Um isentão e um esquerdista entram no bar

Receba notícias todo dia no seu e-mail.

Assine agora. É grátis.

Olha, a gente precisa ter um freio de arrumação na maneira como conversamos. E, nos últimos dias, me toquei de que há uma conversa que precisamos ter com urgência. Há uma certa sensação, no ar, de que não aprendemos nada nesses últimos dez anos. Mas a gente devia ter aprendido algumas coisas.

PUBLICIDADE

Essa conversa, esse freio de arrumação, me parece que envolve dois conjuntos de pessoas. Primeiro são pessoas de centro. Você é centrista? Pessoas de centro às vezes se identificam como socialdemocratas. Às vezes como liberais. Em geral, uma pessoa de centro não se diz de centro. Ela se diz de centro-esquerda ou de centro-direita. Por quê? Porque estar mais inclinado para um lado ou para o outro é normal. Ao mesmo, tem um espírito de moderação ali. A pessoa compreende, consigo mesma, que ela é politicamente moderada. Tem uma percepção generalizada de que, mesmo estando um pouquinho mais para um dos lados, vez por outra vê um argumento sensato do outro, que faz pensar. Que faz mudar de ideia. E, olha, a pessoa com inclinação ao centro, no Brasil de hoje, não tem qualquer clareza sobre que partido a representa. Existem muitas maneiras de estar no centro político.

O outro grupo de pessoas que a gente precisa envolver nessa conversa são as de esquerda. Aí não tem tanta necessidade de explicação, né? A pessoa que é de esquerda, de esquerda mesmo, ela sabe onde ela está. Ela tem com mais clareza por que partidos torce.

E que conversa a gente tem de ter? Vocês vão entender já. Mas eu queria começar com dois exemplos que mostram claramente um rumo errado que a prosa está tomando.

Nesse sábado, publiquei nos stories do meu Instagram um vídeo curto do Luciano Huck em que ele fala, justamente, desta posição política ao centro. De como é estar no centro. O Luciano tem um talento especial para explicar as coisas a um público muito amplo. E esse é o meu trabalho. Explicar as coisas. Então, sempre que ele fala sobre política, eu presto atenção. Quero entender como ele está explicando, que recursos está usando, de que palavras está lançando mão. E, dessa vez, ele usou um recurso que achei muito interessante. O de comparar com pessoas ambdestras. Capazes de usar a esquerda e a direita com coerência.

Várias pessoas me escreveram indignadas por eu ter compartilhado o vídeo dele. Uma pessoa em particular foi mais enfática e explicou seu incômodo com mais clareza.

<< Papo "bom mocista" que não resolve o problema atual, nosso problema, global, é uma escalada de extrema direita querendo assaltar as instituições, isso se resolve com democracia, lei e aplicação da lei... >>

O cara estava zangado, comecei a puxar a conversa. Afinal, era só um vídeo explicando como funciona um determinado posicionamento político. Como esse vídeo pode atrapalhar algo? A gente estendeu a conversa um tanto. Esse outro trecho me chamou a atenção:

<< Uma súcia internacionalmente articulada querendo destruir a democracia e a gnt deixa isso correr solto em nome de uma "liberdade de expressão"? Tá aí se um dia esse caldo entornar de vez ficaria curioso em ver como os ‘liberais’ iriam se portar… >>

Essa pessoa não é a única articulando uma linha de raciocínio assim. Deixa eu puxar um colega meu, um jornalista. Um jornalista que eu respeito. É o Chico Alves, editor-chefe do site do ICL Notícias. Ele publicou, na sexta-feira, um artigo intitulado “Os isentões estão de volta, agora para acusar o STF de censura prévia nas redes”.

“Depois de um breve momento de união das forças democráticas contra a ameaça autoritária representada por Jair Bolsonaro, o Brasil vai voltando à anormalidade”, ele escreve. “O maior indício dessa desmobilização é o ressurgimento dos isentões. São os espécimes que normalizam os ataques à democracia que a extrema direita promove sem pudor. Foi nesse clima de condescendência que o bolsonarismo floresceu, Bolsonaro se elegeu e o Brasil sofreu uma tentativa de golpe. Agora, talvez por minimizar o risco ou por puro antipetismo, voltam a dar colher de chá ao fascismo.”

