Caos no Rio e gol contra de Lula
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Cá entre nós, a gente pode admitir que Lula acertou muito na estratégia que escolheu para lidar com Donald Trump? E, ao mesmo tempo, que errou feio demais naquela frase infeliz sobre os traficantes de droga serem vítimas dos usuários? E o que tudo isso tem a ver com a megaoperação no Rio contra o Comando Vermelho que deixou pelo menos 24 mortos e mergulhou a cidade no absoluto caos?
Calma, vamos destrinchar os três movimentos pra entender o que cada um representa a essa altura do campeonato político e eleitoral.
A começar pelo golaço de Lula. Sim, talvez Trump ainda desande tudo que parece bem encaminhado até aqui, porque ele é imprevisível. Seu método é o caos e a dobra permanente de apostas. Mas também é fato que ele gosta de estar perto de quem vence, ou de quem projeta a imagem de ganhador nas disputas.
O jornalista Lourival Sant’anna, da CNN Brasil, relatou como esse fator, essa noção que o perdedor é Jair Bolsonaro e Lula é o vitorioso em variadas métricas, fez Trump mudar o tom, associar a tal “caça às bruxas” ao que Lula passou e superou no Brasil, e passar a elogiá-lo publicamente, usando termos como “vigoroso” para se referir ao colega brasileiro.
A imagem de vencedor de Lula aos olhos de Trump, a meu ver, tem duas dimensões. Uma é externa. O presidente brasileiro seguiu viajando e falando que Trump não poderia ser o “ditador do mundo” mesmo com a faca tarifária no pescoço. Escolheu falar que topava negociar a qualquer momento, mas sem ceder de cara ao que Trump vinha pedindo, como fez a União Europeia, por exemplo.
E mostrou, com números da balança comercial e com encontros na arena internacional, que não depende só dos Estados Unidos para manter o Brasil competitivo. Como Trump não quer perder o Brasil de vez pra China, achou melhor dar um passo atrás na retórica agressiva e negociar de verdade. Nesse pedaço da matemática trumpista, entram também os preços do café e da carne para os consumidores norte-americanos e o lobby empresarial, claro.
A outra dimensão é interna. Lula e o Supremo Tribunal Federal resistiram ao assédio MAGA e bolsonarista de Trump e seus assessores radicais. O julgamento dos golpistas seguiu, a chance de o Congresso brasileiro aprovar uma anistia está reduzidíssima e Jair Bolsonaro, hoje, tem capital eleitoral, mas a ultradireita brasileira caminha para se reorganizar sem ele, para substitui-lo.
Aquela foto de Lula e Trump dando as mãos, sorridentes, como se fossem grandes aliados, selou uma virada na relação Brasil e Estados Unidos. Ninguém aqui se engana de achar que Lula e Trump sejam alinhados ideologicamente, certo? Não são. Mas, para o bolsonarismo, era importante que eles seguissem como inimigos. Como Trump é de Nicolás Maduro e Gustavo Petro. E isso, neste momento, está muito longe de ser a realidade.
Ao contrário, Lula quer se apresentar como um intermediário natural da negociação de Trump com a Venezuela antes que a coisa acabe em guerra mesmo. E, por nunca ter rompido drasticamente com Maduro, Lula realmente tem condições de fazer essa mediação.
Foi nesse contexto que ele isolou a bola tipo Elano naquele pênalti na Copa América em 2011, sabe? Ou, pior, fez um gol contra à la Oséas naquele Palmeiras e Corinthians no Paulistão de 1998.
Ao falar do problema crítico das drogas, que é a desculpa que Trump usa pra bombardear barcos e derrubar o governo de Maduro, Lula improvisou e perdeu a mão totalmente ao igualar traficantes com usuários, criminosos com vítimas. Fica aqui comigo que eu vou explicar por que eu acho que, mesmo tendo pedido desculpa, Lula foi tão mal nessa. E como essa megaoperação de Cláudio Castro no Rio entra nessa equação.
Eu sou Flávia Tavares, editora do Meio. Pra quem não me conhece, sou jornalista há mais de 20 anos. Já trabalhei no Estadão, na revista Época, na CNN. Faz três anos e meio que estou aqui no Meio. Eu sempre falo de política, de segurança pública, de direitos humanos e, mais recentemente, falo também de coisas da vida com minha amiga Pietra Príncipe, no programa Dou-lhe Duas, aqui mesmo no YouTube e em podcast.
