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O que esperar da CPI do Crime Organizado?

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A sessão desta terça-feira no Senado pra instalar a CPI do Crime Organizado foi uma aula de política. Pra quem gosta de acompanhar o que acontece nos corredores do Congresso, foi tipo uma disneylândia. Ou um passeio, um sobrevoo, por um almanaque de como a política é feita na prática, na vida real, e como ela pode ser feita quando o planeta Brasília não está plenamente sequestrado pelo bolsonarismo.

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Gente, quem me conhece sabe que não sou de sair elogiando gratuitamente o que esse Congresso faz. Ainda mais depois de feiúras recentes como a PEC da Blindagem e outros que-tais. Mas, sim, os senadores que estiveram na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para instalar a CPI do Crime Organizado se portaram da maneira que se espera num ambiente político normal.

Discordaram, se opuseram uns aos outros, disputaram protagonismo e narrativas, tudo que é do jogo. Mas fizeram isso, primeiramente, de forma pouco histriônica e, segundamente, de forma relativamente dialogada.

A exceção que confirmou a regra foi o comportamento do senador Eduardo Girão, do Novo do Ceará. Ele foi o primeiro a se manifestar e tentou ditar o tom da sessão. Logo de cara, disse que o Planalto “tomou de assalto” a CPI, misturou a decisão do Congresso sobre saidinha temporária no balaio, e acusou o presidente Lula, literalmente, de “flertar com terrorista”.

Honestamente, ao vê-lo falar no mesmo tom que eu esperaria de um Nikolas Ferreira da vida, achei que essa seria a dinâmica de toda a sessão: oposição recorrendo à retórica de grupos de whatsapp, e situação nas cordas, tentando apenas refutar as acusações de que o governo defende criminoso.

Mas, logo em seguida, o presidente da CCJ, o senador Otto Alencar, do PSD da Bahia, retomou a palavra e fez uma fala dura sobre a condução dos trabalhos ali. Assegurou que não permitiria que a comissão fosse capturada por esse ou aquele grupo para passar pano pra ninguém, pra blindar ninguém, respondendo à suspeita levantada por Girão de que tudo estava se encaminhando pra uma saborosa pizza pró-governo.

Instantes antes, os líderes dos partidos se reuniram com Otto Alencar pra tentar definir quem seria o presidente da CPI. A relatoria já havia sido acordada, ficaria com Alessandro Vieira, do MDB de Sergipe, autor do requerimento que pediu a sua instalação. Vieira é delegado de carreira e tem grande respeito dos colegas tanto por sua independência quanto por sua sobriedade.

Pois oposição queria, inicialmente, emplacar Flávio Bolsonaro na presidência. Depois da articulação do líder do governo no Senado, Jaques Wagner, pra emplacar o senador Fabiano Contarato, a oposição viu que não ia dar pra ir de Flávio e se articulou em torno do nome de Hamilton Mourão para a vaga. Não houve consenso e a sessão foi aberta para que se decidisse no voto.

Jaques Wagner pediu a palavra e disse que não havia qualquer “aberração” no fato de o governo tentar formular uma “composição” na CPI. Afirmou que foi ele próprio, Jaques Wagner, que convidou Mourão a participar da CPI, ainda na quinta passada, por considerar que o general tem plena legitimidade por ser das Forças Armadas e por ter sido vice-presidente da República.

Até aí, ainda era de se suspeitar que, no instante em que o microfone fosse aberto a alguém da oposição novamente, os ataques mais agressivos voltariam. Mas não. Eu fiquei boquiaberta ao ver Flávio Bolsonaro ser até bem razoável em seu aparte.

Otto Alencar havia usado seu tempo para, entre outras coisas, lembrar de sua atuação na CPI da Covid — e, com isso, mostrar como não estava sujeito a qualquer tipo de pressão do Planalto de Lula, pois já havia resistido à pressão de Jair Bolsonaro naquela oportunidade.