Ambos me parecem estar falando mais ou menos a mesma coisa. E a mensagem é a seguinte: estamos num momento excepcional da história. A democracia está sob grave risco. Não é hora de sair tendo ideia diferente. Não é hora de sair escolhendo de que tema político tratar. Não é hora de criticar autoridades da República, fora aquelas alinhadas com o bolsonarismo. Não é hora de questionar decisões dos três poderes. Não é hora de manifestar ideias com as quais não concordamos. Ninguém larga a mão de ninguém. Em essência, não é hora de agir como se estivéssemos numa democracia.

É claro que estou fazendo uma caricatura. Mas é uma caricatura apenas parcial, tá? Porque a lógica inerente a democracias é de que, sim, podemos questionar decisões de quem tem poder, assim como podemos manifestar opiniões a respeito de qualquer tema político que desejarmos. É um dos direitos meio que básicos do cidadão de qualquer democracia. Há momentos de exceção? Claro que há. É evidente que há. E esse é o papo que precisamos ter. Porque nós pensamos diferentemente embora em comum tenhamos o desejo de manter a democracia brasileira como ela é, sob a Constituição de 1988.

Então vamos ter um papo aqui, de isentão pra esquerdista?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Vem cá. Vocês já entenderam o que a gente faz aqui, não é? A gente faz uma defesa da democracia. Isso não é porque a gente é de esquerda. Não é porque a gente é de direita. Mas é porque a gente entende que existem brasileiros de direita, existem brasileiros de esquerda, os dois grupos têm pleno direito à cidadania e a gente precisa voltar ao mundo em que todo mundo era capaz de sentar e conversar. Em que éramos capazes de gostar das pessoas mesmo quando a gente discordava delas. Não tem ameaça à democracia quando todo mundo se fala na boa. Ameaça nasce quando as pessoas não são capazes mais de diálogo. A gente, aqui no Meio, traça uma linha e diz o seguinte: cruzou ela, quis derrubar a democracia, você está fora do jogo. Mas todo o resto continua dentro. Tanto esquerda quanto direita são legítimos para jogar. E isso inclui o Centro que, sim, existe. Precisamos da assinatura de vocês porque, se a gente não fica de pé, o que sobra na internet é jornalismo que torce para um lado. Se só sobra o jornalismo das torcidas, a gente não vai ter paz. Vai ser pra sempre aquele discursinho de porque o outro lado é tudo de ruim e nós somos a virtude encarnada. Assine o Meio. Se você acha que isso aqui faz sentido para você, assine o Meio. É contigo. É com todo mundo que entende que a internet, o digital, precisa deste tipo de jornalismo. Que a democracia precisa.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Nunca gostei do termo isentão. Apelidos não existem à toa no jogo da retórica política. Tanto políticos quanto jornalistas lançam mão de apelidos o tempo todo. Alguns são feras nisso. Pega Leonel Brizola. O objetivo do apelido é sempre criar uma imagem caricatural que diminui uma pessoa ou um grupo político. Reduz a uma característica qualquer. As mesmas pessoas que costumam dizer que não existe o centro político são aquelas que adoram chamar um bando de gente, como eu, de isentão. É aquela posição ideológica que não está exatamente à esquerda, nem exatamente à direita, e pode ter apelido.

O que diz essa palavra? É, em tese, uma pessoa que não se define entre as duas bandas da polarização política. Que foge de se colocar. Que, no limite, não tem de fato opinião firme a respeito de nada. Mas o importante é isso. Nunca se posiciona.

