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A sacada do voto de Alexandre

Alexandre de Moraes, o relator do julgamento da tentativa de golpe de Estado, deu seu voto nesse dia 9 de setembro de 2025. Escolheu dois caminhos fundamentais: o das minúcias e o da didática.

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Não se furtou a detalhar, tim tim por tim tim, os episódios eleitos pela Procuradoria-Geral da República para construir a história do golpe. E é importante reforçar: Paulo Gonet, na denúncia que apresentou, tem justamente a função de concatenar fatos que, em sua soma, contem uma história de como os acusados executaram um crime. Isso não tem nada a ver com “narrativa”, essa palavrinha surrada na política nacional.

Tem a ver, sem entrar num juridiquês muito intenso, com uma coisinha chamada “iter criminis”, ou “o caminho do crime”. Os fatos isoladamente nem sempre revelam a totalidade de uma ação criminosa. Nem sempre uma organização que pretende infringir a lei tem o plano completo, passo a passo, de largada. As coisas vão acontecendo, os planos vão se alterando, a história do crime vai se formando.

Pois Alexandre tomou seu papel de relator a sério e se propôs a relatar o que a organização criminosa fez. Mas além de relator ele é também juiz. Então, para construir esse relato, ouviu as versões da acusação e das defesas e passou, então, a contar a história que entende ser a com mais elementos de prova que a sustentem.

Antes disso, ainda cumpriu o papel de tratar das preliminares, ou seja, das contestações apresentadas pelos advogados. Algumas já haviam sido debatidas quando a Primeira Turma aceitou a denúncia da PGR. Outras eram novas, foram levantadas ao longo das sustentações das defesas.

Uma delas foi a de que Alexandre teria se excedido nas perguntas, agindo assim mais como acusador do que como juiz. Foi interessante ver a postura do ministro nessa sessão. Ele estava visivelmente calmo, mas enérgico.

Todo mundo de fora de São Paulo gosta de tirar sarro do nosso sotaque recorrendo, principalmente, àquele da Mooca, do meu, o carro tá no estacionameinto, e tal. Mas o sotaque do Alexandre, que tem os Ts e os Ds límpidos, sem chiado, como em “estado de síTIO” ou “golpe de Estado”, conferem a suas falas muita resolução.

Então, ele argumentou com seu paulistanês cristalino que os interrogatórios dos réus são o espaço para os juízes atuarem inclusive na produção de provas que podem beneficiar os acusados. Afinal, os juízes não seriam “samambaias jurídicas”, que ficariam ali enfeitando o processo. E ele falou isso sem rir.

Foi nesse momento das preliminares que se deu o primeiro momento de tensão com Luiz Fux, o ministro que já indicou que pretende divergir do relator. Fux fez questão de, aos 7 minutos de sessão, já marcar uma posição. Pediu uma questão de ordem e ganhou um olhar 43 de Xandão. (Sim, referência de velho). Fux queria apontar que, quando for sua vez de falar, vai discordar da decisão de Alexandre sobre as contestações.

Alexandre rebateu, ressaltando que com aquelas que ele havia apontado até ali Fux já havia concordado, porque elas haviam sido afastadas por unanimidade na turma.

Mais adiante, Fux voltaria a intervir. O ministro Flávio Dino havia pedido um aparte, não para discordar de Alexandre, mas para complementar uma informação sobre as ações da Polícia Rodoviária Federal para impedir a votação de lulistas no segundo turno. Fux reclamou que o combinado era que ninguém interrompesse os votos — tendo ele próprio já interrompido — e que na sua vez não cederia aparte a ninguém.

Alexandre reagiu. “Fui eu que cedi o aparte, não vossa excelência”, ele disse a Fux. Dino acrescentou: “No seu voto, eu não vou pedir aparte, pode dormir tranquilo”.

Cá entre nós, Fux tomou um cuecão com as devidas vênias dos coleguinhas. Podia ter ficado sem essa.

Mas o foco aqui é o voto do Alexandre. E como o voto dele teve umas cinco horas, eu não vou analisar cada episódio que ele esmiuçou. Mas teve um ponto que me chamou muita atenção e que eu queria destacar aqui com vocês. Fica aqui comigo!

Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Pra quem tá me conhecendo hoje, sou jornalista há 22 anos, já passei por veículos da grande imprensa, como Estadão, Revista Época e CNN Brasil, cobri política em Brasília, e estou há mais de 3 anos no Meio, onde sou muito, muito feliz fazendo jornalismo independente com uma equipe maravilhosa e com o Pedro Doria como chefe. A gente tem vários produtos, distribuídos em muitas plataformas pra te acompanhar na sua vida digital. Um deles é o nosso streaming, com conteúdo original nosso, como a série “Democracia – Uma História sem Fim”. Uma semana atrás estreamos o segundo episódio dela, que se chama “O Julgamento do Século”. Nele, a gente te mostra, a partir de entrevistas e de muita pesquisa, o quanto é importante pra nossa história colocar no banco dos réus quem tenta acabar com a democracia brasileira. Especialmente os militares. O Meio te oferece lentes para enxergar os fatos com nitidez. Seja um assinante premium do Meio e apoie nosso jornalismo. São só 15 reais por mês.

