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O primeiro dia do golpe e o primeiro do julgamento

O ministro Alexandre de Moraes inaugurou hoje o julgamento da tentativa de golpe. Como relator do caso no Supremo Tribunal Federal, cabia a ele apresentar seu relatório para iniciar os trabalhos, logo depois que o presidente da Primeira Turma, Cristiano Zanin, fez a abertura protocolar da sessão.

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Depois de ler seu relatório quase burocraticamente, com detalhes dos procedimentos ao longo da tramitação do processo na Corte, Alexandre abriu um sorriso de orelha a orelha que, por elas serem emolduradas por sua lustrosa calva, destoou ainda mais da seriedade com que ele vinha falando até então.

Num tom muito mais grave, antes do relatório, Alexandre leu uma espécie de pronunciamento sobre o rito que ali se iniciava. Nele, o ministro mencionou as palavras covardia e covarde três vezes. A palavra coragem, duas vezes. A palavra democracia e seus derivados dez vezes. Independência e derivações apareceram nove vezes. Os recados de Xandão eram para seus colegas ministros, tanto os de turma quanto os demais, e para os Estados Unidos e aqueles que tentam interferir na autonomia do Judiciário e na soberania nacional.

Foram esses os dois recados que ele escolheu dar de saída, porque o que tem a dizer sobre as acusações em si não viria nesse primeiro dia, mas virá em seu voto, o primeiro a ser lido quando for hora de os ministros se manifestarem.

E também porque o recado mais duro sobre os crimes contra a democracia brasileira vieram com clareza absoluta na fala de Paulo Gonet, o procurador-geral da República. Ele é o responsável pela acusação.

Gonet, que chegou a ser cogitado por Bolsonaro para a PGR e, quando escolhido por Lula, recebeu críticas da esquerda por ser, notadamente, um homem conservador, abriu sua sustentação oral dizendo: “A democracia assume a sua defesa ativa contra a tentativa de golpe apoiada em violência ameaçada e praticada”.

E, cá entre nós, a sobriedade com que ele descreveu o que a Polícia Federal apurou sobre o planejamento golpista harmonizou lindamente com a seriedade do que estava narrando. Mesmo nos momentos com tons de trapalhada, em que Gonet lembrou como os réus registraram cada passo do plano de golpe.

O documentário que o Meio estreia hoje remonta esses fatos que Gonet usou para formular sua acusação. Explica como eles, somados, contam a história da tentativa de golpe e como provam que, mais do que algum “pensamento digitalizado” ou um devaneio no silêncio da noite, imaginando uma ditadura, o que aconteceu foi uma orquestração bastante concreta, com ações no mundo real, além dos delírios autocráticos, para destruir a democracia brasileira e tomar o poder à força, militares na linha de frente.

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Mas uma coisa super bacana de participar da produção desse documentário foi revisitar coisas que acompanhamos no noticiário, mas também descobrir coisas novas ou observá-las sob novos ângulos, a partir das entrevistas que fizemos. Na Edição de Sábado passada, eu contei três dessas descobertas. E aqui eu vou repetir uma delas, porque o Gonet fez questão de falar dela em sua sustentação oral hoje. Então, fica aqui comigo. Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio.

Entre as muitas provas e fatos que Gonet elegeu para destacar no primeiro dia do julgamento estava o dia 7 de setembro de 2021. A data acabou entrando para a crônica política brasileira como o dia em que o então presidente Jair Bolsonaro, diante de uma multidão verde-amarela na Avenida Paulista, desafiou Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. “Qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, esse presidente não mais cumprirá“, bafejou Bolsonaro. “Dizer aos canalhas: nunca serei preso.”

Bom, Bolsonaro está preso desde o dia 4 de agosto de 2025. Sua prisão domiciliar foi decretada por Alexandre no âmbito de uma das muitas investigações que correm contra o ex-presidente, especificamente a que apura a atuação dele e de seu filho Eduardo para constranger a Justiça e interromper o julgamento da tentativa de golpe de Estado.

Foram quase 1.500 dias entre a bravata e a prisão. E ela sequer inaugura o que pode vir a ser a punição de Bolsonaro por coordenar, segundo a investigação da Polícia Federal e a denúncia da Procuradoria-Geral da República, uma organização criminosa que agiu para destruir a democracia brasileira. Se condenado nesse processo, a pena do ex-presidente pode chegar a 40 anos de cadeia.

