Chega de mimimi, Bolsonaro!
No dia 4 de março de 2021, uma quinta-feira, 261.188 brasileiros já tinham morrido por covid-19. Isso daqueles que o Ministério da Saúde registrou. Em 24 horas, foram 1.786 vítimas. Falar assim, em números, deixa a coisa meio perdida, né?
Então, vou te contar três histórias, as três de Goiás. A primeira é do Amin. Ele tinha 73 anos. Era presidente da Associação dos Caminhoneiros do estado, participou daquela greve que parou o Brasil em 2018. Ficou seis dias na UTI. Tinha dez netos.
A segunda é do Elis, de 38 anos. Professor de filosofia, ele tinha gravado um vídeo dias antes para confortar alunos que estavam preocupados com o avanço da covid em Goiânia. Cantou a música “Aleluia”, enquanto uma amiga toca piano, cada um em sua casa.
Por fim, te conto da Lara, que morreu aos 33 anos, seis dias depois de dar à luz uma menininha num parto de emergência, em Catalão.
Naquela manhã, ao lado do então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, o então presidente Jair Bolsonaro estava em Goiás. Os dois estavam sem máscara numa aglomeração de políticos. Ronaldo Caiado, que já era o governador e, médico e contrariando Bolsonaro, adotou as medidas de isolamento social, mandou seu vice para o evento, porque estava com infecção urinária.
Esse foi o infame dia em que Bolsonaro falou o seguinte: “Temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?“.
Recorrer a esse momento, a essa frase, pra tripudiar do destino de Bolsonaro agora, às vésperas de seu julgamento e de sua mais que provável prisão definitiva por tentar um golpe de Estado, é fórmula fácil. Está até virando clichê.
Mas a forma como Bolsonaro sempre tratou adversários políticos ou mesmo o povo que governava tem uma função importante agora que acompanhamos tudo que ele vem fazendo para fugir das consequências dos próprios atos.
Mais do que oferecer material para que se tire sarro dele e de sua família, o que Bolsonaro fez ao longo da carreira de homem público foi construir um vocabulário que se aplica a sua condição. É um léxico que funciona com um sabor de vingança para quem tem essa sede. Mas com aromas de responsabilização, ainda que tardia ou que não pelos motivos que muitos esperavam.
O “mimimi” e o choro que Bolsonaro ostenta desde que perdeu a eleição, em 2022, se converteram em planejamento e tentativa de golpe, de acabar com a democracia brasileira, que lhe havia bem servido por tantos mandatos de deputado e um de presidente — além de bem servido seus filhos e todos os bolsonaristas que se elegeram em sua onda.
Embora eu sempre diga que espero muito ainda ver Bolsonaro e todos que foram seus cúmplices julgados e condenados pelo que fizeram na pandemia, o julgamento que se aproxima é outro — e igualmente sério e grave. Ainda tem gente que não entende muito bem o que está sendo avaliado, o que Bolsonaro fez assim de tão grave, afinal.
Muito do que ele fez está descrito por ele próprio em discursos ou falas informais, públicas ou depois vazadas, em que ele jamais escondeu o que realmente queria fazer.
Cá entre nós, hoje, quando eu vejo Donald Trump fazendo exatamente o que prometia que faria e a absoluta paralisia das instituições americanas diante da destruição que ele vem promovendo, me sinto reconfortada e, ao mesmo tempo abismada.
O conforto vem do fato de que, aos trancos e barrancos, com muitas atitudes criticáveis de alguns de seus principais atores, a nossa democracia vem resistindo a esse ataque brutal do bolsonarismo. O que me espanta é o quanto de gente que sequer percebe o perigo que correu.
