A culpa é da Janja?

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Sou uma vagabunda estuprada. Eu dou a bunda para vários homens, chupo um monte de pinto, dou a bunda pros caras, eu vou bater o recorde mundial em dar a bunda. Eu sou uma estuprado, eu sou um arrombado.

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Esses foram alguns dos posts que os hackers que invadiram o perfil da primeira-dama Janja no X, o antigo Twitter, fizeram.

E notem que a gente precisa censurar no YouTube e no Instagram, porque o conteúdo incita explicitamente a violência sexual.

Não no X, tá? A conta ficou hackeada no ar por quase uma hora antes de ser bloqueada pelo X, depois do pedido da Polícia Federal. Ainda teve post clamando por Xandão presidente e dizendo que Janja trai o Lula com o Neymar.

Mas os primeiros foram sobre ela ser vagabunda e estuprada.

“Coisa de adolescente”, alguém pode dizer, com uma condescendência equivocada. É, sim, uma molecagem, mas misturada com extrema violência. E é um ataque muito além da política — não que o ataque puramente político se justificasse, claro.

Só não dá pra ignorar o quanto esse tipo de agressão, altamente sexualizada, é uma violência bastante específica, comumente direcionada a mulheres e à comunidade LGBTQIA+.

Cá entre nós, a invasão à conta de Janja e o que se seguiu tem todos os elementos que a gente precisa pra analisar como funciona o ataque a mulheres no mundo digital e real. E a gente precisa muito falar disso, porque há método tanto na origem da agressão em si quanto na repercussão.

Até aqui, ao que tudo indica, o ataque foi feito por membros de grupos de incel. Pra quem não conhece, esse é o termo usado pra falar de comunidades de homens jovens que pregam abertamente práticas virtuais violentas, especialmente contra mulheres.

O cel da sigla é de celibatários, ou seja, de quem involuntariamente não faz sexo. Esses jovens têm dificuldades imensas de se socializar, de achar parceiras ou de assumir sua sexualidade. Encontram nesses grupos que pregam a violência contra mulheres e outros grupos sexualmente libertos algum senso de pertencimento. E se retroalimentam com discurso e práticas extremamente abusivos. É deles que, não raramente, emergem jovens que decidem levar a violência ao mundo real, com atentados às escolas, por exemplo. Também não é raro eles se identificarem com ideologias da extrema direita, como o integralismo, o fascismo e o neonazismo.

Mais que isso. Existe, também, rivalidade entre esses grupos. Um tipo de disputa é por fama. Eles fazem esses ataques em busca de notoriedade para se exibir para os pares. Outro tipo vai no sentido oposto. Então, gente que acompanha de perto o que acontece nesses “chans”, as comunidades incel, aponta que é possível que um grupo tenha feito o ataque a Janja e esteja tentando incriminar outro.

A voz do rapaz que postou na conta de Janja uma espécie de confissão, seguida de um “não estou nem aí” se a Polícia Federal me prender, pode ser falsa. Deep fake está aí, né? Mas o conteúdo da mensagem é bastante revelador.

Ele fala de “sistema” podre. De Judiciário incompetente. De “Lula corrupto”. Não faz uma menção sequer a Janja, a sua sexualidade, nada. Ou seja, depois de escrever posts de violência sexual explícita e usar essa temática para atacá-la, justifica sua ação como algo puramente político, de revolta contra o sistema.

É uma falácia. As coisas não se separam. Outros ataques hacker a políticos — e eles acontecem com alguma frequência — não passam nem perto de questões sexuais. Mesmo o governador Eduardo Leite, assumidamente gay, quando teve sua conta hackeada, o máximo de cunho sexual que apareceu foi a foto de uma atriz pornô no perfil. Ainda uma violência, percebam. Só mais sutil.

Com Janja, as imagens a que eles recorreram são gráficas, grotescas, do nível daquele adesivo nojento que fizeram da Dilma nos carros. São também cruéis. Apelar a um trauma imensurável na vida de uma mulher, como é um estupro, para fazer um ataque pretensamente político é pura misoginia. E o que se seguiu, nas redes, reforça isso. Quero dissecar isso com vocês.

Eu sou a Flávia Tavares e sou a editora pelo conteúdo premium do Meio. São duas newsletters, uma às quartas-feiras, com análises e entrevistas sobre política, e outra aos sábados, com reportagens de fôlego de tudo que é tipo de tema. Algumas das recentes foram sobre inteligência artificial, sobre o ministro Rui Costa, e a deste sábado vai ser sobre futebol. Assine o Meio! São só 15 reais por mês e você ainda recebe a newsletter diária mais cedo.

Eu já falei um pouco de como os possíveis autores do ataque hacker a Janja pensam e agem. Ao se confirmar que são incels, é parte de sua visão de mundo e metodologia culpar as mulheres por tudo que há de errado com eles e com a sociedade e, a partir disso, agir violentamente.

Se não foram incels, foi alguém que usou de uma tática muito próxima: a de apelar à violência sexual para desqualificar uma mulher — e, no caso, uma mulher que ousa se posicionar no mundo.

Os perfis extremistas de direita nas redes não hesitaram por um segundo sequer para embarcar nessa onda sem qualquer constrangimento, tá?

Os tais defensores da família brasileira tiveram zero palavras de solidariedade à mulher aviltada publicamente. Ao contrário.

Seguiram o script da misoginia à risca.

Mesmo mulheres, o que não é incomum, reproduziram em suas falas o machismo que não enxergam — até serem elas próprias vítimas, pelo menos.

Passo 1: Dizer que a vítima está de mimimi.