Tem espectador que me acha a cara da Janja. Tem outros que me dizem que sou a cara da Björk, elogio que amo porque sou fã dela. Tem quem fale que eu passo pano pro Lula. Mas, quando eu critico o governo, aparece alguém dizendo que eu sou da mídia golpista e tal. Faz parte de estar em público. O que eu sou mesmo é completamente apaixonada por jornalismo, por liberdade de expressão e por democracia e troca de ideias. E esses são três dos princípios inegociáveis do Meio. Se você também considera esses três princípios fundamentais, que tal assinar o Meio e ajudar a nos financiar? São só 15 reais por mês.
Olha, gente, se você teve o empenho de ver a fala inteira do Lula que culminou nessa fala desastrada sobre traficantes vítimas de usuários você sabe que o raciocínio estava indo por um caminho razoável. Você pode discordar do raciocínio feito ali, mas ele tem uma lógica. Lula estava dizendo, entre outras coisas, que não dá pros Estados Unidos sairem matando “supostos traficantes” em barquinhos sem submeter aqueles suspeitos a julgamento e, então, a condenações.
E Lula estava dizendo que o tráfico de drogas é um problema que precisa ser tratado em duas pontas, na do crime e na dos usuários. Foi nesse ponto aqui que ele jogou a bola contra o próprio gol. A frase inteira dele foi a seguinte:
“Toda vez que a gente fala sobre combater as drogas, possivelmente, fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados internamente. Os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também. Ou seja, você tem uma troca de gente que vende porque tem gente que compra; de gente que compra porque tem gente que vende. Então, é preciso que a gente tenha mais cuidado no combate à droga”.
O estrago foi imediato, instantâneo e, honestamente, não dá nem pra condenar que políticos da direita usem esse erro do Lula contra ele, né? Lula estava em alta e dá essa brecha? Claro que, como eu sempre digo, políticos politicarão. Nikolas Ferreira, Flávio Bolsonaro, tudo que é expoente da oposição deitou e rolou nessa frase, que depois Lula classificou como “mal colocada”.
Um estudo da Ativaweb DataLab aponta que, em apenas 10 horas, a declaração mobilizou 15,6 milhões de menções nas redes sociais, sendo que 70% foram negativas. No Whatsapp, levantamento da Palver mostrou que as palavras “traficante”, “facção” e os derivados atingiram, naquele dia, o pico histórico de mensagens desde o início do monitoramento. Foi maior do que as menções ao julgamento de Bolsonaro no STF, por exemplo. Foi maior também que a mobilização contra a PEC da Blindagem.
Já que a gente está falando de repercussão em redes sociais, vale contar que a foto do encontro de Lula e Trump, dois dias depois dessa fala horrorosa sobre traficantes sendo vítimas, foi um sucesso de público. A Quaest apurou que foram 72 milhões de visualizações e 678 mil menções nas redes sociais na foto, o que superou o recorde anterior, que era daquela foto do Lula de sunga, abraçando a Janja.
Acontece que a Quaest mostra que, sobre a foto do Lula com Trump, 54% das menções foram neutras, 26% positivas e 20% negativas. Ou seja, não são de saldo necessariamente positivo.
Gente, eu recorri a esses levantamentos apenas para ilustrar, né? Todos sabemos que nas redes tudo é mais inflamado, polarizado, e eventualmente é manipulado.
Mas o que acontece ali também não deve ser desprezado como um espelho, ainda que de imagem distorcida, da realidade.
E a realidade tem dois pontos aqui: um é que, também segundo a Quaest, a violência é o tema que mais preocupa 30% da população. Outro é que a segurança pública é um calcanhar de Aquiles da esquerda e de Lula. E ele estava num bom momento até nessa área em que é frágil.
Isso porque Lula estava surfando o mau desempenho de Tarcísio de Freitas na lida com o PCC e o crime organizado na crise do metanol. Estava desfrutando do sucesso de uma ação contra o crime organizado que chegou na Faria Lima e que foi, largamente, fruto do trabalho dos órgãos federais. E estava, ainda, na esteira do movimento de seu ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, de um projeto de lei antifacção, que Lula podia usar pra faturar politicamente em discurso. Tudo isso era o caldo em que o governo federal usaria pra tentar aprovar a PEC da Segurança Pública, que poderia ser, finalmente, a marca de seu governo.
