O Meio utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência. Ao navegar você concorda com tais termos. Saiba mais.
Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

Tyler Robinson é de esquerda ou de direita?

Vamos começar com o óbvio. O assassinato de Charlie Kirk é uma tragédia, é injustificável, e ninguém, absolutamente ninguém, de qualquer espectro político, por mais controverso ou radical que seja seu discurso, merece morrer pelo que pensa e prega.

PUBLICIDADE

Agora, vamos tentar falar do que se sabe, do que não se sabe e do que dá pra tentar depreender desse episódio pra que a gente seja melhor, né? Porque a gente pode ser melhor.

Charlie Kirk não era apenas um ativista conservador: era um polemista de profissão, um criador de cortes antes mesmo de existirem TikTok e Reels. O método era sempre o mesmo: lançar uma frase absurda, agressiva, suficientemente escandalosa para viralizar, mas depois completar com uma explicação que relativizava o que ele mesmo acabara de afirmar. Como um defensor radical da liberdade de expressão absoluta, como Elon Musk, ele fazia isso promovendo debates em universidades e em programas online, tendo como público principalmente os jovens.

Assim, em cada vídeo seu, havia material para dois públicos: quem quisesse denunciá-lo como extremista encontrava material; quem quisesse defendê-lo apenas como um conservador também. O jogo era consciente, calculado e lucrativo. Kirk criava polêmicas em looping infinito — e esse looping era a sua forma de poder e influência.

Exemplos não faltam. Num episódio do seu podcast, Kirk disse que os EUA “talvez precisem de uma guerra civil para recuperar os valores” — mas depois dizia que aquilo era uma metáfora sobre divisão cultural. Em outro momento, declarou que “mulheres deveriam ficar em casa cuidando dos filhos”, mas logo acrescentou que não era contra o trabalho feminino, desde que não prejudicasse a família.

E houve momentos ainda mais extremos. Kirk chegou a afirmar, em debates sobre armas, que “algumas mortes são aceitáveis em nome de proteger os outros direitos assegurados pela Segunda Emenda” e defendeu que a maneira de reduzir tiroteios em escolas era colocar guardas armados nelas. Instantes antes, seu raciocínio era bem mais suave, era sobre os riscos e o preço inerentes à liberdade.

Em outro episódio, defendeu a ideia de “execuções públicas, na frente de crianças”, para mostrar desde cedo a consequência de certos crimes. Pouco depois, diluiu a violência dessa imagem dizendo que se tratava apenas de um argumento pedagógico. Pra falar de raça e de mulheres, sempre pegava bastante pesado e, em seguida, trazia sua concepção ultra-conservadora do mundo. O truque era sempre o mesmo: o choque primeiro, a ressalva depois.

E, claro, tudo dentro da normalidade dos Estados Unidos, onde as leis e a percepção sobre liberdade de expressão são bem mais absolutas que aqui. Lá, basicamente, as pessoas podem falar de tudo, com muito menos restrições ou consequências judiciais.

Mas esse estilo de Kirk não era só uma tática pessoal, de sua crença reacionária: era um reflexo da política digital em que vivemos. Uma política construída a partir de cortes de 30 segundos, memes contraditórios, provocações irônicas.

Não é que Kirk não acreditasse nas ideias radicais e extremistas que pregava. Ele apenas embalava pensamentos bem mais sofisticados de forma a viralizar e impactar grupos variados de pessoas, em diferentes escalas.

O assassinato de Kirk expõe como esse mesmo ecossistema pode moldar tanto os líderes quanto aqueles que aderem a eles, quanto os que se revoltam contra eles.

O suspeito de atirar em Kirk, um rapaz chamado Tyler James Robinson, de 22 anos, foi preso depois de 33 horas de buscas.

Não se sabe muito sobre Tyler ainda. Sabe-se que ele vivia em St. George, Utah, e estava matriculado num curso técnico de elétrica no Dixie Technical College — era seu terceiro ano nesse curso.

Vindo de uma família conservadora e religiosa, Robinson não tinha histórico criminal conhecido, e estava registrado como eleitor sem filiação partidária. Ele foi reconhecido como suspeito pelo próprio pai, a partir de imagens de divulgação policial, e entregou-se depois de confrontado. As investigações apontam para evidência forense clara: DNA dele foi encontrado em uma toalha relacionada à arma usada no crime, assim como em uma chave de fenda achada no ponto de disparo, segundo o FBI.

