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Censura já!

Uma das minhas memórias políticas mais antigas foi um dos atos de maior ruído do governo José Sarney. A censura do filme Je vou salue Marie. A tradução literal desse título é “eu vos saudo, Maria”, mas é só a abertura da oração à virgem Maria. Quer dizer “Ave Maria”. É um filme menor do Jean-Luc Goddard, um dos últimos dele, lançado em 1985 mas que chegou ao Brasil em 1986. Os filmes não tinham lançamento simultâneo em todo mundo naquela época. Mas, de qualquer jeito, a premissa do Goddard é muito interessante. Marie, a personagem principal, é uma jovem jogadora de basquete que, mesmo virgem, um dia aparece grávida. Ela sabe que a gravidez apareceria porque um sujeito chamado Gabriel, que diz receber mensagens divinas, a informa que o milagre vai acontecer. E o namorado dela, um camarada chamado Joseph, se contorce em ciúmes. Não sabe como lidar com a gravidez de Marie, que jura que ainda é virgem. E a gente fica com aquela dúvida ali. Será que ela está dizendo a verdade? Além do mais, Marie aparece nua o tempo todo. Não é uma nudez sexualizada, não é erótico. Mas é uma moça normal, virgem, com um namorado normal, que aparece grávida após um camarada que diz ouvir mensagens de Deus dizer que tudo aquilo ia acontecer.

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Aquele era um Brasil muito diferente. Acho que muita gente não tem noção de como nosso país mudou. Mudou profundamente. A gente, por exemplo, nunca falava de evangélicos. Não é que não existissem crentes, eles existiam, mas eram poucos e não relevantes. A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil ficou indignada com o filme. O que os bispos falavam, o que muitos dos católicos falavam, é que o filme era profundamente ofensivo à ideia da Santa Maria. Expor assim São José como um cara ciumento, expor a virgem nua o tempo todo. Vulgarizar toda ideia da concepção imaculada daquele jeito assim cotidiano, como os filmes do Goddard sempre são, né? Aquele longo cotidiano contado em cenas entrecortadas. E, olha, pra um católico de fé o filme era ofensivo mesmo, tá? Os católicos pensam na virgem Maria de forma etérea. A figuração dela, o rosto com um sorriso plácido, nuvens à volta, é sempre assim. Distante, sábia, bondade infinita. E o jovem papa daquela época, João Paulo II, era um cara muito ligado à virgem.

O Sarney, que era o presidente, mandou proibir a exibição do filme. Censura a seco. Ele dizia que era “católico praticante” e não queria “contrariar o espírito cristão do povo brasileiro”. O ministro da Justiça era o Fernando Lyra, que resistiu. Ele queria dar uma classificação indicativa de 18 anos. Não adiantava. O presidente queria. O Lyra assinou a censura e deixou o governo. Assumiu Paulo Brossard. Um liberal, tá? Deputado altivo do MDB durante a ditadura, um institucionalista. Talvez o discurso mais bonito contra a censura durante o regime militar foi dele, no Senado, em 1975. Parlamentarista convicto. O trabalho dele sobre o impeachment é talvez um dos mais importantes do pensamento jurídico-político brasileiro. Mas, pois é. A igreja pressionou, o Sarney pressionou, aí foi. O Brossard argumentava que o filme ameaçava a paz social por ser ofensivo à maioria católica do país.

Foi um levante. Foi bonito mesmo de ver. O Lyra mesmo havia declarado que o governo Sarney representava o fim oficial da censura pra, menos de um ano depois, aparecer com uma censura bizarra contra um filme. Porque, veja, o Brasil tinha saído da ditadura mas ainda não tinha Constituição de 1988. A gente ainda estava trabalhando essa ideia do que é viver numa democracia. O governo não havia ainda recorrido a um expediente da censura que é a censura prévia. Cineclubes pelo país organizaram exibições públicas do filme. A ideia era desafiar o governo. Vem prender a gente. O secretário da cultura aqui do Rio, um ator muito louco chamado Antônio Pedro, foi pessoalmente numa dessas exibições. Ele, que era um cara super de esquerda, evocava o princípio liberal do John Stuart Mill. Não pode o exercício de um direito ser bloqueado a todos os cidadãos porque incomoda a uma parcela da sociedade. Mesmo que seja a maioria da sociedade.

A censura caiu, tá? Em semanas. O Sarney simplesmente não foi capaz de sustentar a censura. Os jornais fizeram editoriais, artistas de toda parte se levantaram contra a coisa, Caetano Veloso fez discurso em show. A gente tinha acabado com a ditadura, a gente não queria mais que o Estado tivesse aquele tipo de poder de proibir o que podia ser dito em nome de um grupo qualquer. Aí, na Constituição, veio aquele parágrafo que é uma lindeza. “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” Simples assim. Se você mostra sua cara, põe sua assinatura, você pode falar o que pensa. Se causar dano evidente a alguém, aí a gente considera a possibilidade de punir.

MC Poze. Oruam. Monark. Léo Lins. A turma pró-palestina. A gente não tem mais essa convicção. Veja, eu não estou entrando no mérito de se estamos certos ou errados. Aqui, eu só estou observando um fato. Em 1986, nós éramos uma sociedade que se preocupava profundamente com censura. Não somos mais.

