O que Felca realmente denuncia
Na semana passada, o motim bolsonarista no plenário da Câmara em reação à prisão domiciliar de Jair Bolsonaro interrompeu os trabalhos da Casa em nome de causas que só interessavam àquele grupo político. Pra encerrar a rebelião, o Centrão aderiu a algumas dessas pautas e ampliou o alcance corporativista das demandas, pleiteando o fim do foro privilegiado, tema que deve ter apoio também de deputados da esquerda, e a necessidade de autorização do Legislativo pra qualquer investigação de parlamentares.
Sabe o que deixou de ser votado enquanto os rebeldes gritavam por anistia para golpistas? Um projeto de lei para proteger crianças e adolescentes nas redes sociais — justamente no momento em que o youtuber Felca soltava um vídeo de 50 minutos escancarando a adultização e exploração de menores no ambiente digital.
Felca não poupou nada: exibiu desde a sexualização explícita de meninas e meninos à promoção de coaches financeiros e pastores mirins. Fala das crianças, mas também dos adultos que usam esses menores como ferramenta para vender milagre, produto e fetiche. Muito além de uma denúncia moral, Felca mostrou como esse mercado se retroalimenta: quanto mais ousado o conteúdo, mais engaja; quanto mais engaja, mais dinheiro gera. E isso acontece sob os olhos cúmplices das plataformas, que fingem e escolhem não ver — a menos que sejam obrigadas.
A repercussão do vídeo de Felca gerou reações de parlamentares de todos os espectros políticos, todo mundo defendendo ação imediata. De um lado, a esquerda clamando por regulamentação das redes sociais. Do outro, a extrema direita acusando a esquerda de querer usar o episódio para censurar as redes, tolher a liberdade de expressão e de terem votado contra o projeto que endurece as penas para quem pratica crime hediondo.
Pois eu gostaria de te convidar a testemunhar cenas explícitas de hipocrisia de quem se vende como defensor da família e das crianças no Brasil e te contar a história de como a extrema direita age no Congresso.
O projeto que deixou de ser votado na Câmara na semana passada é de 2022, de autoria do senador Alessandro Vieira, do MDB de Sergipe, e já foi aprovado no Senado. Ele obriga plataformas a remover e reportar conteúdos de exploração sexual infantil, vincular perfis de menores a responsáveis, verificar idade de usuários e reforçar privacidade e supervisão parental. Nada disso é “censura” — é o equivalente digital ao que já fazemos com segurança de brinquedos, alimentos ou carros.
Mas o motim bolsonarista bloqueou o pedido de urgência para que a Câmara votasse a proposta. E quer ver uma ironia tremenda? A mesma turma já fez algo parecido na esteira daquele caso escandaloso da Ilha de Marajó. Foi em outubro de 2022, auge das eleições presidenciais. Vamos relembrar: parlamentares extremistas, mais notadamente a senadora Damares Alves, ainda ministra, exploraram denúncias de abuso sexual infantil na região para promover um projeto que tornava a pedofilia crime hediondo.
Denúncias bombásticas sobre exploração sexual infantil na região — tais como dentes arrancados ou tráfico de órgãos — foram disseminadas amplamente por Damares Alves e bolsonaristas, inclusive com posts impulsionados nas redes sociais. Agências de checagem, o Ministério Público Federal e reportagens de fontes confiáveis mostraram que muitas dessas histórias são exageradas ou simplesmente falsas.
Pois o projeto de lei, que propõe incluir a pedofilia no rol de crimes hediondos com penas mais severas, foi aprovado em comissões em novembro de 2021. Depois disso, estava aguardando análise e votação no plenário. Desde maio de 2022, o projeto vinha aparecendo na pauta da Câmara. Mesmo sendo um projeto de autoria da própria base governista e já aprovado nas comissões, a pauta não avançava.
Foi quando a campanha presidencial do presidente Lula usou um vídeo antigo do ex-presidente Jair Bolsonaro em que ele dizia que “pintou um clima” com adolescentes venezuelanas. Vocês lembram disso? A esquerda correu pra pautar a urgência do projeto de pedofilia como crime hediondo. O que fez a ala bolsonarista? A base governista, que inclui PL, União Brasil, PP e Republicanos, rejeitou o pedido de urgência por 224 votos contra e 135 a favor. Detalhe: na véspera, essa mesma base aprovou a urgência do projeto que criminalizava as pesquisas eleitorais.
