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Assim, a esquerda não governa mais

Você é de esquerda? Do jeito como está, nenhum presidente de esquerda governará mais o Brasil. Isto não tem nada a ver com uma única decisão, não tem um só culpado. Não é a obra proposital de qualquer grande estrategista da direita e, em alguns pontos, parte das decisões que nos trouxeram aqui incluiu muita ajuda da esquerda. Mas há um somatório de mudanças que aconteceram nos últimos anos e que construíram este cenário. Como está, os brasileiros podem até eleger um presidente de esquerda. Ele não governará.

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O governo foi ao Supremo Tribunal Federal reclamar do Congresso Nacional. O Congresso derrubou um decreto presidencial que aumentava o Imposto sobre Operações Financeiras. Essa decisão do governo tem mesmo um problema. O IOF não é um imposto que exista para jogar dinheiro no caixa do governo. Não é a razão legal de sua criação. Ele é um imposto regulatório, não arrecadatório. Então para que serve? Para que o Estado possa incentivar mais ou menos determinados tipos de operação financeira. Quer mais empréstimos? Um dos jeitos de baratear é diminuindo o IOF. Quer menos? Aumenta. Quer restringir a procura de dólares? Às vezes pode ser necessário. Quer que menos dinheiro saia do país? Ou que as pessoas usem mais docs e menos cartões de crédito? Aumenta o IOF, diminui o IOF. Por aí vai. A lógica é que um imposto assim pode permitir que o governo faça essa regulação.

O problema é que o governo está com dificuldade de manter suas contas em dia. Tem lugar de onde tirar dinheiro, tá? Em 2015, a presidente Dilma Rousseff concedeu 458 bilhões em isenções fiscais a inúmeras indústrias. Sua esperança é de que não demitissem ninguém em troca de pagarem menos imposto. Não deu certo e nunca mais ninguém retornou com aquela cobrança de imposto. Claro, tirar é fácil. Botar de volta, o lobby é furioso. Hoje, segundo o TCU, todas as desonerações fiscais que o governo concede correspondem a 519 bilhões de reais. Essa grana faz muita falta. Sabe quanto o aumento do IOF iria trazer pro governo? 76 bilhões. Essa é daquelas situações em que fica até difícil dizer de quem é a responsabilidade. Se é do PT, que inventou esse problema gigante abrindo mão de imposto para tantos empresários, ou se do Congresso, que agora que o governo precisa, se recusa a repor os impostos.

Então aí, para remendar porcamente o buraco nas contas, o ministério da Fazenda decidiu pegar um imposto que foi criado para regular operações financeiras e usá-lo para arrecadar dinheiro. De novo: não é para o que serve legalmente. Mas foi a solução que encontraram. Aí a coisa complica. O Congresso criou o IOF e delega ao presidente da República a autoridade de fixar a alíquota. O presidente, então, atribui ao ministro da Fazenda esta função. Pois bem, o que decidiram deputados e senadores? Não, o presidente não pode fazer o que fez. Por que não pode? Porque é inconstitucional usar IOF para arrecadar mais dinheiro. Aí o Planalto foi ao Supremo. Alega que definir a alíquota é uma atribuição do presidente da República. Então ele mexe quando quer e o Congresso não pode dar pitaco nisso.

Olha, o Supremo pode ir pra qualquer lado. Ele pode concordar com o Congresso que o uso para arrecadação é inconstitucional. Porque é. Pode decidir que, como foi o Congresso que delegou ao presidente o poder de definir a alíquota, o Congresso pode perfeitamente discordar. Assim como pode dizer que, nada disso, se a definição cabe ao presidente, o Congresso não pode mais interferir nesta decisão. Então não poderia ter derrubado o decreto presidencial.

Foi um gesto muito forte do Palácio do Planalto ir ao STF contra o Parlamento, sabe. Porque, caramba, Câmara e Senado já estão na mão da oposição. A oposição já está em pé de guerra com o Supremo. Se o Congresso se vira contra o Planalto, o presidente fica de mãos atadas, vai aprovar cada vez menos coisa até o fim do mandato e isso o impede de governar. Só que, se a decisão do Congresso permanece de pé, o governo fica completamente sem dinheiro e também não consegue trabalhar. Se correr o bicho pega, pois é.

Quem reclama que esse Congresso não presta, não deixa o governo governar e tudo o mais, está errado na queixa. Os deputados e senadores são conservadores porque o povo brasileiro escolheu assim. O governo que lide com um Congresso de maioria de oposição. Quem reclama que o presidente é de esquerda está igualmente errado pelo menos princípio. Lula é quem é e o povo brasileiro o elegeu ciente disso.