Eu sei, eu sei. Vocês todos estão com vários, “ah, mas nesse caso”, “ah mas tem excessão”, “ah mas veja bem”. Tudo certo. Por enquanto estou só constatando que o Brasil mudou. Todo mundo tem na cabeça uma turma que não devia falar com liberdade. Não era assim. Agora, é.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Sabe, a gente precisa conversar sobre que tipo de espaço existe para podermos falar abertamente sobre valores. Não estamos tendo essa conversa. Este é um ato de cidadania. Aqui no Meio a gente defende a liberdade de ouvir dois, três lados, para então fundamentar a construção de um pensamento crítico e que seja seu, de fato. Mas para isso a gente sabe, é preciso construir repertório. E o Meio Premium é ideal para isso. Reportagens exclusivas, newsletters especiais aos sábados e às quartas e streaming por apenas R$ 15 por mês. Assine. Te garanto que vai fazer a diferença nas suas conversas.

E este? Este é o Ponto de Partida.

Léo Lins é um horror, tá? As piadas dele são racistas num nível inacreditável. É homofóbico. É transfóbico. É aquele sujeito branco, louro, de olhos azuis que só consegue algum tipo de espaço porque se sente com o direito de falar as maiores atrocidades sobre as pessoas mais expostas a violência no Brasil. Ele foi condenado por tudo isso a 8 anos de prisão e a pagar mais de 300 mil reais como indenização por danos morais.

É a mesma pena que paga alguém condenado por tráfico de drogas, por homicídio. Seu crime foi ser um babaca. Um ser humano ruim.

Claro, um bando de gente de extrema-direita neste exato momento deve estar me aplaudindo. Muitas dessas pessoas, aposto, apoiam o avanço do governo Donald Trump sobre estudantes que levantam faixas de Palestina Livre do Rio ao Mar nas universidades de lá. Estudantes que estão sendo presos no meio da rua por policiais mascarados, que não têm acesso a nenhum processo judicial que possa ser considerado o trâmite mínimo.

Na boa? Considero, pessoalmente, esses estudantes que vociferam pelo fim do Estado de Israel igualmente babacas. Minha opinião. Apenas minha.

Alguém foi assassinado por causa de alguma piada do Léo Lins? Israel está em risco de existência por causa desses estudantes?

O ponto aqui é o seguinte: se ofensa é crime, se defender ideias ruins pode ser criminalizado, como é que chegamos a uma definição de que grupos têm direito a ofensa e que grupos não têm? Quem determina que ideias são ruins e quais não?

Eu nasci em 1974. Naquele ano, na maioria das casas brasileiras, era bastante razoável defender a ideia de que homossexualidade era uma abominação. A gente mudou. Mas a gente mudou porque houve um convencimento da sociedade. E este convencimento ocorreu, ao longo de algumas décadas, porque houve liberdade para dizer o contrário. Se hoje precisamos tomar extra-cuidado com linguagem racista é também porque houve espaço para este convencimento. Ideias que eram consideradas ruins num momento hoje são consideradas mais que razoáveis. São consideradas um padrão ético mínimo.

Hoje temos um governo de esquerda. Ano que vem um Bolsonaro da vida se elege e se reelege em 2030. Aí, em 2032, teremos um STF em que Alexandre de Moraes é minoria. Sem golpe, tá? E o que o Supremo vai decidir sobre o que é razoável de se dizer? Quem é que vai ser censurado? Alguém acha que a censura do Monark mudou qualquer coisa sobre o que é dito nas redes sociais? Tivemos um monte de contas suspensas e, sim, algumas suspensões são bastante razoáveis. Paulo Figueiredo estava ostensivamente trabalhando por um golpe de Estado, organizando um cerco de pressão aos generais legalistas. Mas mudou o que na internet brasileira? Nada.

A direita, olha, é tão censora quanto. Jair Bolsonaro se elegeu e no discurso de vitória prometeu banir a esquerda do Brasil. Se ele pudesse, faria. Donald Trump está ativamente trabalhando para banir o pensamento progressista nas universidades americanas.

Gente, mudou. Estamos num momento censor. Não funciona. E é perigoso. Proíba hoje as ideias que são ruins pra você e alguém vai proibir as suas ideias amanhã. Isso quer dizer que nenhum discurso pode ser proibido? Não. Claro que não. Se tivermos uma situação de dano iminente, dano claro, e este é o caso do Paulo Figueiredo que estava publicamente trabalhando por um golpe militar, faz sentido. Mas censura precisa ser a exceção. Sabe, deixa eu falar uma coisa que se perdeu. Essa discussão não é nova. Essa armadilha na qual estamos caindo não é nova. Todo mundo em todas as épocas sempre teve vontade de calar ideias perigosas. E não tem um momento na história em que essa tentativa de calar tenha feito qualquer ideia morrer. Aliás, nem o AI-5 conseguiu, de fato, calar o país.

Hoje nos sentimos à vontade pra querer banir o direito de se expressar de um monte de gente. Aquele Brasil que saiu da ditadura não existe mais. Não em espírito. E eu ando numa nostalgia só.

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