Também há munições com inscrições que inclinam para a cultura de games, linguagem de internet e antifascismo simbólico, o que tem alimentado hipóteses sobre sua radicalização digital — embora nada disso aponte, até agora, para que ele fosse membro formal de qualquer grupo extremista.

Criado em uma família conservadora e de tradição mórmon, Tyler cresceu em Utah em meio a valores religiosos e republicanos. Diferentemente dos pais e irmãos, que se alinham à direita tradicional, ele teria demonstrado, nos últimos anos, discordância política — a ponto de confrontar as ideias de Charlie Kirk em conversas privadas.

O governador de Utah, Spencer Cox, chegou a dizer que Robinson “se tornou mais político” recentemente, o que causou tensões familiares. Apesar disso, não havia sinais de militância organizada: Robinson não tinha filiação partidária registrada e não aparece em registros de participação eleitoral recente.

As poucas pegadas digitais e as provas colhidas até aqui na cena do crime indicam referências à cultura gamer e a uma variedade de símbolos da cultura digital, mas nem de perto respondem, ainda, se ele era de esquerda ou de direita. E, cá entre nós, talvez nunca respondam integralmente.

Essa dificuldade de enquadrar alguns desses jovens não é novidade. Há pelo menos uma década pesquisadores alertam que os fóruns digitais e os ambientes gamers funcionam como incubadoras de radicalismos que não obedecem às fronteiras tradicionais.

No mesmo servidor de Discord, pode circular propaganda neonazista e sátira antifascista, tudo junto, sem separação clara. O humor, muitas vezes, serve como armadura: quando confrontados, os participantes podem dizer que era “só piada”. Mas nem sempre.

Até aqui, Robinson parece ter emergido desse caldo. Aparentemente transitava em subculturas que embaralham política, ironia e violência performática. O fato de ter inscrito memes em cápsulas de munição é quase uma metáfora perfeita: a bala que matou Kirk vinha carregada de símbolos digitais, de referências que só fazem sentido para quem habita esse universo.

Não se trata de dizer que games ou fóruns transformam automaticamente jovens em assassinos. A imensa maioria dos jogadores e frequentadores dessas comunidades jamais pegaria em uma arma. Mas é preciso reconhecer que esses espaços se tornaram terrenos férteis para uma pedagogia da intolerância.

Neles, jovens não raro ressentidos por uma série de razões encontram acolhimento, mas também códigos de exclusão; encontram humor, mas também naturalização da violência; encontram pertencimento, mas também um repertório de símbolos que podem justificar agressões. Nada é tão simples como a política tradicional tenta fazer parecer.

Vamos entender melhor? Então, fica aqui comigo. Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Se você me acompanha aqui, sabe que no Meio a gente tem dois grandes nortes editoriais: o diálogo e a democracia.Um não vive sem o outro. Pra gente se ouvir, o ambiente democrático é fundamental. Pra democracia persistir, a gente precisa voltar a conversar. Nosso jornalismo faz isso em muitas plataformas e de formas diferentes. No caso do julgamento do Bolsonaro, por exemplo, a gente fez uma cobertura super intensa: no dia a dia, gratuitamente, na nossa newsletter com a curadoria do noticiário, no podcast No pé do Ouvido, e no Central Meio, nossa live da hora do almoço, além do material das redes sociais. Pros assinantes premium, com reportagens especiais na Edição de Sábado, artigos no Meio Político e com o documentário O Julgamento do Século, no nosso streaming. E ainda tem mais conteúdo chegando, com o epílogo e as entrevistas do doc na íntegra. Se você gosta do nosso jornalismo, por favor, assine o Meio. Sua assinatura é fundamental pra tudo isso acontecer. E são só 15 reais por mês.

Quando o FBI ainda nem tinha terminado a coleta de provas da cena do assassinato brutal de Charlie Kirk, já circulavam nas redes teorias sobre Tyler Robinson ser “um Groyper”, integrante de uma facção de extrema direita liderada por Nick Fuentes, famosa por atacar justamente Kirk, a quem chamavam de “moderado demais”.

Até agora, não há prova de que Robinson fosse parte desse movimento. Mas o simples fato de a suspeita ser plausível mostra como as fronteiras se confundem: um suposto antifascista pode agir com estética da extrema direita; um opositor de Kirk pode usar exatamente as armas simbólicas criadas pelo ecossistema conservador radical que Kirk ajudou a erguer.

Existe ainda um conceito recente que ajuda a entender casos assim: o extremismo violento niilista. Pesquisadores e o próprio FBI descrevem uma categoria de ataques que não se encaixam nas velhas caixas ideológicas. São atos de violência motivados por símbolos confusos, raiva difusa, sensação de desesperança.