A agressividade do discurso de Bolsonaro na Paulista foi tamanha que o horizonte de um impeachment pareceu real pela primeira vez, mesmo depois de todos os desmandos de sua gestão na pandemia.

Foi tamanha que parecia começar ali aquela sensação permanente de assombro diante dos arroubos golpistas do ex-presidente e de sua turma do barulho. Se ele era capaz de falar aquilo publicamente, daquela maneira, o que estaria dizendo e tramando nas sombras? Como o Brasil resistiria àquele ataque virulento e explícito?

Pois alguns envolvidos nos mais variados graus de poder da República asseveram que quem acredita que o 8 de janeiro de 2023 foi o dia em que nossa democracia correu mais risco não imagina a gravidade do que aconteceu no dia 7 de setembro de 2021. E mais: que a verdadeira ameaça não esteve só no dia 7 e nem só na Paulista, mas começou na véspera e se estendeu para a manifestação daquela manhã em Brasília, em que Bolsonaro também discursou — mas cujas palavras acabaram abafadas pelas daquela tarde, em São Paulo.

“Foi o dia mais perigoso para nossa democracia”, eu ouvi de três fontes diferentes. Àquela altura, a retórica bolsonarista contra o sistema eleitoral brasileiro já estava em altos decibéis. O Supremo também já havia instaurado o inquérito das fake news, aquele grande guarda-chuva jurídico que acabou concentrando, para crítica de muitos juristas, todo tipo de investigação sobre a extrema direita.

Na noite do dia 6, caminhoneiros e apoiadores de Bolsonaro derrubaram bloqueios feitos pela Polícia Militar do Distrito Federal na Esplanada dos Ministérios. Em vídeos nas redes sociais, eles prometiam invadir o STF no dia seguinte.

Sete tentativas. Houve sete tentativas de invasão ao prédio do Supremo no fatídico dia. Diante do risco, foi elaborado um plano de proteção para Luiz Fux, então presidente da Corte, e para os demais magistrados que envolvia embarcações e helicópteros para retirá-los do STF e de suas casas. Snipers foram posicionados nos telhados próximos.

Ainda na noite do dia 6, Fux cogitou o uso do Exército para proteger o prédio do STF. A tão temida invocação da Garantia da Lei e da Ordem, a GLO, do dia 8 de janeiro quase aconteceu ali. Fux declarou em entrevista o seguinte: “A minha responsabilidade foi muito grande. Já haviam me avisado que as Forças Armadas estariam de plantão para o caso de haver um conflito social”.

O ministro, provavelmente o único a abrir divergências na Primeira Turma nesse julgamento, mantinha reuniões periódicas, fora da agenda, com Bolsonaro. Alegava a interlocutores que trabalhava para distensionar as relações do Executivo com o Judiciário. Aparentemente, sem sucesso. Naqueles gramados secos de Brasília, Bolsonaro discursou para estimados 400 mil apoiadores no dia 7. Tinha o general Braga Netto vestido com uma camiseta de caveira ao seu lado.

Depois de falar de “uma pessoa específica da região dos três poderes (sic)” que seguia “barbarizando a nossa população”, Bolsonaro mandou uma direta:“Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse poder pode sofrer aquilo que nós não queremos”. Horas depois, soletrou o nome de Alexandre de Moraes e dos demais “canalhas” que pretendia atravessar no outro Poder.

A partir daquele ataque, o protocolo de segurança do STF mudou. Sempre que há manifestações agendadas, os documentos sensíveis da Corte são levados para outra locação. E para que a magnitude do 8 de janeiro não se perca no que foi essa prévia, todo material de defesa comprado pela Corte em dois anos, como munição e bombas, foi gasto naquelas horas em que a invasão dos golpistas de fato se deu.

Quem se recorda de, como eu, ouvir estupefato o que Bolsonaro berrava no microfone, seja em Brasília ou em São Paulo, talvez entenda, agora, o que estava em jogo. E o quão cedo o ataque concreto à democracia começou.

Se você quer entender melhor o que foi a tentativa de golpe o que está em jogo no STF, não deixe de assistir a “O julgamento do século”.

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