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Janja, Michelle e a vaga do STF

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Tem duas histórias correndo paralelamente em Brasília, e as duas dizem muito sobre como a capital e a opinião pública se movem quando se pensa no papel das mulheres na alta cúpula do poder.

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De um lado, Lula precisa indicar um novo ministro — ou ministra — para o Supremo Tribunal Federal depois da aposentadoria antecipada de Luís Roberto Barroso.

De outro, o governo federal publicou um decreto que reorganiza a estrutura do gabinete pessoal da Presidência para ampliar o suporte às atividades públicas da primeira-dama, a Janja.

A indicação para o STF mexe com a arquitetura institucional do país pelos próximos anos. O decreto mexe com a percepção política e simbólica de como Lula enxerga as atribuições das primeiras-damas em geral, e da sua mulher em particular.

A socióloga Rosângela Lula da Silva, a Janja, nunca escondeu que gostaria de ter mais funções durante o mandato do marido. Não raro, exagerou ao tentar chamar a atenção para si, a ponto de conquistar antipatias até mesmo na esquerda com sua postura um tanto deslumbrada diante do poder.

Mas também nunca se furtou a dizer que queria ampliar essa atuação de forma institucionalizada, regulamentada, com um gabinete próprio, a exemplo do que já acontece em muitos países, como nos Estados Unidos.

As coisas podem ser verdades simultâneas e, sim, também é verdade que outras primeiras-damas brasileiras optaram por ser mais discretas, ou por atuar de forma restrita, em papéis de cunho predominantemente social em vez de político.

Pois bem. O decreto de Lula regulamenta parte dessa atuação da Janja e, por óbvio, das futuras primeiras-damas. E, cá entre nós, o timing para fazer isso não podia ser pior.

Quando Lula tenta oficializar o protagonismo de Janja, ele oferece munição barata pra oposição no melhor momento de seu governo em termos de popularidade.

Mesmo que juridicamente o decreto não crie nenhum poder irregular, os grupos e os perfis bolsonaristas, e da oposição em geral, estão alvoroçados. Claro que, acuados, eles estavam de butuca, espiando, à espera de qualquer deslize, e nem precisaria ser deslize, na real, pra tentar reverter a boa onda do governo federal.

Janja é alvo preferencial dos ataques. Ela os chama, os facilita, verdade. Mas também representa, enquanto mulher de esquerda, tudo que a direita reacionária mais abomina. Todos os riscos, todas as frases que os conservadores consideram “ameaçadoras”, está tudo nela.

Então, pegue esse combo e some a ele uma camada bem generosa de hipocrisia. Porque, na mesma linha de mais de uma verdade possível ao mesmo tempo, também é fato que se teve uma primeira-dama que atuou politicamente de formas bem pouco institucionais foi Michelle Bolsonaro.

E é aí que entra meu ponto central: se Lula quer realmente contemplar as mulheres — inclusive Janja — e deixar um legado, o caminho possível para fazer isso em 2025 não é o atalho simbólico de um decreto em favor da primeira-dama, mas o gesto institucional profundo de indicar uma mulher para o Supremo. Agora. Urgentemente.

Você concorda? Discorda? Então, fica aqui comigo que eu quero falar mais a fundo disso. Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Aqui, a gente fala muuuuito de política, de democracia, de divergência de opiniões com respeito, pra construir mais democracia ainda. Só que essa mensagem não é a favorita dos algoritmos, né? A raiva, o engajamento só com a própria turma, tudo isso é favorecido pelas redes e a gente, que tenta furar as bolhas, acaba ficando meio escondido. Se você acredita nesse tipo de jornalismo, de debate, um jeito de nos ajudar é curtindo nossos vídeos, seguindo as redes do Meio, compartilhando com amigos. Outro é sendo um assinante premium, pagando só 15 reais por mês, e recebendo um monte de conteúdo exclusivo produzido por nós. Assine hoje mesmo!

Antes de qualquer coisa, vamos limpar o terreno da desinformação. Nas redes sociais, circulou a ideia de que o decreto 12.604 daria a Janja os “mesmos poderes do presidente”. Isso é falso.