Mas, ao improvisar e lançar uma frase tão estapafúrdia, Lula parece não compreender que os brasileiros estão exaustos. Os de esquerda, os de direita, os de centro, os não-engajados, quem quer que seja, está todo mundo muito cansado de se sentir inseguro. E a verdade é que, ali na ponta, as pessoas não sabem se a responsabilidade é do governador, do prefeito, de quem quer que seja. A culpa vai ser do governante da vez ali na urna.
No sábado, o bairro onde eu moro em São Paulo teve mais um desses assaltos de motoqueiro armado, à luz do dia, pra levar celular. Eles são traficantes? Não sei. São do PCC? Também não sei. O que eu sei é que no quilinho da esquina o assunto era só esse. E a dona do restaurante estava falando “bem, olha aí, a esquerda deve estar feliz, porque gosta de bandido”.
E não dá sequer pra julgar esse entendimento que ela tem das coisas. Porque é verdade que políticos e militantes de esquerda têm o discurso de compreender as dinâmicas da violência a partir da carência social que empurra as pessoas para a vida do crime e da garantia de direitos humanos para criminosos. Essas visões legítimas e necessárias para evitar a barbárie de sair encarcerando e matando bandido sem qualquer critério, só em nome da sanha punitivista.
Mas é preciso atualizar essa visão na prática e no discurso. Atualizá-la inclui entender que, primeiro, o crime se profissionalizou e organizou tanto que não dá pra tratar qualquer ladrão como aquela pessoa que rouba pra comer, certo? Segundo, que o crime se profissionalizou e organizou tanto que a sociedade, toda a sociedade, quer uma resposta eficaz, rápida e que não dependa exclusivamente das reformas sociais profundas e lentas de que o Brasil precisa pra ser mais seguro.
Terceiro que tem uma parte expressiva da sociedade que se sente atendida pelo discurso e pelas práticas dos governos de direita nesse setor, que, entre outras, são de combater a violência com mais violência, entrar atirando, aumentar a letalidade policial.
A megaoperação desta terça no Rio contou com 2,5 mil agentes de segurança. O secretário de segurança pública do estado fez questão de dizer que ela não contou com apoio do governo federal. Cláudio Castro, o governador, disse que o governo Lula recusou emprestar blindados das Forças Armadas, porque precisaria de uma GLO pra isso. E acrescentou que o Rio está sozinho nessa.
É a pauta que vai dominar a eleição, pode escrever. Não vai ter foto com Trump que supere esse assunto. Nem teto de gastos. Ronaldo Caiado, governador de Goiás, só fala disso nas entrevistas e palestras que vem dando. Castro reforçou o coro. Tarcísio certamente vai tentar capitalizar também, como tentou ao dissociar a crise do metanol do PCC.
Eu estive num evento da Prada Assessoria na semana passada, que recebeu o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, para falar de segurança pública. A Prada é um escritório de investimentos e realiza o Fórum de Ideias, pra discutir boas políticas públicas, independentemente do lado do espectro político que elas saiam.
Pois bem. Casagrande é um governador da centro esquerda, do PSB. Tem números importantes pra mostrar: em 2024, teve 852 homicídios e alcançou o melhor resultado nesse índice desde 1996. Pela primeira vez, o Estado registrou menos de 900 casos em um ano. Pra se ter uma ideia, em 2011, eram 2 mil homicídios anuais no Espírito Santo, que ocupava o segundo lugar no ranking nacional de estados mais violentos do país.
É um exemplo oposto ao da Bahia, que é governada pelo PT e aparece em tudo que é medição como o estado mais violento do Brasil. Mas é também a prova de que dá pra fazer política pública de segurança “de esquerda” e apresentar bons resultados, sem precisar cair num discurso desatualizado, antiquado, e sem cair na armadilha de repetir o discurso da direita. Casagrande explica que a saída foi consistência e continuidade nas políticas e foi conciliar o trabalho social com o das polícias, muito de perto. Não tem muito segredo.
Lula vai ser cobrado pelo que fala, pelo que entende e pelo que faz em termos de segurança pública. Muito mais cobrado do que sobre o que fez no cenário internacional. Em sua retratação, ele argumentou que o que ele faz na segurança tem mais peso do que o que ele fala. Na eleição, não é necessariamente assim. E um político experiente como ele já devia saber disso faz tempo.


