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Vamos proibir o caipira

Você já passeou pelo interior de Minas? Talvez por Goiás? Ou, quem sabe, ali pelo sertão nordestino, por uma fazenda paulista? Acho que sim. Já viu algum caipira com calça jeans remendada, camisa xadrez, chapéu de palha? Aposto que não. Mais provável ter visto calças de sarja ou shorts de tecido sintético, muitas camisetas com propaganda, bonés de todo tipo. Na última semana, uma escola de São Paulo sugeriu que os pais evitem estereotipar a vida rural. Que deixem de lado pintinhas no rosto, pinturas exageradas de barbas, bigodes, costeletas e sobrancelhas, escurecimento dos dentes, chapéus de palha velhos e desfiados, remendos nas roupas e trancinhas de plástico.

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Caipiras nunca se vestiram com roupa de caipira, no Brasil. Talvez a única coisa que seja real, ali, é o chapéu de palha.

A festa de São João é, desde há muito tempo, celebrada em Portugal. Desde antes da descoberta. E estas festas, lá em Portugal, sempre tiveram uma fogueira no meio, no entorno da qual os camponeses, vestindo roupas de camponeses, dançaram. Claro. Era a roupa deles.

A quadrilha é uma dança na origem francesa que a Corte trouxe quando dom João veio parar por aqui. E ela foi incorporada às festas juninas sem jamais passar pela zona rural. Os americanos também importaram a mesma tradição, eles chamam de square dancing. Uma ainda lembra um pouquinho da outra. Continuam sendo danças de casais que se cruzam batendo o pé. O sujeito aqui, que nunca foi capaz de manter um ritmo na vida, sempre se perdia.

No início do século 20, não existia uma roupa do interior e uma roupa da cidade. Como tudo era muito caro, as pessoas realmente não tinham tanta roupa assim. Então, ora, roupas eram remendadas. A gente parou de remendar roupa faz bem pouco tempo, tá? Mas este era um hábito de toda casa brasileira até lá pelos anos 1950, 60. Até mais. Não se joga fora uma roupa à toa por causa de um buraquinho.

Quem inventou a roupa que as crianças vestem na festa junina foi um grande ator brasileiro chamado Amácio Mazzaropi. No tempo das Chanchadas da Atlântida, levava legiões para o cinema. Possivelmente, nenhum ator fez tanto tanto sucesso no cinema quanto ele. Se não ele, Oscarito. Eram os dois grandes daquele tempo. E como, frequentemente, os personagens do Mazzaroppi eram do interior, ele criou a ideia de como um caipira devia ser. A gente não vivia num país com cultura de imagem. Pouca gente tinha acesso a revistas. Então o cinema criou isso. E de onde o Mazzaropi foi buscar sua roupa? Dos filmes de caubói americano. Ele estava vestido de texano, de californiano, com a camisa xadrez e calça jeans. Calça jeans, no tempo do Mazzaropi, era cara pra caramba. Quem tinha uma calça Lee, é assim que se dizia, era só classe média alta urbana até meados dos anos sessenta. E não era coisa de caipira, tá? Era coisa de roqueiro. Era moderno que só.

Essa ideia do look caipira foi consolidada por duas duplas sertanejas. Primeiro, Alvarenga e Ranchinho, depois por Tonico e Tinoco. Eles copiaram o Mazzaropi para se parecer com aquilo que o brasileiro começou a achar que era um “caipira”. Porque, de novo, no campo ou na cidade não tinha qualquer diferença da roupa que se vestia. Era calça de sarja, vestido de chita. Roupa de tecido barato. Então, justamente porque não tinha diferença, era preciso um código visual que aquelas duplas usavam para dizer “eu faço música do interior”. O atalho foi o velho Mazzaropi.

Essa virada da primeira metade do século 20 pra segunda foi um choque muito grande no país porque foi um momento de urbanização e modernização muito rápida. É o período do Mazzaropi, do Alvarenga e Ranchinho, do Tonico e Tinoco. Eles eram os rostos que falavam com a cidade sobre o campo.

Veja, a gente perdeu essa noção, mas o problema da cidade é que, na cidade, corremos o risco grande de perder o contato com nossa essência. Com quem fomos. Com algum tipo de identidade nacional comum. Na cidade, a gente não mora em casa, não frequenta os vizinhos, deixa de ir à igreja todo domingo. Há um processo de individualização. O que determina nossos amigos deixa de ser a vizinhança e passa a ser a escola ou o escritório. Nossa comunidade deixa de ser nossa rua, passa a ser a cidade toda. Só que, na cidade toda, quando andamos na rua somos sempre estranhos para os outros. Somos rostos anônimos na multidão. No interior, quando andamos na rua todo mundo nos conhece. É um eterno levantar ligeiro o chapéu, dizer boa tarde, e seguir o passo até o próximo encontro.

