guerra em Gaza. Um dos intelectuais mais influentes do mundo woke, do mundo identitário, é Edward Said, professor de Columbia, que morreu em 2003. Ele popularizou dentro da academia, nos anos 1970 e 80, a ideia de Orientalismo. Ele é o pai intelectual do conceito de Decolonialismo. O antropólogo Mahmood Mamdani, seu colega em Columbia, era também um de seus mais próximos amigos e colaboradores. Amigos íntimos mesmo, de se frequentarem, de um ajudar o outro quando tinha algum apuro. Pai de Zohran. O discurso que os estudantes de Columbia mobilizados contra Israel era puro Said. Era puro Mamdani pai. Neste momento da história, em Nova York, com Donald Trump na presidência, aqueles estudantes e os não-estudantes mas que estão ali pela faixa dos vinte anos e são igualmente bem-educados, progressistas, novaiorquinos, pertencem pesadamente a este universo que constrói esse discurso. Mamdani é um político talhado para se encaixar no seu ideal de candidato. Só tem um problema: o resto dos Estados Unidos, inclusive muita gente que vota Democrata, criou verdadeiro horror a este movimento. O considera radical, alienado, e autoritário. Aqui não importa se concordamos ou não. É como é percebido. Em Nova York, na Califórnia, vai ter muito lugar em que o eleitorado vai gostar. No resto do país? Não tem chance. Só que, e esse “só que” é muito importante aqui, Mamdani pertence a outra esquerda. Uma esquerda que tem um pesado discurso econômico preocupado com desigualdade, que deseja maior presença do Estado na economia. Intervencionista e distributivo. Sua campanha foi feita com inteligência. Ele quase apagou o discurso woke, sabia que já tinha aqueles eleitores garantidos. E jogou lá pra cima o discurso econômico. Esse é um discurso que encontra muitos eleitores. Tanto a esquerda quanto o Centro Liberal precisam aprender muito sobre este lado de Mamdani e, principalmente, com seus eleitores. Não bastasse, tem uma última lição. 34 anos. Não pertence mais ao mundo da televisão. Pertence ao mundo do Instagram e do TikTok. Para ele, essa é a comunicação mais natural. Mamdani é um político que não está na direita e faz redes sociais como ninguém. A globalização dos anos 1990 e início dos 2000 foi muito boa pra uma quantidade muito grande de pessoas. 23%, quase um quarto da população mundial, passava fome quando o Muro de Berlim caiu. Em 2020 esse número estava por volta de 9%. Para os muito pobres, a globalização representou uma melhoria de qualidade de vida sem igual. Na Ásia, a classe média explodiu. Uma quantidade gigante de pessoas teve uma melhoria sem igual de qualidade de vida. O número de muito ricos também aumentou. Mas a globalização teve custo para dois tipos de pessoa. Operários do mundo desenvolvido perderam empregos que pagavam bem e eram estáveis. Despencou o número de vagas boas para homens com ensino médio, principalmente nos Estados Unidos e Europa, mas também na América Latina. E a classe média tradicional no mundo desenvolvido estagnou. Não teve ganho relevante, alguns até pioraram de vida. Então, na Europa e nos Estados Unidos, a distância entre os muito ricos e a classe média e os operários ficou gigante. No mundo das empresas, vimos uma concentração imensa de alguns grupos. Formação aberta de monopólios e oligopólios, principalmente na nova elite da indústria de tecnologia. Temos problemas de regulação. Para os mais jovens, essas coisas se juntam. A tecnologia vai aos poucos tornando mais difícil acesso a bons empregos para recém-formados. Nas grandes cidades do Ocidente, essa concentração de renda por um lado, e o achatamento da classe média tradicional do outro, cria um problema mais agudo. O valor de imóveis vai escalando, morar em centro urbano vai encarecendo muito, porque tem muito mais bilionário e milionário. A classe média profissional e estudada, quanto mais jovem for, mais dificuldade tem em morar no mundo cosmopolita. Se a esquerda abandona o woke, o identitarismo, que afasta eleitores, e mergulha em propostas econômica, ela terá muito eleitor para disputar com a direita populista. O Centro Liberal não carrega o peso woke, mas precisa revisitar o resultado da globalização. Não devia ser difícil. Liberais são pró-mercado, pró-concorrência, enfrentar monopólios deveria ser natural no discurso. E compreender que regras são necessárias para promover igualdade de oportunidades, que há dois séculos liberais defendem igualdade de oportunidades, deveria ser o suficiente para voltarmos a imaginar políticas públicas que encaram o problema. Por fim, precisamos todos fora da direita dura um banho de loja em comunicação. Só virá com mais políticos jovens. Gente para quem a comunicação digital é natural, vai no fluxo. A eleição de Zohran Mamdani é simultaneamente fruto de uma cultura progressista e woke que só tem em Nova York. Mas é também fruto de uma concentração de riqueza que está tornando muito, muito difícil para alguém bem formado e com trinta e poucos viver numa cidade global. Nas grandes cidades brasileiras, esse fenômeno também ocorre. Congelar preço de aluguel não vai resolver o problema. Mas isso não quer dizer que outras soluções não sejam possíveis. Sabe, temos trabalho para fazer. Tem certos temas nos quais só a direita autoritária e populista mergulha. É hora de repensar políticas, de imaginar, de criar. O mundo do século 21 tem problemas que não são os mesmos do século 20. As soluções terão de ser novas.