Não sei se vocês sabem mas o Meio vai lançar no dia 2 de setembro um documentário sobre a tentativa de golpe de Bolsonaro. É o mesmo dia em que o julgamento do século começa. Eu apresento, o roteiro é do Sérgio Rodrigues e a direção, do Ricardo Rangel. Quando a gente estava debruçado sobre os documentos que embasam o doc, um dos discursos de Bolsonaro não parava de martelar na minha cabeça. Um discurso específico, que eu quero relembrar com vocês aqui. Fica comigo, tá?
Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Se você ainda não é um assinante premium, saiba que é o dinheiro vindo de cada uma dessas assinaturas que sustenta o nosso jornalismo, a nossa missão. Aqui no Meio, você não vai concordar com tudo sempre. Tem gente que é mais alinhada com as minhas opiniões, outros, com as do Pedro Doria, uma turma que curte mesmo a Mariliz Pereira Jorge, ou o Christian Lynch. Tem fã do Creomar de Souza, da Luiza Silvestrini, do Gabriel Azevedo. Isso sem contar toda a equipe maravilhosa que faz o nosso conteúdo rodar pelo YouTube, nas nossas newsletters, nas redes, no nosso streaming. Você não precisa vir aqui concordar com tudo. Aliás, nem precisa concordar com nada. O que a gente quer é que você tenha acesso a informação, análise e opinião de qualidade e plural pra formar a sua própria visão de mundo. Com a democracia sempre como norte. Assine o Meio. São só 15 reais por mês.
Quando a gente começou a fazer o documentário sobre o golpe, eu ficava lembrando de cada uma das frases que Bolsonaro havia dito ao longo da trajetória pública e me perguntando por que tem gente que simplesmente finge que não ouve. Ou se recusa a ouvir. Vaza áudio com o filho, com pastor, e nada. O ex-presidente fala no cercadinho, e nada.
Ele disse que não era coveiro enquanto brasileiros morriam pelas esquinas do país em seu momento mais sombrio. Ele imitou pessoas sem ar, enquanto faltava oxigênio no Amazonas e familiares choravam desesperados na porta dos hospitais. Riu dos incautos que buscavam tratamentos ineficazes, sendo que ele próprio recomendava muitos deles. Em outra seara e em outras épocas, disse que pintou um clima com meninas de 14 anos. Disse que não estupraria uma mulher porque ela não merecia. Ou que preferia um filho morto a um filho gay. Coisas desse naipe.
Tem muito apoiador que escolhe minimizar, ignorar. Tem outros que realmente acreditam naquilo também. Mas uma parte relevante só deixa os absurdos que saem daquela boca menor em nome do que quer, de seus interesses.
Então, vamos ao episódio que eu escolho destacar aqui com vocês. E aí eu vou dizer por que escolhi justamente esse.
Foi no dia 9 de dezembro de 2022. Fazia 37 dias que ele não se manifestava publicamente. Estava em um silêncio seletivo, só com seu público, com aqueles mais fiéis, que acampavam nas portas de quartéis, fechavam estradas para passagem de ambulâncias, oravam desesperadamente para pneus.
Mas naquela tarde ele foi ao gramado do Palácio do Alvorada. O Brasil havia perdido pra Croácia na Copa do Mundo e aquele pessoal aplaudiu. Bolsonaro estava com o general Braga Netto, que também é réu por tentativa de golpe e também está preso, ao seu lado. Os bolsonaristas no gramado gritavam “Eu autorizo”, em referência a um pedido de intervenção militar.
Bolsonaro disse o seguinte:
“Entre as minhas funções garantidas na Constituição é ser o chefe das Forças Armadas. As Forças Armadas são essenciais em qualquer país do mundo. Eu sempre disse, ao longo desses quatro anos, que as Forças Armadas são o último obstáculo para o socialismo. As Forças Armadas, tenho certeza, estão unidas. As Forças Armadas devem, assim como eu, lealdade ao nosso povo. Respeitam a Constituição e são as grandes responsáveis pela nossa liberdade”.
O último obstáculo. Essenciais. Lealdade. Depois de 37 dias em silêncio, por que Bolsonaro escolheu o dia 9 pra falar exatamente essas palavras com seus apoiadores?
