Bolsonaro e os excessos de Moraes
A tornozeleira eletrônica já está lá. O toque de recolher, a apreensão do passaporte, as restrições na comunicação.
O ex-presidente da República Jair Bolsonaro está a um passo em falso de ser preso. Chama a tudo isso de “suprema humilhação”. Mas o nome técnico do pacote é outro, são “medidas cautelares”. São as alternativas a uma prisão, que é o que de mais grave pode acontecer na Justiça brasileira.
As cautelares a que Bolsonaro está submetido são no inquérito da nova tentativa de golpe de sua família, em seu nome. Quando seu filho Eduardo vai para os Estados Unidos e passa a operar para que o governo de Donald Trump interfira diretamente na política brasileira, advogando para que hajam sanções a atores legítimos de um dos Três Poderes, é disso que estamos falando: de uma articulação para que um governo estrangeiro promova um golpe de Estado no Brasil.
Se eles vão conseguir algo tão drástico, não importa. Da mesma forma que não importava se o 8 de janeiro ia acontecer da maneira que aconteceu para que todo o resto da trama golpista de Bolsonaro em 2021 e 2022 se configurasse como exatamente isso: uma trama golpista.
Não é apenas esse o contexto do inquérito. Ele engloba a chance de que Bolsonaro esteja preparando uma forma de fugir do Brasil para não encarar a condenação que mais que provavelmente vai vir.
Para quem olha para o conjunto das cautelares e as considera exageradas, vale lembrar que, quando Bolsonaro foi ensaiar uma fuga na embaixada da Hungria, em pleno Carnaval, foi aberto um inquérito e a pedido da Procuradoria-Geral da República o ministro Alexandre de Moraes optou por arquivar a investigação por falta de provas de que o objetivo fosse esse.
Isso quer dizer que Alexandre de Moraes não erre nunca? Que não haja espaço para divergências, questionamentos e críticas? Não mesmo. E é preciso fazer tudo isso, sim. Mas, cá entre nós, a gente só pode seguir fazendo tudo isso porque ainda estamos numa democracia, por claudicante que ela seja. E, obviamente, não graças à família Bolsonaro.
Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Há quem diga que eu passo pano pro governo e o Pedro Doria, meu querido chefe, seja de direita. Tem dia que nossa newsletter diária recebe emails nos chamando de fascistas e, na outra ponta, de comunistas. Buscar construir um jornalismo que não se rende aos polos, em 2025, é uma tarefa super difícil, mas fundamental e a gente se propõe a fazer isso por aqui. Ser capaz de enxergar as virtudes nos diferentes espectros ideológicos e ter a coragem de fazer as críticas a eles também é o que chamamos de análise. A gente só não compactua mesmo com quem tenta minar nossa democracia. Porque acreditamos que democracia não se negocia. Se você concorda, seu lugar é o Meio. Seja um assinante premium e ajude a financiar nosso jornalismo.
Depois de mandar botar a tornozeleira em Bolsonaro e restringir em absoluto seu acesso a redes sociais, Moraes meteu os pés pelas mãos na segunda-feira com uma decisão confusa, que proíbe “terceiros” de veicular eventuais entrevistas do ex-presidente.
Embora a justificativa da decisão seja a de que, ao dar entrevistas, Bolsonaro estaria encontrando uma forma de burlar suas cautelares referentes a redes sociais — e ela faça algum sentido —, ao expandir o alcance das restrições a terceiros Moraes pode ter atingindo em cheio a liberdade de imprensa, o que é claramente inaceitável.
Vamos pensar concretamente, pra ficar ainda mais cristalino: se Bolsonaro decide desobedecer sua cautelar, pegar um microfone no meio do Congresso e ameaçar, sei lá, matar Moraes, ele tem que ser preso. Mas os veículos de imprensa teriam mais que obrigação de noticiar a ameaça, que é obviamente de interesse público.
E onde essa publicação aconteceria, além dos sites dos próprios veículos? Nas redes sociais. Pronto, um exemplo extremo pra uma decisão mal escrita e mal fundamentada, passível de muitas críticas e contestação.