O que o decreto faz, segundo o próprio texto publicado no Diário Oficial e confirmado pela checagem do Aos Fatos, é ampliar o acesso de Janja aos serviços do gabinete pessoal da Presidência: agenda, cerimonial, correspondências, acervo privado e apoio logístico. Isso não cria cargo, não delega assinatura de atos de governo, não permite nomear ministros ou promulgar leis.

A Advocacia-Geral da União já havia publicado uma orientação normativa em abril dizendo que o cônjuge do presidente, qualquer cônjuge, pode representar o país em compromissos simbólicos, sociais, diplomáticos ou culturais — mas sempre em nome do presidente, nunca com autonomia executiva. Ou seja: juridicamente, o decreto é limitado e coerente com o papel histórico das primeiras-damas.

O problema é político. No fim de mandato, com a oposição armada para 2026, qualquer movimento que pareça ampliar poder familiar se transforma em rótulo. “Gabinete paralelo”, “aparelhamento”, “nepotismo” — essas palavras já estão prontas na boca dos adversários.

Lula sabe que governar também é comunicar. E ampliar a estrutura em torno de Janja, mesmo que apenas administrativa, já seria desafiado pela oposição de forma barulhenta.

Ao fazer isso agora, alimentou o discurso do bolsonarismo justamente no momento em que desfruta de seu melhor desempenho nas pesquisas sobre a aprovação de seu governo e quando deveria estar fortalecido para negociar as pautas do Planalto no Congresso e a escolha para o Supremo.

Agindo assim, abriu espaço para a narrativa de que age na base do personalismo, bem quando estava surfando na onda do “ricos contra pobres”, do “Congresso inimigo do povo” etc.

Vamos frisar a parte que a oposição escolhe esconder e lembrar de alguns highlights da carreira de primeira-dama de Michelle Bolsonaro, que tem sido, estrategicamente, uma das mais vocais no embate com Janja.

Teve o episódio que lhe rendeu o apelido de Micheque: o Ministério Público investigava Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro apontado como operador do esquema de rachadinha, e foram encontrados depósitos de 89 mil reais na conta de Michelle entre 2011 e 2016. O próprio Bolsonaro disse que era pagamento de um empréstimo. A investigação acabou arquivada pelo STF porque a Procuradoria-Geral da República, comandada por Augusto Aras — sempre ele — pediu o arquivamento. O Supremo acatou.

Em outro episódio, a revista Crusoé publicou e-mails em que assessores da Presidência encaminhavam à Caixa Econômica Federal pedidos de empréstimo para empresas amigas de Michelle, com a frase: “A pedido da sra. Michelle Bolsonaro…“. A reportagem mostrava que comerciantes e empresários do setor de serviços recebiam crédito com juros baixos após intervenção dela. Como a gente classifica isso? É atuação política?

Mas vamos ao ponto mais relevante pra essa comparação: a indicação de André Mendonça ao Supremo. A Folha de S.Paulo mostrou com detalhes como Michelle foi uma das principais fiadoras da indicação. A vaga estava travada, havia disputa dentro do governo, o senador Flávio Bolsonaro preferia Augusto Aras. Mendonça quase caiu.

Segundo relatos ouvidos pela Folha, Michelle pressionou o marido para manter a indicação. Pastores evangélicos se mobilizaram, fizeram romarias nos gabinetes do Senado, oraram nos corredores, e exigiram que Bolsonaro se empenhasse na aprovação. No dia da votação no Senado, Michelle estava dentro do gabinete do senador Luiz do Carmo, comemorando a vitória com gritos de “glória a Deus” e abraços emocionados. A cena viralizou.

Líderes evangélicos, como Silas Malafaia, disseram publicamente que Mendonça foi “unanimidade no mundo evangélico” e que quem fosse contra ele “não tinha representatividade”. Isso é ou não é atuar politicamente para moldar o Supremo Tribunal Federal?

Ou seja: a narrativa de que “primeira-dama não deve fazer política” só aparece quando se trata de Janja. Quando era Michelle, era chamado de “engajamento”, “mobilização da fé“, “protagonismo feminino”. Tanto Michelle era política que se habilitou para, assim que o casal Bolsonaro saiu do governo, ser catapultada a presidente do PL Mulher e, hoje, ser uma das favoritas de Valdemar Costa Neto para uma eventual chapa presidencial com o sobrenome Bolsonaro.