A direita ganhou o round

A direita ganhou a briga da operação policial no Rio. Aliás, mais do que isso. Ganhou com a cautela que demonstraram Tarcisio de Freitas e Ratinho Junior.

Resposta ao hate sobre a operação no RJ

Não poderia ser diferente. A operação da polícia mais letal do Rio de Janeiro, com pelo menos 121 mortos, precisava de ser tema do nosso Ponto de Partida React desta sexta-feira (31). Apesar da data, não é o Halloween que assusta, mas sim a violência.

Como começa a desinformação

Você paga por jornalismo? Isso aqui não é uma propaganda da assinatura premium do Meio, não. A maioria das pessoas não entende claramente a relação entre jornalismo e democracia. E, no entanto, um não consegue viver sem o outro. Três quartos dos brasileiros não pagam por jornalismo. É muita gente. Nossa democracia não está bem, está radicalizada, volátil. Perdemos a capacidade de conversarmos quando discordamos. Isso tem muito a ver com a maneira como nos informamos.

Lula, Trump e Milei entram num bar

Ninguém aqui acha que Donald Trump e Luiz Inácio Lula da Silva se amam, não é? Então vamos começar sendo pragmáticos. A chave está em quatro números. O que aconteceu com as exportações brasileiras para os Estados Unidos em agosto de 2025, primeiro mês do aumento de tarifas? Caíram, e não caíram pouco. 18,5% quando comparado com o mesmo mês, em 2024. O que aconteceram com nossas exportações para lá em setembro? De novo, caíram. Mais. 20,3% comparando com o ano anterior. Então o Brasil se ferrou, não é?

Feminismo e a coragem de conversar

No Ponto de Partida React desta sexta-feira (24), Yasmim Restum e Pedro Doria dialogam sobre a corajosa e fundamental conversa entre a influenciadora conservadora Cintia Chagas e a socialista Manuela D’Ávila, além da troca entre Cíntia e a colunista do Meio, Mariliz Pereira Jorge. Uma troca que mostra a urgência de um debate empático sobre o feminismo em um momento em que as redes sociais são máquinas de produzir dissenso. Embarque com Yasmim Restum e Pedro Doria nessa jornada com uma seleção dos comentários que vocês enviam nas redes sociais e canais do Meio. Para participar, comente nos vídeos do Ponto de Partida de segunda ou quarta. Assista em vídeo no Youtube, e acompanhe em áudio no seu tocador de podcasts preferido.

