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Se Lula se render pra Trump

Conforme o dia D do tarifaço de Donald Trump se aproxima, aumenta o volume do clamor de parte dos analistas e dos políticos para que o presidente Lula ceda, capitule, dê uma ligadinha, aceite fazer negócio — qualquer negócio — pra evitar o pior.
O senador Esperidião Amin, do Progressistas de Santa Catarina, é um dos oito parlamentares brasileiros que foram aos Estados Unidos tentar reduzir a tensão entre os países e abrir canais de negociação pelas beiradas. Ele declarou que “Lula não tem nada a perder, só a ganhar” se telefonar para Trump.

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Joel Pinheiro da Fonseca, economista e colunista da Folha, lembrou do caso do México e escreveu, textualmente, que “abaixar a cabeça, adotar uma postura pragmática e negociar sem arroubos de ufanismo funciona melhor com Trump do que escalar o conflito”. Acrescentou que “é hora de Lula engolir seu orgulho”.

Já Roberto Mangabeira Unger, filósofo e ex-ministro de Lula e Dilma, escreveu, na mesma Folha, que fosse Lula um estadista ele teria evitado “responder aos americanos em linguagem de botequim, esbanjando demagogia e preguiça intelectual, e se mostrado determinado a engajá-los numa discussão séria”.

Bom, cá entre nós, não há qualquer desses argumentos, honestamente, que me convença. E eu quero te convidar a esmiuçar comigo os pontos de discordância e onde dá pra criticar ou elogiar a postura de Lula.

Vamos iniciar pelos políticos, porque é mais fácil compreender a estratégia e o discurso deles. Começando pelo senador — e por outros atores da política de oposição ao governo. Tirando os bolsonaristas raiz, que ainda tentam se equilibrar num discurso de patriotismo mesmo testemunhando Eduardo Bolsonaro confessando dia sim, dia também que está “trabalhando contra” o Brasil, a direita como um todo vai, via de regra, discordar do que Lula decidir fazer, certo?

Defender que o presidente brasileiro busque canais de negociação com o governo americano tem seu lugar de legitimidade, evidentemente. Até mesmo defender uma política externa mais americanófila do que qualquer outra coisa faz sentido ideológico e político para esse espectro. Tudo bem. Daí a supor que o Brasil nada tem a perder são outros 500.

Esperidião Amin disse na GloboNews que “até uma reação hostil ou de indiferença de Trump à iniciativa de Lula será benéfica para ele!“. Pra ele, Lula. Não é difícil de entender a lógica do senador: um ataque frontal de Trump num eventual telefonema é combustível pro discurso do presidente Lula de que Trump é um valentão, violento, o que retroalimenta a militância de esquerda.

E ele não está errado nessa lógica. Só que o ganho de Lula nesse cenário é residual, é de tiro curtíssimo. Seja por interesse eleitoral ou por necessidade de preservar sua biografia, ele não pode fazer concessões maiores, mesmo que elas representem um dano econômico significativo. Imagina Lula encerrando sua carreira política sendo derrotado nas urnas e/ou humilhado por Trump?

Além disso, esse argumento de Amin vai na linha oposta do que sua colega senadora, também de larga oposição, Tereza Cristina, argumenta para defender o telefonema. Ela disse, lá de Washington, o seguinte: “O presidente Lula deveria ligar, sim, para o presidente Trump. Aliás, já passou da hora. O Brasil não pode ser refém do populismo e da vaidade de quem governa”.

Oras, no raciocínio de Esperidião Amin, ao se lançar num telefonema sem acordo prévio e correr o risco — aliás, nem dá pra chamar isso de risco, é uma certeza — de ser humilhado por Trump atenderia somente às vaidades eleitorais de Lula. E atenderia ainda mais às vaidades do próprio Trump, que poderia desfilar com esse troféu de ter subjugado mais um líder de outro país.

Os políticos, e especialmente os senadores da Comissão de Relações Exteriores, sabem como se dão as relações diplomáticas. Eles despencaram até os EUA e estão com medo de publicar os nomes dos parlamentares com quem querem se encontrar com medo de a extrema direita — brasileira e americana, leia-se Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon — melarem o encontro. Imagine um papo entre presidentes.