Sugerir que não foi nada grave, ou fazer uma brincadeira em cima da violência, normalmente é uma tática de diminuir o tamanho do acontecido e insinuar que a mulher é sensível demais ou frágil ou chiliquenta.

O fim de semana ofereceu um outro exemplo bem claro disso. Depois de sofrer uma tentativa de assalto em São Paulo, a deputada Tabata Amaral foi às redes relatar o ocorrido. O ex-ministro Ricardo Salles, notadamente um grosseiro com mulheres, reagiu falando para ela parar de “fingimento”.  Ambos são pré-candidatos à prefeitura de SP. Eu não consigo imaginar ele usando essa palavra para um candidato homem, você consegue?

Passo 2: Descredibilizar a vítima.

A direita ignorou a violência em si para imediatamente abraçar sua teoria conspiratória favorita: a de armação.

Como a reação de boa parte do governo e da esquerda foi imediatamente pressionar pela regulação das plataformas, os radicais argumentam que o ataque hacker deve ter sido simulado apenas para fortalecer essa agenda.

Isso é muito comum em crimes cometidos contra a mulher, né? Será que ela não inventou porque tinha uma mágoa contra o cara? Por vingança? E como isso de fato acontece em alguns raros casos, e é gravíssimo quando acontece, a teoria da conspiração ganha ares de veracidade.

Na política, essa tática tem sido usada sempre que a extrema direita se sente acuada. Episódios como agentes públicos infiltrados em grupos de esquerda na ditadura também imprimem veracidade pra essa tese. Apelar a isso a priori, porém, diante de uma violência, é demagogia barata da pior espécie.

Passo 3: Culpar a vítima.

Esse aqui é clássico, né? A culpa foi da Janja, que não protegeu direito sua conta.  O fofo que entrou lá e escreveu essas coisas não tem culpa de ela ter deixado a porta entreaberta.

Só que a culpa que muitos tentam colocar na Janja vai bem além dessa.

A culpa de Janja é ser uma primeira-dama ativa, protagonista.

Se a gente estivesse num ambiente democrático saudável, poderíamos ter uma conversa séria sobre como regulamentar as funções de uma primeira-dama no Brasil.

A própria Janja chegou a levantar essa discussão numa entrevista ao Globo, sugerindo que adotássemos o modelo americano, de um cargo com funções específicas.

Mas, obvia e infelizmente, não estamos num ambiente democrático saudável.

Então, em vez de protagonista e ativa, Janja é chamada, muitas vezes pelos próprios aliados no Planalto, de enxerida, de intrometida, mandona, deslumbrada…

Existem diferentes perfis de primeiras-damas. Pra ficarmos nos anos mais recentes, Ruth Cardoso era uma intelectual de imenso valor e reconhecimento. Era um tanto mais discreta que Janja, mas igualmente atuante. O próprio Fernando Henrique a descreveu assim: “Quando fui presidente, Ruth cooperava, mas com independência crítica. Jamais foi apenas ‘primeira-dama’, aliás, não gostava de ser assim qualificada”.

Ela foi essencial pra consolidação do terceiro setor no Brasil agindo coordenadamente com o poder público.

Marisa, a primeira-dama nos governos Lula I e Lula II, também era ativa, de outra maneira. Fazia valer sua voz de um jeito menos politizado, mas igualmente efetivo. E notem como a misoginia independe do perfil da primeira-dama. Marisa era tida como uma “dona de casa” por muitos e isso não impediu que ela fosse atacada por oito anos, inclusive depois de morta.

Bom, a misoginia contra Dilma Rousseff, quando foi presidente, vai muito além do adesivo nos carros, claro, e mereceria um vídeo a parte. Marcela Temer teve de ouvir todo tipo de impropério por ser mais jovem que o marido. Assim como Michelle Bolsonaro, diga-se.

Agora, Michelle também foi uma primeira-dama muito presente. Muito mesmo, ocupando, inclusive, a sala no Planalto que hoje Janja ocupa. A influência de Michelle sobre Bolsonaro também era imensa — e a comemoração da aprovação do ministro terrivelmente evangélico André Mendonça não deixa qualquer dúvida. Ainda que as houvesse, o fato de que hoje ela ganha salário no PL e é cotada para cargos eletivos é fruto da intensa atuação política de Michelle nos últimos anos, talkey?

Tanto Michelle quanto Janja são vítimas de misoginia nas redes.  As mulheres sempre são.

O que Janja tem de diferente, então?

Ela diz “dane-se”, né? Ela falou isso num contexto de militância, com seus pares do PT, ao dizer que podem criticá-la por ser tão presente nas questões de governo. Mas é sua postura em geral no assunto. Ela quer ocupar esse espaço, não esconde isso de ninguém, age pra isso o tempo todo e desafia o Brasil e o governo a lidar com essa sua luta.

Ela quis ter um cargo oficial, pra eliminar essa crítica. Conselheiros de Lula alertaram para o perigo de ele ser acusado de nepotismo pela direita — a mesma que não vê problema em Javier Milei nomear a irmã pra ser seu braço direito.

De qualquer forma, o peso do que Janja diz a Lula oficial e extra-oficialmente só é mensurável pelos dois. Aqui de fora me parece que se ela mandasse tanto assim a gente veria uma mulher indicada ao Supremo e Ana Moser não teria sido demitida, por exemplo. Só me parece.

A gente pode discutir civilizadamente como regulamentar a atuação política de um cônjuge de presidente — seja uma mulher ou não. Até lá, apenas parem de agredir mulheres. Não aguentamos mais.

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