A conservadora, a liberal, a socialista

Vocês conhecem Cíntia Chagas? Gente, por favor, uma questão de elegância. Se não conhecem, estão perdendo um dos movimentos mais interessantes ocorrendo nas redes sociais do Brasil neste momento. Só no Instagram ela tem quase 8 milhões de seguidores. Ensina Português, oratória, etiqueta. Fala empostado, pronuncia cada sílaba. Super-popular. A imagem da mulher conservadora. Cíntia se casou no ano passado com Lucas Bove, do PL de São Paulo. Deputado estadual. Ultrabolsonarista. Daqueles caricaturais mesmo, do tipo que faz arminha em público. Parecia daqueles casamentos perfeitos de rede social. A megainfluenciadora conservadora e o deputado bolsonarista. Só que, casada, ela descobriu uma vida de inferno. O sujeito era controlador, ciúme doentio. Violento. Violência física e psicológica. A um dado momento, chegou a atirar uma faca contra ela. Cíntia denunciou, registrou boletim de ocorrência, conseguiu na Justiça medidas protetivas. Fizeram o divórcio e Bove tratou de garantir sigilo judicial sobre o processo. Só que os detalhes todos vazaram. Na Alesp, na Assembleia Legislativa de São Paulo, chegou a ser aberto um processo de cassação de Lucas Bove. Foi arquivado na comissão por seis votos a um. Sequer foi avaliado. E, olha, longe de mim passar a mão em Arthur do Val, o Mamãe Falei do MBL. Mas olha o nível de hipocrisia, aqui. Arthur foi cassado porque ficou babando por jovens ucranianas, refugiadas de guerra, em mensagens de áudio com amigos. As mensagens de Zap vazaram, ficou muito feia a coisa, ele foi cassado por quebra do decoro parlamentar na Alesp. Pelo que falou. O outro bate na mulher, quase mata a própria mulher, e o processo é arquivado. Isso é uma loucura. A mais completa degradação da Assembleia de São Paulo, parece às vezes concorrer com a do Rio em decadência moral. Mas o fato é o seguinte: Cíntia seguiu, lá, sua vida de influenciadora das mulheres conservadoras, recatadas e que querem causar boa impressão do país. E isso quer dizer recitando as coisas que influenciadores conservadoras falam nas redes. A hierarquia do homem no casamento, o horror do feminismo e tudo o mais. Minha amiga Mariliz Pereira Jorge chamou sua atenção, umas três semanas atrás, em sua coluna na Folha de São Paulo. Olha, Cíntia, esse era mais ou menos o raciocínio que a Mariliz estava seguindo, você foi protegida por leis. Leis que existem para proteger mulheres numa situação exatamente como a sua. Leis que existem porque esse tipo de violência contra mulheres ocorre, no Brasil, em todas as classes sociais. É daquelas coisas que não faz rigorosamente nenhuma diferença se vc é rica ou pobre. Leis que existem por causa da luta feminista. Essas leis existem para proteger mulheres, não importa se sejam feministas ou não. Quaisquer mulheres, inclusive aquelas que falam que o feminismo não devia existir. Mulheres como Cíntia. Mas leis que, não fosse o feminismo, não existiriam. Aí aconteceu. Deu um, dois dias, e a Cíntia gravou um vídeo. Mariliz, você tem razão. Ontem à noite, com moderação da Júlia Duailibi, Cíntia foi à Globonews participar de algo meio debate, meio conversa, com a futura candidata ao Senado pelo Rio Grande do Sul Manuela Dávila. Foi uma conversa incrível. Sabe por quê? Porque as duas, ali, conversaram de verdade. Estavam preocupadas em apresentar seus pontos de vista tanto quanto estavam em ouvir uma à outra. Cíntia, Mariliz, Manuela. Uma conservadora, uma liberal, uma socialista. Três visões, três concepções de mundo muito diferentes uma da outra. Mas absolutamente capazes de sentar, ouvir, conversar. Reagir honestamente, a partir do seu ponto de vista, ao que a outra diz. Olha, a Cíntia está sob ataque. Tem gente da esquerda identitária a atacando porque sua “conversão ao feminismo é fake”, porque ela “não sai da personagem”. Tem gente da extrema direita a atacando porque, afinal, agora ela elogia o feminismo, onde já se viu. Ela é uma influencer. Isso é uma profissão, hoje. Uma profissão de verdade e extremamente dependente do algoritmo. Isso quer dizer o seguinte: não surpreenda. Fale para seu público exatamente o que ele espera ouvir. Não seja original. E mais. Trate o outro lado, não importa quem seja o outro lado, não pelo que ele é. Mas por aquilo que você imagina ser a pior coisa do mundo. Se você é de esquerda, o outro