O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, pode — e deve — ser criticado. É um agente público de um dos três poderes da República e, embora não seja submetido ao escrutínio do voto, não está livre do escrutínio da opinião pública, nem de seus pares.
E isso não tem nada a ver com apoiar Jair Bolsonaro ou defender o golpismo. Quem o critica, muitas vezes, tem ressalvas — ou até repulsa — à forma como Moraes tem conduzido seu protagonismo institucional, ao volume de decisões monocráticas, a linguagem que às vezes parece mais política do que jurídica. A crítica é válida, inclusive, do ponto de vista técnico e legal. O Estado de Direito exige controle de poder, inclusive do Judiciário.
Agora, imaginar que as críticas que podem ser feitas a Moraes, e o fato de que elas são convincentes para uma larga parcela da população, seja suficiente para que a Justiça recue e deixe a extrema direita e o bolsonarismo agirem livremente, acho que já é condescendência demais com o que Bolsonaro representa.
Cá entre nós, fingir que as decisões de Moraes acontecem num vácuo político é — pra dizer o mínimo — uma leitura ingênua dos fatos.
Analisar politicamente o papel de Alexandre de Moraes sem considerar o histórico de Jair Bolsonaro como figura pública é se agarrar a uma falsa simetria. Porque Bolsonaro não começou a tensionar as instituições quando virou presidente. Muito antes disso, quando ainda era um deputado folclórico, ele já se dedicava a alimentar o caos, a corroer o debate democrático, a testar os limites da tolerância institucional.
Em 2016, quando votou pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro fez daquele momento uma apoteose de provocação autoritária. Exaltou o golpe de 64, saudou um torturador, falou em comunismo, “inocência das crianças”, Foro de São Paulo. Saiu vaiado, saiu aplaudido. Saiu ileso. Mas saiu, principalmente, com a convicção de que era possível transformar o destempero em capital político.
Isso não é produto de um algoritmo ou de uma fazenda de robôs virtuais. É uma estratégia bem montada de usar a raiva, o ressentimento e a indignação como catalisador, em vez de procurar algum tipo de solução pra isso tudo.
A partir de 2011, Bolsonaro, que era tão somente uma espécie de sindicalista de militares de baixa patente, construiu sua narrativa com base em confronto e ruptura — e isso tem consequências. Cá entre nós, o embate com Alexandre de Moraes não é a origem do problema. É uma das manifestações finais de um processo que Bolsonaro alimentou por mais de uma década.
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Quando analistas tentam avaliar o comportamento de Moraes como se ele estivesse agindo contra um político comum, inserido nas regras do jogo democrático, o que se está fazendo é ignorar a escalada de radicalização que partiu — em larga medida — do próprio Bolsonaro.
E isso não significa passar pano para o Supremo. É possível — e necessário — criticar a centralização de poder em Moraes. O Supremo tem agido muitas vezes distante da colegialidade ideal. Antes mesmo, os problemas do Supremo sempre foram muitos, com ministros que quebram o decoro, com indicações que escapam ao puro mérito, com mudanças de jurisprudência a depender dos ventos políticos.
Mas também é preciso lembrar que Moraes não chegou a esse lugar sozinho. Ele está onde está porque muitos outros atores se omitiram.
A Procuradoria-Geral da República, por anos, praticamente abdicou de sua função. O Congresso tem sido leniente diante do avanço da extrema direita e, muitas vezes, cúmplice no esvaziamento do pacto democrático. O Executivo, na era Bolsonaro, atuou ativamente para minar as instituições. E mesmo agora, quando o Executivo mudou de mãos, há medo, hesitação, cálculo.
Nesse cenário, Moraes acumulou poder e visibilidade por sua própria vaidade e também por inércia dos demais. Como presidente do TSE e ministro do STF, foi chamado — ou empurrado — para agir em momentos-limite.
Essa não é uma leitura só minha. O ministro Edson Fachin, que assume a presidência do Supremo em setembro, fez uma análise disso em palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso na segunda-feira. Em sua fala, Fachin defende uma compreensão mais ampla do funcionamento da democracia.
Ele alerta que o Supremo não deve — e não pode — sustentar sozinho a arquitetura institucional do país. Em suas palavras, é preciso reconhecer que a democracia brasileira só será forte se for sustentada por uma rede de instituições: Legislativo, Judiciário, Ministério Público, imprensa, sociedade civil — e, não menos importante, a classe política como um todo.
E é esse ponto que talvez doa mais reconhecer: o problema não é só o Congresso. É o sistema político quase total e boa parte de seus financiadores, da elite. A classe política, com suas valiosas exceções, tem evitado tomar posição clara diante do avanço da extrema direita. O silêncio, a tolerância ou o cálculo tornaram-se formas eficazes de convivência com discursos que flertam com o golpismo.
Num passado recente, países da Europa entenderam o risco e criaram verdadeiros cordões sanitários para impedir que a extrema direita ganhasse força institucional. Porque sabiam que esse tipo de movimento se alimenta de tensão permanente — e tem como tática justamente esgarçar a relação com o Judiciário. Atacar ministros, desmoralizar cortes, desacreditar eleições. É um roteiro conhecido, eficaz e com alto retorno eleitoral.
Mas, justamente por conta desse retorno eleitoral, que é calcado em retroalimentar o ressentimento e a insatisfação com as poucas entregas da democracia, tanto lá fora como aqui a classe política vem assistindo a esse roteiro se repetir sem reagir com a força necessária. Pior: muitas vezes, endossou ou se beneficiou dele.
É preciso lembrar que defender o Judiciário contra ataques golpistas não é o mesmo que blindar decisões judiciais de crítica ou revisão. O caso do ex-presidente Lula é um exemplo disso. A anulação de sua condenação e a suspeição de Sergio Moro se deram dentro do devido processo legal. O debate foi jurídico, passou pelas instâncias corretas. É verdade que teve como ponto de partida uma revelação jornalística — a Vaza Jato —, mas foi conduzido institucionalmente, dentro do STF.
Isso é diferente de convocar manifestação na porta de quartel, de gravar vídeo pedindo intervenção estrangeira, de espalhar desinformação sobre o sistema eleitoral, de tentar reverter processos judiciais com base em pressão popular ou lobby internacional. Uma coisa é a crítica, outra coisa é a ruptura.
O julgamento político das ações de Moraes, portanto, precisa vir acompanhado de uma memória honesta do que foi — e ainda é — Jair Bolsonaro. Um agente do caos, da radicalização, da corrosão institucional. Desde os tempos de deputado até os atos golpistas de 8 de janeiro, Bolsonaro atuou com método. Não foi um desvio, foi uma trajetória.
E se as instituições brasileiras parecem hoje frágeis ou desequilibradas, é porque foram obrigadas a enfrentar uma tempestade autoritária sem colete. Fingir que tudo isso se resolve com neutralidade burocrática é desconhecer o tamanho da ameaça.
A democracia não é um sistema automático. Ela precisa ser defendida. Mas ela também precisa ser compartilhada.
Se o Supremo está com a armadura gasta, é porque vem apanhando sozinho. Está mais do que na hora dos outros poderes — e da classe política inteira — entrarem em campo.