Não há organização, nem projeto político consistente — só a recusa em aceitar o mundo como está e o impulso de destruí-lo. O assassinato de Kirk pode muito bem ter essa marca: não de um militante disciplinado, mas de um jovem que mistura slogans de esquerda saídas de um game, memes da extrema direita e cultura pop sem costura, num gesto mais niilista do que programático.

A tragédia também se inscreve numa história longa de violência política nos Estados Unidos. Esse é um país acostumado a resolver diferenças ideológicas e insatisfações políticas na bala.

Os Estados Unidos já perderam presidentes assassinados, como Abraham Lincoln, James Garfield, William McKinley e John F. Kennedy. Também viu figuras como Robert Kennedy e Martin Luther King Jr. tombarem a tiros, além de atentados contra Ronald Reagan e Theodore Roosevelt. O próprio Donald Trump foi alvo de um tiro na campanha e seu atirador também não era claramente identificável com uma ideologia.

Não há como entender o choque do assassinato de Kirk sem lembrar que a violência política é parte recorrente do imaginário americano — e sempre reabre a ferida de um país que se orgulha da democracia, mas conviveu demasiadas vezes com o homicídio como argumento político.

E, para complicar ainda mais, setores da esquerda mais radical americana reagiram muito mal ao crime. Nas redes sociais, não foram poucos os que comemoraram a morte do ativista, como se fosse uma vitória contra o conservadorismo. Essas manifestações deram munição perfeita à retórica da extrema direita: a de que, no fim, é a esquerda radical que é violenta, que celebra a morte de um adversário.

Cada tweet comemorativo, cada ironia mal calibrada, é imediatamente transformado em prova para reforçar a narrativa de Trump e companhia. No jogo polarizado em que vivemos, até os excessos marginais de um lado se tornam combustível para a estratégia política de massas do outro.

Dias depois do crime, o vice-presidente JD Vance usou o podcast de Charlie Kirk para atacar a esquerda, dizendo que era preciso responsabilizar “organizações radicais” por criar o ambiente que levou ao assassinato. Para sustentar a fala, citou uma pesquisa do instituto YouGov feita no auge do calor da comoção com a morte de Kirk: nela, quase um quarto dos eleitores que se definem como “muito liberais” afirmaram achar aceitável comemorar a morte de uma figura política do campo oposto, contra apenas 3% dos “muito conservadores”. Embora continue sendo uma minoria, o dado foi explorado por Vance como prova de que a violência política é monopólio da esquerda americana.

Esse dado é rebatido por números publicados pela Economist, que mostra que desde 1990 os casos de violência política nos Estados Unidos que já tiveram uma conclusão na Justiça vêm, majoritariamente, da direita, embora a distância entre os que venham da esquerda esteja diminuindo.

Mas aqui fica muito clara a exploração política inconsequente do caso pela extrema direita. Donald Trump não esperou investigações: declarou que “a esquerda radical” foi a responsável pelo assassinato. Disse que a retórica progressista “é culpada pelo terrorismo que vivemos hoje” e prometeu punir não só o atirador, mas também “quem o inspirou”. O governador de Utah, Spencer Cox, republicano, depois foi mais cauteloso, mas também afirmou que Robinson tinha “ideologia de esquerda” logo de cara. Já o presidente da Câmara, Mike Johnson, preferiu baixar a fervura, ao menos por enquanto, e descreveu o momento como “um ponto de virada” do debate público.

O problema é que, até aqui, não há motivação oficial estabelecida. A perícia confirma o rifle, as cápsulas, o DNA, as inscrições. Mas não há evidência sólida de filiação de Robinson a grupo político específico, nem de uma ideologia coerente. Ele ainda não coopera com investigadores. As mensagens que deixou podem ser lidas como piada, provocação ou declaração política. E justamente por isso são tão perigosas: porque funcionam em múltiplos registros.

Robinson, pelo que se sabe até aqui, pode ser produto de um ecossistema em que símbolos contraditórios — da extrema direita ao antifascismo, de memes de fórum a slogans históricos — circulam sem fronteiras claras, formando uma ideologia difusa, fragmentada e instável e perfeita para jovens ressentidos sem lideranças responsáveis que os guiem.

A bala que matou Kirk saiu também de um espaço em que a fronteira entre piada e ódio, entre ironia e violência, se dissolve — e onde jovens podem se radicalizar sem sequer saber ao certo em nome de que ideologia atiram. Está na hora de os adultos na sala pararem de brincar de incitar a violência do outro lado somente em benefício próprio.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.