A esquerda explode em guerra civil

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Vocês têm percebido como tem tido briga interna na esquerda, sei lá, nas últimas duas semanas? É a toda hora. Tem as mais caricaturais, aquelas tão estereotipadas que parecem a piada do Trotsky e Stálin entraram juntos num bar. Tem umas brigas muito mais sérias, também, que envolvem políticas públicas. Ou que envolvem prioridades de pauta.

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Só esse fim de semana, por exemplo, foram três e grandes.

Ricardo Cappelli, número dois do Ministério da Justiça, bloqueou no Twitter algumas pessoas. Entre elas o advogado Thiago Amparo, que é colunista da Folha, e a jornalista Cecília Oliveira, do Intercept. Os dois tinham críticas à política de segurança pública na Bahia, que é governada pelo PT há 16 anos.

O Cappelli nem é do PT, não. Ele é do PSB e fez a carreira política, desde que foi presidente da UNE, no PCdoB. Foi meu presidente da UNE. É da turma que saiu com o ministro Flávio Dino pra migrar pro PSB na última eleição. Vocês vão lembrar dele. Foi quem liderou a intervenção na Segurança Pública do Distrito Federal, depois da intentona bolsonarista de 8 de janeiro. Aí, quando o general G Dias foi demitido, ele comandou interinamente o GSI. O Cappelli virou meio que o sujeito que tapa os buracos, pega as roubadas e resolve. E, se o Flávio Dino for mesmo para o Supremo Tribunal Federal, Cappelli tem a esperança de virar ele próprio ministro da Justiça.

O problema é que o Cappelli fez uma defesa da política de segurança do PT na Bahia, disse que não dava para combater bandido armado com fuzil sem confronto, e fez isso na CNN. Thiago e Cecília contestaram, ele os bloqueou. Foi comparado com Bolsonaro pra baixo.

Enquanto isso, 25 deputadas federais, mulheres, assinaram juntas uma carta ao presidente Lula pedindo a ele que indique uma mulher negra ao Supremo Tribunal Federal. Todo mundo sabe que Dino é o favorito, que os outros dois nomes cotados são Bruno Dantas e Jorge Messias, Lula já deixou claro que o critério da identidade não é importante pra ele. Pois é. Quinze das deputadas que assinam a carta são do PT. A turma não se conforma, a pressão sobre Lula vai aumentar. Elas estão peitando o presidente.

E tem ainda a briga de fato, briga mesmo, de pancadaria. Foi na Convenção Nacional do PSOL. Vejam só. Alguém falou em Trotsky e os caras saíram no braço ali em cima mesmo, no palco principal. O grupo de Guilherme Boulos havia ganho o comando do partido, mas a briga parece mesmo de piada, né? Daquelas de que a esquerda só se une na prisão.

Da maneira como os três conflitos foram divulgados, ficou tudo muito na superfície. Dá para mergulhar mais fundo para entender o por que da guerra civil da esquerda. Vamos lá?

Aliás, você já foi no site do Meio? Está no ar. Porta aberta, é só ir entrando.

Eu não devia falar isso. A gente está no meio do lançamento, tem um monte de coisa sendo testada. Mas amanhã a gente faz aniversário. No dia 3 de outubro o Meio completa sete anos de vida. No início éramos eu e o Vitor, só nós dois. Agora somos mais de trinta, uma equipe diversa em tudo, inclusive nas especialidades.

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Vamos começar com o Cappelli. A primeira coisa para entender é que Dino e Cappelli de um lado, Thiago e Cecília do outro, estão com a cabeça em dois lugares muito diferentes. A Cecília é uma jornalista que cobre a questão da segurança pública há muitos anos. Ela é também muito ligada à pauta das mulheres e à pauta do movimento negro. Da melhor integração destes grupos à sociedade. O Thiago é um advogado, um ativista de direitos humanos, muito ligado também à pauta do movimento negro e do movimento LGBTQIA+.

Não é que Dino ou Cappelli sejam contra qualquer um destes temas, é só que eles têm, cada qual, sua prioridade. E, agora, faz sentido para ambos que joguem juntos. Flávio Dino quer ser ministro do Supremo Tribunal Federal. Ricardo Cappelli quer ser ministro da Justiça caso Dino deixe o cargo. Pois bem, para isso precisam convencer Lula e o Senado. Como se convence Lula? O melhor aliado para se ter é o ministro da Casa Civil. Quem é? Rui Costa. Se Rui Costa for contra, as chances de conseguir despencam. A segunda pessoa a convencer é Jaques Wagner. Por quê? É líder do governo no Senado. E, sem aprovação no Senado, ninguém entra no Supremo.

Sabe o que mais Rui Costa e Jaques Wagner são? Ambos ex-governadores da Bahia. Petistas. Se Dino compra uma briga com um dos dois, não tem vaga no Supremo. Neste momento, não vai acontecer. Simplesmente não vai. Não há possibilidade de qualquer crítica à política de segurança baiana sair do Ministério da Justiça. Ter a esperança de que esta conversa seja possível é de uma profunda ingenuidade política. Aí, gente, não tem nada a ver com governo de esquerda, de direita ou de centro. Esse tipo de circunstância, quando se dá, gera uma trava no debate.