Moraes ainda deu 24h para que a defesa de Bolsonaro explique sua visita ao Congresso e as postagens em redes sociais que decorreram dela. Se a explicação não convencer, o ex-presidente pode ser preso.
Em geral, Moraes age com respaldo da Corte. A Primeira Turma do Supremo acompanhou quase integralmente a decisão de Moraes. A exceção foi o ministro Luiz Fux, que vem abrindo divergências frequentes do colega. Ele considerou excessivas as medidas por restringir demais a liberdade de ir e vir e de expressão de Bolsonaro.
Pois bem. Eu sou uma jornalista, vivo num país livre, posso vir aqui e dizer isso sem medo de ser presa ou processada.
Alexandre de Moraes é um ministro que, pelos moldes da nossa Justiça e do nosso sistema, concentra muito poder e, especialmente no quesito liberdade de expressão, tem decisões que podem, sim, ser questionadas.
Em outras dimensões, os juristas se dividem. Há quem enxergue excessos de Moraes, mas argumente que ele age dentro do que permitem as leis e o regimento do Supremo. Há quem enxergue excessos e diga que ele ultrapassa esses limites, o que deve gerar contestações legais futuras. E há quem enxergue tudo nos conformes, sem excessos.
Mas há ainda um grupo, o da família Bolsonaro e seus apoiadores, que quer sua cabeça numa bandeja. Não pede apenas por seu impeachment, o que deve vir a ser uma plataforma política em 2026 de grande repercussão. Querem que o processo democrático seja interrompido em seu benefício. É disso que a gente fala quando diz que querem golpe.
No Brasil, no Estado democrático de Direito, o jeito de contestar decisões judiciais é um só: na própria Justiça. E, ao fim e ao cabo, obedecê-la. Enquanto isso, pode-se criticá-la. Pode-se até buscar formas legítimas politicamente de mudar o sistema. O movimento de tentar eleger senadores e trabalhar pelo impeachment de ministros do Supremo é legítimo politicamente, por mais que se discorde dele. É dentro do jogo.
Já o movimento de trabalhar para que ministros do Supremo e seus familiares sejam alvo de ataques de outros governos, ou dos próprios brasileiros, insuflar a população contra um membro atuante da democracia não é. Isso não é gratuito, gente. A contestação de juízes precisa ser dentro de regras porque eles lidam, afinal, com potenciais criminosos.
Vários ministros do Supremo agiram e agem de forma criticável, pra dizer o mínimo, há muito tempo. Pra pensar nos casos mais recentes, Joaquim Barbosa tinha uma postura agressiva e concentradora. Gilmar Mendes ultrapassa as linhas de contenção do Judiciário e atua como político dia sim, dia também há décadas — e ele, aliás, processa jornalistas críticos.
Isso pra não falar do exemplo óbvio, que é Sergio Moro. Ou melhor, pra falar dele, vamos pensar por um instante: o que fizeram os políticos julgados por ele e que, inclusive, tiveram suas condenações confirmadas pelo STF? De Lula a Eduardo Cunha? Fizeram passeata pra dizer que não o obedeceriam mais e planejaram um golpe de Estado? Não. Fizeram suas críticas, suas militâncias, pagaram suas penas na cadeia, e seguiram o jogo. Levaram o caso para repercutir internacionalmente? Sim, levaram para as cortes internacionais e para a imprensa, conversaram com parlamentares e até presidentes, mas não trabalharam para que ele ou seus familiares perdessem visto, cartões de crédito, etc.
Os problemas do nosso Judiciário não são poucos. Eles existem em absolutamente todas as instâncias, em diferentes escalas. Os pobres e negros das periferias que estão presos sem julgamento que o digam. Os brancos e poderosos que tiveram juízes parciais e suspeitos podem testemunhar também. Agora, uma reforma profunda do nosso Judiciário passa por fortalecermos nossa democracia, não por destruí-la.