lado é nazista. Do liberal ao Bolsonaro, todo mundo é nazista. Se você é de direita, o outro lado é contra a família. Do tucano mais plácido ao Jones Manuel, todos contra a família. Então a partir do momento em que ela é uma influencer, ela tinha um problema. Como faz isso? Como, depois de anos fazendo caricatura de feministas, chega e fala algo que seu público não espera ouvir? Como se colocar num lugar em que as influenciadoras de esquerda, do outro lado, tampouco querem te ver lá. As redes são um lugar pra expressar ódio ao outro, não para reflexão. As consequências desse tipo de virada não são apenas cancelamentos, ataques virtuais. É publi, é palestra, o ganha pão depende de consistência na mensagem. As redes não são feitas para quem repensa, quem muda de opinião. As redes não são feitas para reflexão. Para sutilezas. Para democracia. Noves fora meu profundo orgulho dessa minha amiga que provocou essa conversa, a Mariliz, acho que todos nós devemos um agradecimento às três. À Mariliz, à Manuela mas, principalmente, à Cíntia que fez o movimento mais difícil. Precisamos voltar a conversar, sim, principalmente nós que discordamos uns dos outros. Precisamos de mais gente tendo a coragem da Cíntia. Não é deixar de ser conservadora. Ela não deixou. É se permitir ir prum lugar em que o outro, ou a outra, não é vista mais como inimiga. Mas alguém com quem conversar. Gente, o problema crucial é o seguinte: democracias são máquinas de produzir consenso. Redes sociais são máquinas de produzir dissenso. É só isso. É tudo isso. Democracia é um bicho difícil porque foi feito para resolver um problema difícil. A gente não quer um tirano e a gente discorda de um monte de coisa. Com um tirano, com um ditador, a discordância não é um problema. O sujeito lá em cima manda, a gente obedece e pronto. Não gosta? Paciência. Em ditadura, o dissenso se resolve porque alguém se impõe. Mas como a gente resolve sem ditador? Nós criamos instrumentos pra isso. O Parlamento, a Justiça, os espaços de debate público. Só que, veja, nada disso é natural. O lugar do conforto é o lugar de não ceder. Discordo, não quero, não sou obrigado. Precisa de maturidade, precisa de desprendimento, precisa de coragem pra sentar e conversar com quem se discorda. Mas é uma forma de sapiência, também, porque conversando com quem discorda aprendemos a argumentar melhor, consolidamos de forma mais profunda nossas ideias, e temos uma vida intelectualmente mais rica. Tem um barato em entender o outro. Quando a gente trocou boa parte da nossa comunicação por uma mediada por algoritmos, tiramos até de parlamentares o incentivo para chegar a acordos. Isso é perigoso, gente boa. Nosso reflexo se tornou calar. Dizer tal coisa tem de ser ilegal. Não pode ser dita. A gente ficou de uma sensibilidade que é um troço inacreditável. Qualquer coisa que apenas vagamente nos incomode não pode ser dita jamais. À direita e à esquerda. Todo mundo acha que o outro lado é censor, afinal nós somos razoáveis, eles é que não. O identitarismo joga nessa linha. O feminismo tradicional, não. O movimento negro de direitos civis, não. O LGBTQIA+. O problema de termos direitos iguais, oportunidades iguais, segue ali fincado no centro de todas as democracias como o problema essencial por se resolver. Então precisamos conversar mais, precisamos de mais acordos. É preciso chegar a um consenso sobre como será possível convivermos. É disso, gente, que se trata. É isso que democracia é. Mariliz é incrível. Manuela é incrível. As duas são mulheres que sofreram imensamente nessa máquina de moer carne que é a produção de ódio como produto nas redes sociais. E Cíntia Chagas é incrível. Num momento de fragilidade, foi convidada a conversar. Topou o convite. Neste mundo aqui, conversar de peito aberto é o ato máximo de coragem. E, sabe uma coisa? É só conversa que salva democracia. Democracias não são máquinas de calar, democratas hesitam ao máximo, até o limite, a vontade de calar o que incomoda. Democracias são conversas. Recolher

Vai ter petróleo na Amazônia?

Foram três anos de briga dentro do governo. Hoje, a Petrobras ganhou a queda de braço e o Ibama autorizou o início da exploração de petróleo na bacia do rio Amazonas. Isso não quer dizer que veremos poços em alto-mar, na altura do Amapá. Não ainda. A permissão é de exploração, não é de produção.