E o problema não está em Dino ou em Cappelli. O problema está no fato de que é preciso discutir a política de segurança pública que o líder do governo no Senado e o ministro da Casa Civil de Lula tocaram.

Vocês já devem ter percebido um padrão, aqui. A briga não tem nada a ver com segurança pública. Quer dizer, não diretamente. Esta briga é por diputa de território. Disputa de espaço no governo. Disputa de poder. A gente chama isso de política. Quer ver? Vamos às deputadas federais que estão cobrando uma ministra negra no Supremo. Por que se quer uma mulher negra no Supremo? Por um motivo muito simples. Decisões tomadas naquela Corte atingem o Brasil todo. As decisões são diretamente influenciadas pelas sensibilidades que cada ministro traz para aquela cadeira. A vida que uma mulher negra tem, as dificuldades que ela enfrenta, tocam esta sensibilidade. Ela terá condições de influenciar em certas decisões, pelo seu voto e pelas conversas com seus pares, que alguém sem aquela experiência não teria. Porque vão ocorrer a ela argumentos, percepções, que pessoas com outras experiências de vida não têm como ter.

Isso quer dizer o seguinte: quem ocupa um cargo que permite decisões de impacto nacional tem poder. O tipo de pessoa que tem poder muda o tipo de decisão que se toma. É disso que se trata.

Desde o impeachment da presidente Dilma, a esquerda se fechou em copas. Ninguém larga a mão de ninguém. A culpa não é minha, votei no Haddad. Vocês lembram de todos esses slogans. Foi um período no qual todos os subgrupos de esquerda se uniram irredutivelmente. Todo mundo era parceiro. Foi neste período, também, que os grupos identitários se consolidaram. O debate sobre racismo e misoginia estruturais, por exemplo, é um que só existia em certos ambientes muito específicos. Hoje é conhecido e debatido de forma generalizada. Seu pai aqui no Brasl, o advogado Silvio Almeida, é ministro de Estado.

Por isso é interessante observar o comportamento de dois grupos, os militantes do Meio Ambiente e os militantes das causas identitárias. Os ambientalistas já estiveram no poder em governo Lula. Eles já chegaram preparados pra guerra. Sabem que ter ministério não é garantia de tomar decisão, não é garantia de influir nas prioridades do governo e ataques de aliados são mais certos do que ataques de adversários. A turma da pauta identitária, não. Entrou no governo achando que ia ser um passeio no parque e está apanhando. Da esquerda. E está surpresa com o fato de que fazer política é muito difícil e derrama sangue.

O governo tem de lidar com algumas realidades concretas. Não tem dinheiro para fazer tudo que quer e o pouco dinheiro precisa ser compartilhado com o Centrão. A cada rodada de negociação, o Centrão quer mais espaço. Porque espaço é poder e dinheiro simultaneamente. Dinheiro pra fazer coisas, tá? Dinheiro para política pública. Não estou falando de corrupção aqui. Quanto mais ministérios o Centrão ganha, menor o espaço daqueles ministérios sociais que pertencem à esquerda e mais gente vai brigar por cada vaga. Cada centavo, cada centímetro, cada gota de poder está em disputa.

Num governo com escassez de recursos e escassez de poder, que precisa escolher muito que brigas comprar e em que políticas investir, a briga de esquerda será no soco, vai ser no braço.

O que termina por nos levar ao PSOL. O que saiu na imprensa é que eles brigaram por uma frase do Trostky. E é verdade, tá, de fato houve uma menção de traição a Trotsky. O grupo de Boulos queria mudar as regras do partido e ocupar mais cargos na diretoria após vencer a eleição. Ao invés disso, os cargos foram distribuídos proporcionalmente de acordo com os votos recebidos por cada grupo. Teve gente chamando Boulos de golpista, e foi nesse contexto que a revolução permanente de Trotsky foi citada. A diferença é que uma turma, a que ganhou, quer aliança com o governo. Quer essa aliança porque aí vai ter apoio do PT na disputa pela prefeitura de São Paulo, no ano que vem. Outra turma está feliz em ter um partido menor, sem chances nas capitais. desde que tenha independência para bater no governo sempre. Partido de esquerda pequeno é sempre assim. Revolução permanente.

Ah. E tem a piada. Pois é. Stálin e Trotsky entram num bar. Stálin senta no balcão e pede uma vodka. Trotsky diz que quer o mesmo, só que batida. “Leon”, diz o Stálin cortando o barato, “você sempre com seu espírito revolucionário.” “E você, Joseph”, diz o Trotsky, “sempre botando as pessoas na geladeira.”

É. Eu sei. Não me chamem pruma festa pra contar piadas. Essa o ChatGPT que inventou. Pedi pra ele. Ele inventou uma muito melhor, só que envolvia quebrar o gelo com uma picareta e eu não tive coragem de contar.

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