A festa junina não é uma festa caipira. É uma festa sobre lembrarmos de como o Brasil foi e não é mais. E, ao que parece, até educadores estão perdendo essa percepção.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Sabe, a gente precisa conversar sobre que tipo de espaço existe para podermos falar abertamente sobre valores. Sobre o que é sermos brasileiros todos. Não os vermelhos de um lado e os amarelos do outro. Sobre quem somos em conjunto. Não estamos tendo essa conversa. Este é um ato de cidadania. Aqui no Meio a gente defende a liberdade de ouvir dois, três lados, para então fundamentar a construção de um pensamento crítico e que seja seu, de fato. Mas para isso a gente sabe, é preciso construir repertório. E o Meio Premium é ideal para isso. Reportagens exclusivas, newsletters especiais aos sábados e às quartas e streaming por apenas R$ 15 por mês. Assine. Te garanto que vai fazer a diferença nas suas conversas.

E este? Este é o Ponto de Partida.

Entre os anos 1940 até os 70, a formação de todo brasileiro bem educado sobre ser brasileiro começava com Monteiro Lobato. Porque ele é um escritor de um século atrás e seus valores se perderam no tempo, banimos o Lobato. Tudo certo. Durante um tempo, as escolas ainda ensinavam folclore. Ainda falavam de Cuca, de Saci, de Matita Perê e Boitatá e Yara ou Curupira. Hoje em dia, é por uns meses quando as crianças são bem novinhas. Depois some do mapa. Eu ainda tive avó que contava as histórias da infância dela, na fazenda de borracha do pai no interior do Amazonas. Quem é da minha geração tem alguma referência assim na família ou perto. Mas meus filhos não têm isso. A turma que nasceu pós 2000 nas grandes cidades perderam por completo o contato com quem fomos.

Olha, eu gosto de cidade, tá? Não quero viver no interior. Quero viver num lugar com muita gente diferente, muito evento diferente, e torço pra ter dinheiro e poder pegar avião para seguir conhecendo o mundo. A diversidade me atrai. Ser cosmopolita, pra mim, é mais atraente como proposta do que ser nativista. Questão de gosto pessoal. Só que essa onda só se aproveita quando sabemos quem somos. Quando sabemos o que é ser brasileiro.

O laço que ainda nos prende a todos, brasileiros, a este Brasil que foi, ao Brasil do passado, o Brasil pré-urbanização, é a Festa Junina. O dente preto está lá porque fomos muito pobres. Não é sobre os outros. É sobre nossos avós. Minha avó usava dentadura. Todos os avós usaram dentadura. A calça remendada está lá porque todos nós remendávamos calças e camisas. As pintinhas estão lá porque portugueses de descendência visigoda ou celta têm às vezes sardas. Os bigodes, as barbas, estão lá porque as crianças estão fantasiadas de adultos. Sim, por causa do Mazzaropi a gente pôs uma roupa caipira. Mas o caipira, aí, não vem de fazer graça do interior. Vem do fato de que éramos todos do interior antes de haver cidades tão grandes que perdemos a capacidade de conhecermos todo mundo que a gente encontra na rua.

A roupa é a invenção dum paulistano de Santa Cecília, filho de italiano com portuguesa, que queria imitar Tom Mix ou John Wayne. A dança é francesa. A festa com fogueira, portuguesa. Os bigodes, as sardas, são os elementos que crianças usam para fingir que são adultos. Os remendos são para lembrar que fomos muito mais pobres do que somos hoje. O chapéu de palha, este sim, sempre foi muito brasileiro. Um chapéu leve, dum material que deixa o vento passar, e faz sombra porque, olha, aqui tem sol o ano inteiro e se você passa muito tempo na rua, é bom se cobrir. Se ele está desfiado? Ué. Não dá pra trocar o chapéu só porque perdeu a cera que segura todas as tramas. É uma festa caipira porque nosso país nasceu rural e rural foi por quatro séculos e meio. Caipira foi o Brasil todo. Na festa junina, não estamos fantasiados do outro. Estamos fantasiados de uma ideia de quem fomos. Estamos celebrando quem somos juntando um recorte de elementos catados de toda parte porque cultura popular é assim em qualquer lugar do mundo.

Não pode ser índio no Carnaval, baiana branca não pode usar turbante, estampas africanas só para quem parece na pele descender. Aí começamos a questionar se podemos nos vestir de brasileiros do passado na festa junina. Mas, olha, continuamos sendo brasileiros, com o passado que temos, todos seus horrores e todas suas alegrias. Só estamos proibidos de representar isso. Continuamos misturados todos nós, continuamos mestiços, não importa a cor da nossa pele. Quando tudo é um estereótipo que desrespeita, quando tudo é exibição de preconceito, quando o ato de vestir-se de brasileiro, de abraçar os elementos da identidade que compartilhamos é visto com desprezo, com horror, pelas pessoas mais educadas do Brasil… O que é que resta?

Resta, talvez, vestir mocassins italianos, calças americanas, camiseta de time europeu, acessórios made in China e, no carnaval, vestir a roupa do Homem Aranha. Jogar videogame japonês, ouvir música coreana. Tocar no passado brasileiro, afinal, é desrespeito. Toda tradição será castigada.

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