Os senadores sabem perfeitamente que um telefonema entre líderes de países é algo combinado previamente. Não se faz de improviso. Os diplomatas tratam antes dos temas, acertam os tópicos, o tom. Isso quando se tratam das condições normais de pressão e temperatura.
Com Trump, elas são inexistentes. Ele não acredita em diplomacia, em cortesia, em negociação. Só acredita em subserviência ou altivez. No caso do Brasil, ele não consegue sequer conceber que um líder latino-americano não se curve imediatamente. Não está no seu racional essa possibilidade. Um telefonema de improviso entre Lula e Trump é a receita de um desastre. Defendê-lo é irresponsabilidade e demagogia dos senadores.

Vamos falar dos outros argumentos? Então, fica aqui comigo. Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Você que chegou aqui pela primeira vez e ainda não sabe: o Meio é uma plataforma de jornalismo digital que oferece conteúdo de diversas formas. Gratuitamente, no Youtube e em uma newsletter diária, pra você se manter bem informado a quente e ficar guarnecido de contexto pra tomar decisões e compreender o mundo. Mas também, pra quem é assinante premium, a gente tem duas newsletters semanais e nosso canal de streaming, ali, do ladinho da Netflix, da Disney, com mergulhos em variados assuntos, pra quem quer entender as coisas com ainda mais análise, reportagem, história. O mundo tá confuso, as visões e interpretações dos fatos estão ruidosas, o Meio te ajuda a baixar o volume e prestar atenção no que realmente importa. Assine! São só 15 reais por mês.

Pra usar a expressão do Mangabeira Unger aqui, se a gente estivesse num papo de botequim, daria pra discutir tudo que está acontecendo na relação do Brasil com os Estados Unidos nos termos do ufanismo ou da sabujice. E diante da conotação atual que essa palavra ganhou, até do patriotismo. Mas vamos tentar fazer análise política em vez de adjetivar demais a coisa toda.
Quando o presidente Lula reage à carta de Trump em que anunciou o tarifaço de 50%, ele está se dirigindo a vários públicos diferentes. Ao mirar no público interno, recorre a um tom mais exaltado, fala em trucar Trump, diz que ninguém vai meter a mão no nosso PIX, oferece jabuticaba, etc. É uma escolha que pode ser bastante criticada, porque leva pra uma atmosfera de provocação e deboche uma situação seríssima. Mas também pode ser facilmente explicada: seu governo estava nas cordas e Trump e a família Bolsonaro deram esse presente retórico e político para ele.

Lula fez o unboxing do recebido com gosto pra sua militância e, conforme as pesquisas vêm mostrando, conseguiu, com isso, atingir até públicos antes refratários a sua voz. Do ponto de vista da estratégia de curto prazo, eleitoral, e discursiva da política, faz sentido. É difícil imaginar que qualquer outro líder desperdiçasse essa chance.

Nas entrevistas que deu e no pronunciamento que fez na TV, Lula falou para a institucionalidade. Ali, foi bem mais protocolar, embora também tenha passado recados claros. Falou de soberania porque tem mesmo que falar. É inimaginável um presidente usar seu poder econômico pra mudar o curso de um processo jurídico, seja ele qual for, de outro país, gente. Nação nenhuma no mundo aceitaria isso. Não pode aceitar.

Mas esse recado está inserido numa ambição maior de Lula. Desde seu primeiro mandato, ele nunca escondeu que tinha pretensões globais, de se firmar como um líder respeitado e de tornar o Brasil respeitado.

Goste-se ou não da política externa de Lula, o fato é que ele consegue, com bastante frequência, ser ouvido e ter algum protagonismo no cenário internacional. Menor do que ele acha que tem, é verdade, mas bem maior do que o Brasil teve com outros presidentes. Fernando Henrique Cardoso era também muito querido por lideranças do mundo, mas Lula realmente levou o nome do Brasil além.

Quando ele diz que Trump não foi eleito para ser imperador do mundo para Christiane Amanpour, na CNN, Lula está se apresentando pra jogo, pra ser a voz das lideranças da esquerda que enfrentam o imperialismo americano, com essas lentes.

