O Brasil não tem plano para a revolução da IA

Receba notícias todo dia no seu e-mail.

Assine agora. É grátis.

Na sexta-feira, aconteceu uma coisa extraordinária no Twitter. No X. Um bate-boca, bate-boca mesmo, entre Yann LeCun e Geofrrey Hinton. Pra vocês terem uma ideia, teve uma hora em que o Andrew Ng entrou no meio da discussão. E se vocês estão completamente perdidos, esses são os caras que inventaram a inteligência artificial que estamos usando no ChatGPT, no Midjourney, em cada vez que criamos um autorretrato num app, utilizamos o recurso de geração do novo Photoshop, produzimos um texto no Bard ou no GPT.

PUBLICIDADE

Não são só eles, claro. Tem mais uns três ou quatro caras que são nomes fundamentais. De fato inventores da coisa. Mas é isso. Seis ou sete homens. Mistura de Taiwan com Israel com França mais Canadá e Estados Unidos. Deles, três são chamados de os padrinhos da IA, são os mais velhos, professores de todos os outros. LeCun e Hinton estão nessa lista. E sobre o que eles estavam batendo boca? Sobre se inteligências artificiais já raciocinam. Se já pensam ou se ainda não.

Vocês têm noção do tamanho desse debate? Neste exato momento, dois dos matemáticos mais importantes do mundo estão discutindo se computadores já são capazes de pensar ou se isso vai acontecer só daqui a alguns anos. É literalmente brincar de Deus. Se nós, humanos, a humanidade, já somos capazes de produzir máquinas capazes de reflexão. Dali ao Descartes, Penso, Logo Existo, é um passo.

Sem exagero, só existe no mundo um debate tão relevante quanto este. O das mudanças climáticas. Nada vai influenciar mais o futuro da humanidade do que estes dois debates. A gente chegou a um ponto da aceleração do desenvolvimento da inteligência artificial que todas as esconomias receberão seu impacto, serão transformadas, e isso ocorrerá muito, muito rápido. Vai transformar por um motivo muito simples. IA vai mexer direto no trabalho. Em todo trabalho. Do entregador de aplicativo ao advogado de terno bem cortado, do caixa de supermercado ao cirurgião de cérebro. Nos próximos dez anos, a maneira como trabalhamos vai se transformar profundamente.

Isto quer dizer, também, que muitos trabalhos vão se tornar desnecessários. Que a produtividade vai aumentar barbaramente, mais riqueza será produzida como nunca. E esta riqueza não será igualmente distribuída. Vai haver os países que importam tecnologia e os países que exportam tecnologia.

O Brasil não perdeu esse bonde. O Brasil pode fazer parte desta corrida. Tem gente no Brasil com capacidade para criar neste ambiente. O problema é que os incentivos estão todos errados. Entre ter computador barato para todos os brasileiros e sustentar a Zona Franca de Manaus, escolhemos a Zona Franca. Entre descobrir um jeito mais inteligente de financiar os estados ou fazer com que sua principal fonte de renda seja sobretaxando as empresas de telecomunicações, escolhemos fazer com que o brasileiro pague uma das internets mais caras do mundo.

É isso. O Brasil escolhe ter computador caro e escolhe ter internet cara. E escolhe fazer essas duas coisas dizendo que está incentivando a indústria brasileira. A turma desenvolvimentista velha ainda acha que essa é uma briga de hardware, não de software. Pois é. Ao invés de incentivar, está destruindo as chances de entrarmos nesse barco.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Você já usa inteligência artificial generativa? A gente montou o primeiro curso prático. Quer dar os primeiros passos dominando o que essas ferramentas podem fazer? É exatamente isso que nosso curso vai ensinar. Computador aberto na mesa, arrancando o melhor do que já existe por aí. Quer assistir a uma aula inaugural ao vivo? Vai ser agora, na quinta-feira, às 19h. De graça, para os assinantes premium. E a assinatura ainda sai praticamente de graça para quem fizer o curso, só pelo desconto que os assinantes têm. Assine.
Este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Hinton pôs às claras, na sexta-feira, o ponto essencial da discordância que ele tem com o LeCun. “A questão fundamental na qual discordamos é se LLMs de fato compreendem o que estão dizendo. Você acredita que elas certamente não compreendem e eu que elas provavelmente compreendem.”

LLM. Grande modelo de linguagem, na sigla em inglês. Você pega a quantidade de texto que um ser humano levaria vinte mil anos para ler. Joga isso tudo dentro de uma massa de computadores. Eles então processam a estrutura de todos aqueles textos, desmontam, examinam a lógica que leva palavras a serem organizadas de um jeito e não de outro, e aí criam um modelo computacional. Um grande modelo de linguagem. Faça uma pergunta e eles calculam que palavras organizadas de que jeito respondem àquela pergunta. Sai um texto muito crível, que parece que uma pessoa escreveu. O GPT, aquele do chat, é um LLM. O Bard, do Google, é outro. Não são os únicos.

A pergunta essencial de dois dos caras que inventaram esses troços é essa. O ChatGPT entende o que ele está dizendo? Ou só está cuspindo uma série de palavras que partem de uma conta que ele fez comparando trilhões de frases umas com as outras?

“É claro que têm alguma compreensão”, o LeCun responde. Mas é compreensão, para ele, no sentido de que o programa percebeu a lógica da estrutura das frases. “Essa compreensão é muito superficial. Sistemas de IA precisam ter modelos internos do mundo que permitiria a eles prever a consequência de suas ações e, portanto, raciocinar e planejar.”