O problema não é a atuação política em si. O problema é a coerência — e a forma como isso se institucionaliza. Michelle atuou nos bastidores e conseguiu um ministro do Supremo Tribunal Federal pra chamar de seu. Atuando como uma política nata, depois de seu marido indicar Mendonça e Kássio Nunes Marques para o STF, Michelle cobrou Lula por não indicar uma mulher para a Corte quando o atual presidente indicou Cristiano Zanin e Flávio Dino.

Pois agora Lula pode deixar de ser tão personalista quanto foi na indicação de Zanin e tão calculista quanto foi na de Dino.

O STF teve apenas três ministras em toda a sua história: Ellen Gracie, nomeada em 2000, primeira mulher a presidir o Supremo; Cármen Lúcia, no cargo desde 2006, que também presidiu o STF e hoje preside o Tribunal Superior Eleitoral, sendo responsável por conduzir o processo eleitoral até 2026; e Rosa Weber, nomeada em 2011, que se aposentou em 2023 e deixou um marco ao votar pela descriminalização do aborto até 12 semanas, abrindo um debate que ainda será retomado.

O julgamento foi interrompido por pedido de destaque de Barroso, que escolheu não pautá-lo em sua presidência. Barroso pode escolher apresentar seu voto como ato final antes da aposentadoria. Neste caso,  seu substituto ou substituta não vota. Se for uma mulher, talvez ele se sinta compelido a deixar para ela o voto.

Vejam bem. Não se trata, de forma alguma, de imaginar que mulheres são mais virtuosas, mais merecedoras de uma toga — embora as ministras do Supremo que tivemos até aqui até sejam dignas desses elogios. Trata-se de representatividade mínima. De perspectiva. De equidade, inclusão. A sociedade brasileira é feita de uma maioria de mulheres, há 6 milhões de mulheres a mais do que homens no país. E há apenas uma na instância mais alta do poder Judiciário.

Quando Bolsonaro indicou Mendonça, falou que o ministro que indicasse teria de ser alguém de sua confiança, com quem ele pudesse tomar uma tubaína, e tinha de ser terrivelmente evangélico, para representar esse naco da sociedade na Corte.

A esquerda bateu forte.

Lula escolheu Zanin também na base da confiança pessoal. Dino, idem. Nesses três anos, indicou mulheres para outros cargos do Judiciário, mas quando chega na Corte mais alta, a preferência está, novamente, sobre dois homens: Rodrigo Pacheco e Jorge Messias. O primeiro seria por razões de palanque eleitoral e para agradar Davi Alcolumbre. O segundo, favorito, também é evangélico e, supostamente, abriria portas a esse público que é refratário a Lula.

Eu duvido, tá? Me parece que as alas de direita das igrejas, amplamente majoritárias, o veriam como um “evangélico esquerdista”, que, segundo Sóstenes Cavalcante, a versão parlamentar de Silas Malafaia, corresponde a 5% do rebanho. Ainda que seja bravata, é uma aposta arriscada.

Existem nomes qualificados de mulheres juristas que foram apresentados ao Planalto por entidades da área: Lívia Sant’Anna Vaz, promotora baiana doutora em Lisboa, referência no combate ao racismo e à intolerância religiosa; Edilene Lobo, ministra do TSE e primeira mulher negra no tribunal; Daniela Teixeira, hoje no STJ, com longa trajetória na OAB; Dora Cavalcanti, criminalista respeitada nacional e internacionalmente; Maria Elizabeth Rocha, presidente do Superior Tribunal Militar, primeira mulher no cargo em 217 anos, doutora em Direito Constitucional e defensora da igualdade de gênero. Beth Rocha, inclusive, é uma das entrevistadas do nosso documentário, O Julgamento do Século, e o papo com ela na íntegra já está no ar. Recomendo.

Não faltam quadros femininos de gente qualificada, pronta pro trabalho.

Supondo que a confiança seja realmente um critério importante, o que talvez não devesse ser, mas nesses três anos, não teria sido possível pra Lula construir uma relação de “confiança”, espera-se que nos termos institucionais, com uma mulher do Direito? E para Janja?

Fazer decreto centrado na atuação de Janja, nesse momento, é desperdiçar capital político. Esse capital deveria ser gasto na indicação de uma mulher ao Supremo Tribunal Federal.

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