Quando Alexandre começou seu voto, ele já indicou que examinaria os fatos de forma cronológica, como fez a denúncia, até porque fica mesmo mais fácil de acompanhar.

E, embora ele tenha feito um preâmbulo sobre o uso da Abin para vigiar desafetos de Jair Bolsonaro pela Abin, o primeiro grande episódio a ser descrito por Alexandre foi a live de 29 de julho de 2021.

Estrategicamente, Alexandre faz uma conexão clara dessa live com o 8 de Janeiro de 2023, episódio final da empreitada golpista. E essa foi uma estratégia muito inteligente.

Pra quem não se lembra, a live do dia 29 de julho de 2021 havia sido anunciada por Bolsonaro como a que ele revelaria a “bomba” da suposta fraude eleitoral que ele jurava existir. Logo no começo, ele admite que não tem prova alguma. Mas segue tentando justificar sua campanha de descrédito das urnas eletrônicas e do TSE, chegando a trazer um tal analista lá que também não tinha nada a acrescentar.

Mas, além de apontar esses ataques infundados, Alexandre apontou para algo de mais contexto e que não deve ser desprezado.

Bolsonaro fez a live com Anderson Torres, então ministro da Justiça, e Augusto Heleno, general de quatro estrelas e ministro do Gabinete de Segurança Institucional, ao seu lado. A defesa de Heleno chegou a argumentar que o general mal participou ali, ficou mexendo no celular.

Aliás, abre parênteses, a defesa toda do Heleno foi no sentido de provar que ou ele era inepto, ou sem influência alguma, ou sem competência. Não sei se cola, não.

Mas Alexandre, então, pergunta em seu voto, não exatamente com essas palavras: “uai, que que o general tava fazendo lá, então?”. Boa pergunta, que ele mesmo responde, também em outros termos: “Estava ali pra dar legitimidade e prestígio diante das Forças Armadas”.

Alexandre lembra que Heleno era general de grande estima das forças. E que na live, além das mentiras disseminadas por Bolsonaro sobre as urnas em si, ele falou de guerra, e basicamente a declarou, ao dizer que “onde as Forças Armadas não acolheram o chamamento do povo, o povo perdeu sua liberdade”.

Ou seja, pra Alexandre de Moraes, estava claro ali naquela live que o objetivo final já era ter o apoio das Forças Armadas na intentona golpista qualquer que fosse a forma que ela tomasse. O apoio civil também já estava garantido, com o ministro da Justiça responsável pelas polícias também ali do lado.

E aí veio a grande sacada de Alexandre. Ele relacionou o discurso da live de Bolsonaro com o que ouviu dos manifestantes golpistas do 8 de janeiro que toparam fazer acordos de não persecução penal, isto é, que toparam pagar penas de serviços comunitários e coisas assim e, no processo, contaram o que viram e sabiam.

E o que Xandão diz é que ouviu dessas pessoas os mesmos argumentos que estiveram na boca de Bolsonaro no dia 29 de julho de 2021 – e depois repetidamente nos discursos e entrevistas do ex-presidente, de seus aliados e dos robôs que espalhavam desinformação nas redes. Que aquelas acusações sem provas contra as urnas e contra os ministros do Judiciário estavam totalmente introjetadas por aqueles que, ao fim e ao cabo, foram destruir os prédios das praças dos três poderes clamando por intervenção militar.

Isso tem tudo a ver com uma coisa que ouvi hoje do cientista político Leonardo Avritzer, que esteve no Central Meio, na nossa live logo depois do voto do Alexandre. Avritzer lembrou o que diz Steve Bannon, o ideólogo da extrema direita americana, sobre o poder do populismo de Donald Trump e da base popular que ele construiu.

Essa é uma configuração fundamental da organização criminosa golpista: o apoio de sua base. Sem esse apoio, que é construído num movimento non-stop nas redes e no fato de que governantes de extrema direita estão em estado permanente de palanque, seus arroubos golpistas certamente seriam barrados com mais facilidade pelos outros poderes e pelas instituições.

Alexandre escolheu não falar muito do 8 de janeiro em seu voto. A configuração dos crimes de que os réus são acusados prescinde do 8 de janeiro, o golpe se tentou bem antes e por muito tempo. Também escolheu não falar da emboscada dos kids pretos no dia 15 de dezembro com pormenores. Mesmo sendo o plano Punhal Verde Amarelo e a operação Copa 22 de uma gravidade sem tamanho, novamente, a trama golpista independe desses dois momentos pra estar configurada. O relator fez bem em deixar esses dois momentos de fora de sua pormenorização. Mas fez melhor ainda em mostrar como a tentativa de golpe teve começo, meio e fim — e seu líder era Jair Messias Bolsonaro.

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