Aqui um pedaço fundamental do debate. Um modelo do mundo é diferente de um modelo de linguagem. Um modelo do mundo é entender como as coisas funcionam. Um modelo de linguagem é entender como as palavras se organizam em frases. Percebe o salto para daí compreender o mundo?
Existem dois problemas que a turma de inteligência artificial está tentando resolver. Um é o do alinhamento. O outro é o do planejamento. Os dois estão de alguma forma relacionados. Alinhamento quer dizer, em essência, dar um sentido ético às inteligências artificiais. Para que elas consigam compreender que linhas não devem ser cruzadas. O planejamento é a capacidade de antever as consequências de suas decisões. E as duas coisas, claro, estão amarradas com a compreensão do mundo.

Como está, a atual inteligência artificial já está pronta para substituir aquele trabalho mais mecânico que fazemos com o cérebro. Tudo o que não exige criação, mas exige suor. Ler um relatório imenso e fazer um resumo, passar um por um todos os produtos que precisam ser somados e pagos numa loja, descobrir um tumor minúsculo num exame de imagem. Organizar uma agenda. Já tem gente trabalhando em grandes modelos de física, e o objetivo é criar uma IA capaz de desenhar melhor que um engenheiro um avião. As possibilidades são imensas. E esse troço só vai acelerar.

Existem dois níveis de indústria, aí. Um nível é o treinamento de modelos. É tecnicamente difícil mas, olha, muitos engenheiros brasileiros têm plena capacidade de trabalhar nessas coisas. O problema é que é muito, muito, muito caro. Porque, em essência, precisa ter acesso a uma nuvem gigante para processar. Não são muitas empresas vendendo esse serviçøO e a escala é realmente muito grande. Tem Microsoft, Oracle, Google, Meta. Não tem muita gente. Agora, tem outro nível. Que é pegar os modelos já treinados e inventar usos para eles.

Esse é um trabalho que precisa ser feito. Não vem pronto, tudo está por fazer. Como se aplicam as IAs que já existem num escritório de advocacia? Num fundo de investimento? Numa loja de rua? Um GPT da vida é um motor. O ChatGPT é uma ferramenta genérica para usar este motor. Mas e as ferramentas poderosas, específicas? Porque o Direito americano é diferente do Direito brasileiro, e o Direito brasileiro é muito parecido com o Direito de alguns países europeus. Se a gente desenvolve primeiro, a gente exporta. Se eles desenvolvem primeiro, a gente importa. Como se usa numa grande fazenda? Quais são os usos possíveis para uma prefeitura? Como essas tecnologias podem melhorar a vida em uma grande favela?
Isso é uma indústria. Todas são tecnologias que empresas brasileiras que estão nascendo agora poderiam vir a criar. Qual o limite? Ter computador, saber usar as tecnologias, acesso à internet. O limite de saber usar as tecnologias é educação. Mas a gente tem Senai. Não tem nenhum motivo para o sistema S não começar agora um grande esforço de educar muita gente.

O motivo pelo qual temos uma das internets mais caras do mundo é que os estados não têm muitas indústrias grandes das quais arrancar uma quantidade grande de dinheiro todo mês. Quase todos os estados cobram uma quantidade abissal de imposto de serviço de telecomunicações por isso. Muita muita gente usa, empresa grande em geral não sonega, é um dinheiro fácil de fazer. Metade do que gastamos na conta de celular, na conta de banda larga, é imposto. Se tivesse menos imposto, mais gente podia usar à vontade. Mais gente usando sem pensar no custo, mais gente aprendendo coisas, testando coisas.

Aí vem o computador. Compre um computador bom e você vai ser taxado num nível absurdo. Importe uma máquina parruda e você vai ser punido para que a gente tenha montadoras nacionais. Veja: não é para que a gente invente computadores nacionais. É para que a gente tenha fábricas de computador que importam as peças e montam aqui. Porque nossa escolha é essa. Ter montadoras nacionais e chamá-las de nossa indústria de tecnologia.

Sabe quem é punido? Quem é pobre. São esses que estão fora da indústria do futuro. A pessoa condenada a ter um computador vagabundo em vez de uma máquina potente, a que precisa contar quanto baixa da internet antes que lhe cortem o acesso.
O LeCun não acha que IAs vão nos dominar. Que vão nos matar. Ele acredita que elas estarão no centro das nossas vidas. O Hinton morre de medo, mas também acha que elas estarão no centro da nossa vida. Inteligência artificial vai ter, em dez anos, um impacto muito maior do que os celulares tiveram. A hora de escolher entrar nesse jogo é agora. Políticas públicas contam muito.
Então por que, diabos, a gente não está tendo esse debate todo dia?

Quem está falando sobre isso no Palácio do Planalto? Quem está debatendo sobre isso no Congresso Nacional? Qual é a polêmica política do dia que envolve inteligência artificial? Nenhuma. No Twitter brasileiro, ninguém está olhando pra Hinton ou LeCun. Está todo mundo olhando pra último polemiquinha. A gravação do Janones, que é um escândalo de corrupção de um deputado federal. A indicação no Dino pro Supremo. Os ataques de uma imprensa contra outra imprensa porque, afinal, a gente precisa inventar uns inimigos pra mobilizar a militância, né?

É isso que estamos discutindo. Estamos inventando inimigos a toda hora pra criar debates artificiais, incitando ódio para acumular seguidores, construir audiência e posar de herói que ataca sem medo. Aliás, o truque para este vídeo aqui explodir era esse. Eu poderia xingar algum jornalista de esquerda, cair em cima do Janones, explorar a sabatina do Dino no Senado, intrigar o indicado à PGR com os bolsonaristas. Um bando de assunto pra esquentar.

Só que um dos debates mais importantes pra existência humana está acontecendo. O que é importante pro futuro? Parece que ninguém está preocupado com isso. Não é tarde demais.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.