As investigações respondem isso claramente. No dia 6 de dezembro, três dias antes, havia sido apresentada, pela primeira vez, a minuta do golpe, primeiro para Bolsoanro.
A minuta descrevia uma mentira. Uma situação de desordem no Judiciário que justificaria a interrupção da democracia, a convocação de novas eleições e a prisão de Alexandre de Moraes, Lula e Geraldo Alckmin, além de Gilmar Mendes e Rodrigo Pacheco.
No dia 7, Bolsonaro recebeu no Palácio do Alvorada os comandantes do Exército e da Marinha, além do ministro da Defesa, para apresentar a minuta golpista. Diante da resistência do general Freire Gomes e do brigadeiro Batista Júnior, Bolsonaro disse que o documento estava em estudo e reportaria avanços para os comandantes.
No dia 8, o general Mario Fernandes, outro réu, contou ao ajudante de ordens, Mauro Cid, que Bolsonaro teria dado aval para um golpe até o dia 31 de dezembro.
O ex-presidente passou a manhã do dia 9 de dezembro reunido com seus auxiliares golpistas, mudando trechos do decreto e ali eles decidiram acionar outros membros do alto escalão do Exército pra buscar apoio pro golpe. Foi nesse contexto que ele foi ao gramado da Alvorada falar das responsabilidades das Forças Armadas.
Naquela tarde, ele acrescentou o seguinte:
“As decisões, quando são exclusivamente nossas, são menos difíceis e menos dolorosas. Mas quando elas passam por outros setores da sociedade são mais difíceis e devem ser trabalhadas. Se algo der errado é porque eu perdi a minha liderança. Eu me responsabilizo pelos meus erros. Mas peço a vocês: não critiquem sem ter certeza absoluta do que está acontecendo”.
Naquela noite, o general Estevam Theophilo, do Coter, foi ao Alvorada e Mauro Cid reportou a um dos comparsas que ele embarcaria no golpe se Bolsonaro assinasse o decreto de Estado de Sítio. O comparsa, o coronel Correa Netto, perguntou como estava indo a reunião. Cid respondeu que as coisas “estavam sendo construídas” dia a dia. Correa Netto respondeu: “dia a dia vai chegar dia 12″. Era o dia da diplomação de Lula e Alckmin. Foi o dia em que os golpistas tacaram fogo em Brasília em busca de uma decretação de GLO.
Bolsonaro contou, naquele gramado, no dia 9 de dezembro de 2022, exatamente o que estava sendo tramado. Qual era seu objetivo. Como chegaria a ele. Exercitou ali a pressão sobre o comando das Forças Armadas para que eles embarcassem no golpe e rompessem com a Constituição e a democracia. Quando eles não toparam, fugiu. Como de costume. Mas manteve a máquina golpista em pleno funcionamento, que deu sua cartada final no dia 8 de janeiro.
Bolsonaro só mentiu em um pedaço. Ele jurou aos seus seguidores que se responsabilizaria pelos seus erros. Agora, tem a Polícia Federal reforçando a segurança de sua casa por indícios de que ele pode fugir. Tem seu filho nos Estados Unidos conspirando contra 220 milhões de brasileiros pra garantir uma anistia pro seu pai, que é incapaz de arcar com as consequências do que faz. Que, em seu linguajar chulo e preconceituoso, é um “maricas”, um ingrato do “carvalho”. É um covarde, um pusilânime mesmo.
O julgamento do século vai pontuar muitas dessas provas que revelam a responsabilidade dos golpistas. Eu te convido a acompanhar com o Meio, em todas as nossas plataformas e no documentário que a gente produziu.
E a Jair Bolsonaro e seus cúmplices, eu só tenho uma coisa a dizer: Vocês têm de enfrentar seus problemas. Chega de mimimi. Vão ficar chorando até quando?