E, como se não bastasse, quando a campanha de Lula usou esse trecho do “pintou um clima” num vídeo eleitoral, Bolsonaro recorreu à Justiça para impedir sua veiculação, alegando que era “distorção” e “uso indevido de fala”. O TSE deu razão parcial e barrou o uso.
Cá entre nós, é impressionante como a defesa da “liberdade de expressão” irrestrita muda de lugar nessas horas. A liberdade é defendida quando convém, e descartada quando ameaça o próprio telhado de vidro.
Bom, vamos supor que tudo isso fosse justificável por se tratar de um ano eleitoral, em que o clima estava quente e os interesses voltados pras urnas e campanhas. Pois saiba que o projeto que tornaria a pedofilia crime hediondo, que acabou aprovado na Câmara quase por unanimidade, juntando num momento raro esquerda e direita, ainda não está em vigor. Sabe por que?
O texto voltou para o Senado e está parado na Comissão de Constituição e Justiça, aguardando designação de um relator para só então ser votado em plenário. Quem presidia a CCJ até fevereiro era Davi Alcolumbre, do União Brasil. Hoje, é Otto Alencar, do PSD. Ou seja: sete anos depois de sua apresentação, e mesmo com consenso público e político sobre a gravidade do crime, o Congresso não conseguiu concluir a tramitação. E depois reclama quando o Supremo chama pra si a responsabilidade.
Entre palanques e manchetes, as crianças continuam desprotegidas.
Tem muito ruído político em torno de pautas que realmente comovem e mobilizam a sociedade. E não à toa com frequência a gente se sente sub-representado ou até enganado pela classe política, que vai agindo de forma corporativista até ser posta contra a parede e começar a tratar do que realmente importa. Vamos pensar juntos, além do barulho? Então, fica aqui comigo.
Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Uma vez eu ouvi de um grande cientista político que a política, idealmente, quando está funcional, é monótona, não move tantas paixões, trata de temas complexos e, por isso mesmo, não engaja tanto nas redes. Ser moderado em 2025 na cobertura política é um imenso desafio. Mas o Meio não tem medo dele. A gente tenta tratar de política assim, sem buscar cliques insanamente, procurando algum caminho de consenso, de diálogo. É por isso que o extremismo não tem vez com a gente. E que a democracia é o nosso norte. Se você gosta dessa abordagem, eu te convido pra assistir ao documentário Democracia, Uma História sem Fim, que está no nosso streaming, para assinantes premium. É um material que a gente fez com muito cuidado, procurando mostrar como a democracia é o ambiente em que grandes avanços, sociais e econômicos, podem acontecer. Assine o Meio! São só 15 reais por mês.
O Supremo Tribunal Federal decidiu em junho que plataformas não podem se esconder atrás do “só cumpro ordem judicial”: para crimes como pornografia infantil, discurso de ódio e terrorismo, basta notificação para que tenham que agir. Os ministros favoráveis, como Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, argumentaram que isso é dever de cuidado mínimo; os contrários, como André Mendonça e Nunes Marques, dizem que definir isso é papel do Congresso e alertam para riscos à liberdade de expressão.
O debate sobre os limites da regulação das redes é mais que legítimo, é necessário. Agora, o fato de que o Congresso simplesmente não se move, se omite, não deve ser desculpa pra nada ser feito, né?
Só pra dar um exemplo da inoperância dos parlamentares: em junho de 2024, há mais de um ano, o então presidente da Câmara, Arthur Lira, determinou que se formasse um grupo de trabalho para elaborar um novo projeto de regulamentação das redes sociais no Brasil, alternativo ao que era relatado até então pelo deputado Orlando Silva, que foi arquivado. E até hoje… nenhuma reunião foi marcada. Os trabalhos, que deveriam durar 90 dias, nem começaram.