Aconteceu, então, um diálogo que resultou numa confissão surpreendente, mas também muito coerente.

Flávio disse que “aquele era um contexto muito diferente” – aquele da CPI da Covid. E acrescentou: “Todo mundo sabia que aquela CPI seria totalmente politizada, como foi”.

Otto interrompeu e declarou: “o meu líder naquela ocasião era Nelsinho Trad e ele recebeu pressão do presidente Jair Bolsonaro para me retirar da titularidade várias vezes. Várias vezes. Seu pai, presidente da República, pressionou. Além disso, foi a única vez na minha vida que eu tive ameaça”.

Flávio Bolsonaro fez, então, a confissão. “É do jogo, é do jogo. Qual presidente quer uma CPI contra o seu governo instaurada?“.

Olha, chega a ser refrescante ver políticos tratando seu público não como idiotas, mas como pessoas capazes de entender as dinâmicas no Congresso. Porque é óbvio que nenhum presidente quer uma CPI durante seu mandato. Nunca. Não importa o tema. Elas representam sempre, potencialmente, na pior das hipóteses, um achaque, e na melhor, um desgaste.

Então, quando Girão acusa o PT de não ter assinado a instauração da CPI e, segundos depois, Flávio Bolsonaro confessa o óbvio, cá entre nós, quem fica mal na fita e faz um papel meio ridículo é Girão, né?

Mas eu não estou aqui pra ser ingênua, como eu sei que você também não é. É claro que, no momento seguinte, Flávio Bolsonaro já fez um comentário palanqueiro, falando que esta CPI não seria “politizada”. Ou seja, querendo convencer não sei quem que a oposição bolsonarista está entrando nessa CPI puramente imbuída de espírito republicano e não pra desgastar o governo Lula. Randolfe Rodrigues, líder do governo no Congresso, também falou que o governo não está ali pra politizar nada. Claro que está.

É curioso como os senadores escolheram usar os termos “politizada” e “política” nessa espécie de preliminar da CPI do Crime Organizado. Girão fez sua fala suplicando para que a comissão tivesse equilíbrio, com um presidente da oposição, mas reforçando que ela é um instrumento das minorias e que seu objetivo seria investigar o governo Lula. Como se o governo Lula tivesse maioria e como se o problema do crime organizado fosse exclusivamente do governo federal.

Em seguida, Flávio Bolsonaro vem com essa de que esta CPI não será politizada, quando a CPI da Covid foi.

Daí, quando foi a vez de Alessandro Vieira falar, sua primeira frase foi sobre como o Senado é, afinal, uma casa política. E como a CPI certamente terá espaço para discursos e disputas de narrativas. Mas ressaltou que a sociedade está precisando de respostas concretas sobre casos como o assassinato do ex-delegado geral da polícia, em São Paulo, Ruy Ferraz, por exemplo.

Hamilton Mourão também falou que fazer política é natural ali e que não há como separar as coisas numa CPI. Provando seu ponto, foi extremamente político ao, elegantemente, reconhecer em Contarato alguém com quem tem pontos de concordância na pauta de segurança pública e com quem, portanto, teria um caminho de diálogo.

Tanto foi assim que, ao perder a briga pela presidência da CPI, por sugestão de ninguém menos que a senadora Damares Alves, que elogiou a civilidade do que estava acontecendo ali naquela sessão, Mourão aceitou ser o vice-presidente da comissão, um cargo que nem costuma existir. Mourão até já tinha brincado antes, dizendo que tá acostumado a ser vice.

Olha só, eu não estou dizendo que as próximas sessões não podem descambar pra baixaria, que não vai ter palanquismo, ainda mais se lembrarmos que tem o Marcos do Val no colegiado, né? Não estou dizendo sequer que a CPI vá ter condições de produzir resultados concretos. Só estou genuinamente aliviada de ver política sendo feita por adultos.