É, pois é. Tem gente que é a favor de aborto, é a favor da legalização das drogas, do casamento civil homoafetivo, acha que tem de preservar a Amazônia, tem inclusive de reflorestar um pedação da floresta, e também acha que privatização costuma fazer mais bem do que mal, que o governo deveria criar regulação para a economia mas não ditar os rumos da economia e, fundamentalmente, que é preciso rigor com responsabilidade fiscal. Jogue no pacote ainda a ideia de que o futuro do Brasil depende de estimulo ao empreendimento, às iniciativas de pessoas com vontade de fazer coisas e um Estado que deixe elas soltas para que criem. Mas que ainda assim ache que o Bolsa Família é brilhante e fundamental. Que ensino público universal é fundamental. Saúde pública. Que tem simpatia pela ideia de renda mínima universal. Precisa só ver como paga. No Brasil de hoje, nenhum desses temas é simples e pouco polêmico. Pegue alguém que pense essas coisas todas com convicção, dá para chamá-la de isenta? Não, não dá.

Agora, evidentemente que não dá para caracterizar uma pessoa que pense tudo isso nem como bolsonarista, nem como petista. Essa pessoa, o que ela é no Brasil de hoje, é minoritária. Ela de fato não está em nenhuma das bandas da polarização. Claro, pode-se fazer pouco daquilo em que essas pessoas acreditam. O problema é que em democracias, por serem liberais, essas pessoas têm o direito de continuar pensando e falando a respeito.

Fazer pouco de quem é radicalmente democrata mas pensa diferentemente de você é um exercício de afastamento. É como criar briga. Eu entendo que muita gente acredita que a eleição de Jair Bolsonaro aconteceu por culpa de gente de Centro que não votou no PT. Mas não dá para tirar dessa equação o fato de que o PT em particular e a esquerda, em geral, passou dez anos ofendendo essas pessoas. Inclusive com termos como isentão.

E, não, antes que alguém diga isso, jamais votei em Jair Bolsonaro na minha vida. E, não, não anulei meu voto em 2018. Esta conversa não tem nada a ver com meu voto pessoal. Essa conversa é uma sobre dois grupos que precisam conversar. É importante que quem esteja em defesa da democracia seja capaz de conversar como adulto.

Passei os últimos três anos do governo Jair Bolsonaro falando em Paradoxo da Tolerância. Em vídeos, aqui, dissequei a versão do Karl Popper, a versão do John Rawls, e acredito, sim, que há momentos em que determinadas liberdades democráticas devem ser suspsensas para se defender a democracia. Tampouco acho que Allan dos Santos deva ter seu acesso às redes sociais aberto.

Mas Lula é presidente faz um ano e meio e a Procuradoria Geral da República não está mais sob Augusto Aras. Quatro generais de Exército e um Almirante de esquadra estão prestes a virar réus pela primeira vez na história. Bolsonaro não tem o direito de concorrer à próxima eleição. Donald Trump pode ser eleito nos Estados Unidos? Pode. Elon Musk fica batendo em ministro brasileiro pelo Twitter? Fica. Javier Milei foi eleito presidente da Argentina? É. O Chega cresceu em Portugal? Pois. Cresceu. A extrema direita segue de pé? Segue.

Ainda assim, qual o objetivo dessa conversa, aqui? É sustentar, é manter, o Estado Democrático de Direito? Se for este o objetivo final, a gente precisa ter uma conversa a respeito de quando regras de exceção param de funcionar. Precisamos poder conversar sobre isso. Precisamos ter um debate sobre quando, na democracia que desejamos salvar, podemos agir como se vivêssemos numa democracia.

Isso quer dizer, para começar, que debates não sejam interrompidos. Isso quer dizer que a gente debate a sério. A gente conversa. A gente não se ofende. A gente não parte para dizer que o outro não tem o direito de pensar o que pensa. Pode-se defender que regras de exceção ainda devem valer? Tudo certo. Pode, sim. Então vamos discutir que critérios usaremos para definir quando poderemos voltar a viver numa democracia normal? Podemos voltar a conversar sobre quando regras de exceção param de valer?

Qual o critério? Quem define o critério? Não dá pra gente não ter essa conversa e simplesmente metralhar quem acha que o tempo da exceção, no Brasil, já passou.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.