Por outro lado, na briga por quem tem a prerrogativa de decidir o que pode ou não ser definido como regulação ou como censura, em maio, a Câmara finalmente se moveu. E, novamente, tão somente em benefício próprio. Foi aprovado pela Comissão de Comunicação um projeto apresentado pelo líder do PL, deputado Sóstenes Cavalcante, um projeto de lei que blinda os perfis de parlamentares nas redes sociais a partir de decisões judiciais. O texto estabelece que suspensões ou remoções desses perfis só poderão ocorrer após uma “avaliação política” e autorização do Congresso Nacional. O projeto ainda precisa passar pela CCJ da Câmara.
É por isso que eu insisto: o vídeo do Felca expõe bem mais do que a sujeirada da exploração infantil nas redes sociais. Revela a total desfaçatez com que o tema é tratado por quem jura trabalhar praticamente só em nome disso.
Discutir a responsabilidade das redes sociais nesse esquema de espalhamento de material pedófilo é urgente. Isso passa por um ponto importante: o que é responsabilidade individual e o que é coletiva nessa história? Parte estridente da direita advoga que a punição tem de ser aos indivíduos que eventualmente explorem esses menores. Para além dos criminosos, incluindo aqueles pais e responsáveis que exploram os próprios filhos, também é imprescindível que os adultos se eduquem e monitorem o que os filhos assistem, imponham limites, conversem sobre riscos.
Mas achar que isso basta é viver num mundo da fantasia. Algoritmos são projetados para driblar qualquer supervisão: eles vão empurrando conteúdo cada vez mais extremo, segmentando públicos vulneráveis e explorando ao máximo a atenção de quem está do outro lado. Não existe pai ou mãe que, sozinho, consiga barrar isso. Por isso, é função das plataformas e do Estado criar barreiras, filtrar conteúdos criminosos e impedir que crianças virem moeda de troca no mercado da atenção.
Pode haver um sentimento de “antigamente não era assim” em nós que estamos cada dia mais assustados com a proporção que isso toma. Não é bem assim. Cada geração teve seu pacote de adultização. Na minha, tinha criança descendo na boca da garrafa em rede nacional. Tinha apresentadora de programa infantil seminua, sensualizando para a câmera. Tudo na TV aberta, de tarde, para a família inteira ver.
A diferença é que, naquela época, o alcance era limitado pelo que passava no ar. E era em uma via só, né? Hoje, o algoritmo joga esse conteúdo direto no colo de qualquer pessoa, a qualquer hora, multiplica o impacto de forma exponencial e possibilita até o contato dos pedófilos com as crianças expostas. É por isso que a regulamentação das redes é urgente — assim como deveria ter havido, lá atrás, um controle sério sobre a sexualização infantil na televisão.
Não é recorrendo a pânico moral que a gente vai resolver isso. Aliás, achei o vídeo do Felca até bem cuidadoso nesse sentido.
Vamos lá: pedofilia é um dos crimes mais repulsivos e aterradores que existem. Justamente por ser tão grave, o combate a ele deve ser assunto de absoluta seriedade e sobriedade. Mas a extrema-direita transformou o tema em ferramenta: exagera, distorce, inventa e espalha boatos para mobilizar emoção e justificar pautas que nada têm a ver com proteger crianças. É o que fazem no combate ao aborto legal — que já é previsto em lei para casos de estupro e risco à vida da mãe — ou na guerra contra a chamada “ideologia de gênero”, expressão que usam para atacar políticas de educação sexual e inclusão. Sempre com o mesmo roteiro: inflar o medo e apresentar “soluções” que, no fim, servem a outras agendas.
O curioso é que, quando o assunto é regulação das redes sociais, um mecanismo que efetivamente poderia reduzir a circulação de conteúdos de exploração infantil, essa mesma turma vira guardiã da “liberdade de expressão” entre aspas. Ou seja: usam o terror da pedofilia para avançar agendas de punitivismo, mas rejeitam medidas concretas que dificultariam o acesso de pedófilos a crianças e adolescentes.
No fim das contas, ou a gente encara essa questão de frente — combinando responsabilidade individual, ação coletiva e regulação — ou vamos continuar vendo a extrema-direita usar a exploração infantil como palanque político, enquanto boicota medidas concretas para proteger essas mesmas crianças. E isso também é uma violência.
Correção no vídeo: Alessandro Vieira é senador pelo MDB-SE