Mas não é só isso, embora esse seja o drive principal. Tem também o fato de que desde a década de 1960 o Itamaraty se orienta pelo princípio da autonomia. Subserviência aos interesses dos Estados Unidos é vista como fraqueza e tratada como tabu diplomático. Isso independe da ideologia do governo. Claro, não quando se trata de um Ernesto Araújo da vida ou de um Bolsonaro, que bate continência pra bandeira americana.

Agora, vamos falar do ponto de vista pragmático, do que está posto a mesa e da forma como Trump tem lidado com a questão das tarifas e com os países com quem “não está se dando bem”, pra usar seus termos.

Não há qualquer sinal de que capitular represente vitória para o Brasil. Por várias razões. A primeira é a imprevisibilidade de Trump. Ele pode sinalizar que aceita uma coisa e, meses depois, mudar e voltar à carga com mais tarifas. É o modus operandi dos chantagistas.
É também o maior temor da União Europeia, que entregou tudo que podia e o que não podia no acordo que fez. Basta lembrar que Trump começou a conversa com os países europeus em abril falando de 10%. Agora, já fala em algo entre 15% e 20%. E, como não conseguiu tudo que pedia — por exemplo, não conseguiu afrouxar o quanto queria as leis contra as big techs —, é muito, mas muito provável que ele repita a chantagem ali adiante.

A segunda é que as exigências de Trump ao Brasil, diferentemente do que acontece com outros países do mundo, não obedecem sequer à lógica comercial mais básica. Os Estados Unidos têm superávit com o Brasil. As taxas não consertariam um eventual desequilíbrio de grana.
O texto de Mangabeira Unger sugere ainda que o Brasil deveria buscar oferecer contrapartidas de abertura comercial para serviços americanos. Aproveitar a oportunidade para negociar a entrada num setor em que poderíamos crescer a partir da troca com empresas americanas. Acontece que, ainda que essa fosse uma agenda desse governo, Trump não está interessado nisso, não se trata de uma proposta racional, de perdas e ganhos, de equilíbrio. As taxas são uma punição por coisas que o Brasil já disse que não pode, e não deve, negociar: a anistia de Bolsonaro e o tratamento dado às big techs, o que inclui o PIX.

Neste momento, o governo brasileiro apostou no modelo tradicional de diplomacia: o líder político segue fazendo política enquanto os diplomatas tentam negociar. Acontece que Trump não obedece esse rito. Então, o governo do Brasil tenta propor paliativos, como deixar de fora das tarifas as frutas, o café e a Embraer. Tenta salvar empregos e alguma ponta de dignidade. Mas se não vai dar as outras duas coisas pra Trump esse acordo não é sustentável, né? Como é que se começa uma conversa dessa? E que garantia existe de que o acordo é pra valer?

A situação de Lula e do Brasil é excepcional nesse sentido. Esse tipo de exigência não foi feita a nenhum outro país. Não há uma receita clara de como lidar com ela. Trump abandonou qualquer protocolo de multilateralismo e partiu pra relações bilaterais. Ou melhor, unilaterais, com um lado com uma faca e o outro com o pescoço. Ele se aproveita, inclusive, da incapacidade dos países de sentarem e chegarem a um acordo entre si para fazer frente a ele — o caso da União Europeia é o mais emblemático disso. Se tivesse se virado pra China, talvez conseguisse ter menos desvantagem pra negociar. Mas aí entram questões militares e culturais também, que vão além de balança.

O que se sabe até aqui é que, apesar de Trump ter conseguido vitórias importantes sobre o Japão e a União Europeia, que fizeram grandes concessões, a relação com China, Canadá e México tem sido mais dura. Trump não costuma respeitar quem capitula muito rápido. Além disso, há impactos econômicos das tarifas para a própria economia americana que podem nos dar certa margem para resistir e negociar em termos melhores.

O secretário do Comércio já começa a dar sinais de que esse ou aquele item podem ficar de fora do tarifaço. O presidente Lula também já mandou recado de que quer conversar, sem mandar jabuticaba junto. Trump não é alguém que joga o jogo dentro de suas regras mínimas. O que ele escreve não vale por 24 horas. Sugerir que Lula negocie mais abertura ou que abaixe a cabeça com alguém assim é subestimar o estrago disso no médio e no longo prazo.

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