Vamos falar do que vem por aí? Então, fica aqui comigo. Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Se você acompanha o Cá Entre Nós e gosta do que vê aqui, vai adorar o Meio Premium: streaming com séries e filmes originais, duas newsletters semanais com análises do nosso time e de colunistas convidados e descontos nos cursos. Tudo isso por apenas R$15 por mês. Clique no link na descrição e experimente. Garanto que você vai me agradecer depois.

Com exceção de Girão e Flávio Bolsonaro, todos os demais que se manifestaram no começo da primeira sessão da CPI do Crime Organizado, mesmo o senador Márcio Bittar, do PL do Ceará, manifestaram profunda admiração e respeito pelo senador Fabiano Contarato, do PT. Ele acabou eleito para presidir a CPI por 6 votos a 5.

Então, a cara da mesa que vai coordenar os trabalhos ficou assim: Contarato presidente, Mourão na vice, Vieira na relatoria. Contarato também é delegado de carreira. Foi reiteradamente elogiado por ter votado a favor da instalação da CPMI do INSS, contrariando a orientação do governo e de seu partido. Enquanto líder do PT no Senado, ele chegou a votar pela proibição da saidinha temporária, aquela mencionada por Girão, na contramão da legenda.

Contarato é notadamente a favor do aumento de tempo de internação de adolescentes infratores. É um senador de esquerda com pautas de segurança pública do ponto de vista das forças de segurança, o que é raro. E pode ser um belo condutor para o governo encontrar algum tipo de voz própria, mais conectada com as demandas da sociedade, nessa pauta.

O escopo da CPI é largo demais, vale dizer. Os senadores estão falando em mapear a atuação do crime organizado e das milícias no Brasil, apresentar soluções legislativas, falar de fronteiras. Tudo num prazo de 120 dias. Quase tudo em ano eleitoral. É difícil de acreditar que a comissão entregue resultados eficazes ou respostas concretas num tempo tão curto, com tantos interesses em jogo.

Entre os tópicos apontados por Vieira como os que orientarão os trabalhos, estão a ocupação territorial, a lavagem de dinheiro, o sistema prisional e o orçamento da segurança. Vieira também recebeu o aval para pedir a Hugo Motta, presidente da Câmara, que analise em regime de urgência propostas de segurança pública já aprovadas pelo Senado.

As primeiras decisões, além da eleição da tríade de comando, já foram de convites para ouvir o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, o da Defesa, José Múcio, diretores da Polícia Federal e governadores de 10 estados, entre eles, Tarcísio de Freitas e Cláudio Castro, de São Paulo e do Rio. Sim, vai ter vídeo nas redes e palanquismo, não tem como não ter.

Mas seria muito vantajoso pro Senado, e pra esses senadores em particular, se o trabalho desta CPI for sério. Se for além do teatro habitual de acusações mútuas e vazias, de gracinhas pras redes e só.

Além de essa ser uma demanda pulsante em tudo que é canto do Brasil, de gente de esquerda e de direita, e com grandes chances de se converter, sim, em crédito eleitoral, faz bastante tempo que os eleitores se sentem desprestigiados por um Congresso que insiste em agir, majoritariamente, em causa própria, ou desconectado da realidade do dia a dia das pessoas. Conforme as pessoas se sentem pouco representadas, menos interesse têm em política e esse ciclo piora, e muito, nossa democracia.

Seria importante também um palco em que a política se desse feita em alto nível. Pelos mesmos motivos, pra devolver alguma credibilidade às casas legislativas. Mas também pra lembrar o Brasil de como é possível disputar visões de mundo sobre qualquer tema, inclusive sobre segurança pública, de uma forma democrática, sem sermos capturados pela gritaria da extrema direita.

A escolha dessa mesa, com a deferência que quase todos se dispuseram a prestar a Contarato e a Vieira, é um bom primeiro passo. Espero muito que eles consigam manter esse tom ao longo dos trabalhos. O Brasil tá merecendo isso.

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