Só que tem uma sutileza aí importante de entendermos. As cartas estão marcadas. Se ficar como está, um presidente progressista nunca mais terá chances de governar o Brasil. Pode ser eleito, até tende a ser eleito. Mas sempre terá um Congresso que amarra suas mãos. Quer entender como? Vem comigo.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Rapidinho, dois segundos doutro assunto antes de voltarmos. Nós não estamos conversando sobre Israel e Palestina. Nos dividimos em grupos, cada um do seu lado xingando o outro. Pois é. É sempre assim nas redes. Usamos palavras fortes, tratamos o lado do qual não gostamos como a pior gente que existe. Às vezes, fazemos parecer que este conflito nasceu no 7 de outubro de 2023. Ou em 1967. Ou, mesmo, em 1948. É muito mais antigo do que isso.

Estive por dez dias, em Israel, em fevereiro deste ano. Conversei com políticos árabes e judeus, com ativistas árabes e judeus, com gente nas ruas. Fui do norte ao sul do país. Ao voltar pro Brasil, mergulhei nos livros. O resultado deste trabalho ficou pronto agora. No próximo dia 10 de julho estreiam no streaming do Meio três episódios especiais do Ponto de Partida, a série. Está lá a história e também a política. No todo, no conjunto os três filmes são um clamor pela paz. Uma defesa da solução de dois estados, um para cada povo. Não há outra solução que não essa.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Por conta da maneira como elegemos deputados federais, a Câmara sempre tende a ser conservadora. Sempre. Desde 1988. O problema é o seguinte: para eleição de deputado, não é cada cidadão, um voto, num candidato. Mesmo quando a gente digita na urna o nome de uma pessoa, na verdade estamos votando no Partido ou na Federação de Partidos. Digita Tabata Amaral, o voto vai pro PSB. Digita Eduardo Bolsonaro, o voto vai pro PL. Aí, fazemos uma conta assim: soma todos os votos que o PL recebeu. Todos que o PSB teve. Quantos por cento do total? O PL teve 20% de tudo, o PSB teve 10%. São Paulo tem 70 deputados, 20% disso dá 14. O PL elegeu 14 deputados, o PSB elegeu 7. Aí, sim, você vai lá nos candidatos do partido e faz a ordem de quem recebeu mais votos até quem recebeu menos. Os 14 primeiros entram, os 7 primeiros do PSB.

Mas aí tem o pulo do gato. Nas grandes metrópoles, o voto se fragmenta e tende a ser muito ideológico. Votamos, nós que moramos em cidades com milhões de moradores, em deputados por seus valores, para que representem modos de entender a sociedade. Uns poucos candidatos, como o Eduardo Bolsonaro ou a Tábata, têm centenas de milhares de votos, mas a maioria dos candidatos fica abaixo dos dez mil. As cidades médias votam em representantes locais. Isso tem lógica. Cidades grandes precisam pouco do governo federal, mas cidades pequenas e médias disputam para trazer dinheiro de Brasília. Então os eleitores dessas cidades concentram os votos em um número bem pequeno de parlamentares “distritais”. Escolhem os representantes da localidade que se preocupam, principalmente, em trazer dinheiro para lá com emendas. Um monte de candidato com uns 30 mil votos. O resultado prático é o seguinte. Os poucos grandes campeões de votos estão nas cidades grandes, mas a maioria dos que têm uma votação mediana são do interior. Uns três quartos da Câmara vêm de cidades médias e uma parcela pequena de cidades grandes. Sabe doutra coisa: cidades do interior são muito mais conservadoras do que capitais. Em todos os países é assim.

As regras de como elegemos deputados produzem uma Câmara que é sempre conservadora. Só que a maioria dos brasileiros mora em grandes centros urbanos. Olha a história dos nossos presidentes eleitos pelo voto direto. Fernando Collor, conservador. Um mandato. Fernando Henrique, progressista, dois mandatos. Lula, progressista, dois mandatos. Dilma Rousseff, progressista, dois mandatos. Jair Bolsonaro, conservador, um mandato. Lula, progressista, o atual mandato. Elegemos sete vezes progressistas e duas vezes conservadores. Sempre com Câmaras conservadoras.

Pois é. Mas os deputados precisavam do governo federal para levar dinheiro para suas cidades. Se o governo não lhes concedesse cargos e emendas, não tinham como cumprir a missão para a qual foram eleitos. Além disso, deputados dependiam da ajuda do governo para conseguir dinheiro privado para suas campanhas eleitorais. Agora mudou. Depois da Lava Jato, escolhemos que o financiamento público dos partidos e das eleições era necessário. Os partidos já têm a grana garantida. E, após o Orçamento Secreto, não precisam mais do presidente para que suas emendas sejam enviadas para suas cidades. Deputados federais não precisam do governo para nada. E, se discordarem das ideias do governo, podem simplesmente votar contra.

Entenderam o nó? Elegemos Câmaras dos Deputados conservadoras e tendemos a eleger presidentes progressistas. Esses deputados não têm qualquer obrigação de aprovar o que os presidentes propõem. Se discordarem, nem devem. E os presidentes não têm mais instrumentos para construir suas coalizões.

Com as regras atuais, nenhum presidente progressista governa o Brasil. Com as regras atuais, tendemos a eleger presidentes progressistas. O Brasil se tornou ingovernável.

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