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Toc, toc, toc, é a Polícia Federal

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Tem dia que Brasília entrega a história inteirinha da República numa manhã só. Hoje foi assim. De um lado, a Polícia Federal batendo à porta do Banco Master, prendendo o presidente da instituição, Daniel Vorcaro, e revelando um esquema fraudulento que pode chegar a 12 bilhões de reais.

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De outro, o Congresso debatendo um projeto de lei que, nas versões mais problemáticas, enfraquece dramaticamente a própria PF e a Receita Federal — exatamente no dia em que essas duas instituições explicavam ao país como funciona uma fraude monstruosa no mercado financeiro e semanas depois de esses mesmos dois órgãos terem mostrado os tentáculos financeiros do crime organizado. Se existe uma palavra para isso, não é coincidência.

A operação Compliance Zero revela ao Brasil uma instituição conhecida de longa data dos operadores do mercado financeiro e da política. Segundo o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, o Master fabricava carteiras de crédito sem lastro e vendia títulos de renda fixa oferecendo retornos irreais.

A PF prendeu Vorcaro num jatinho particular prestes a decolar para Malta, cumpriu 25 mandados de busca e apreensão em cinco estados e encontrou 1,6 milhão de reais em espécie na casa de um dos alvos. Poucas horas depois, o Banco Central decretou a liquidação extrajudicial do Master, encerrando de vez as atividades da instituição.

Mas nada disso surgiu do nada. O Master é só o capítulo mais vistoso de uma história que começou muito antes. Vorcaro tem uma trajetória peculiar, que mistura conexões religiosas, negócios de família, tentativas fracassadas de enriquecer e uma capacidade única de circular entre mundos que raramente se cruzam abertamente. Frequentava e se relacionava com igrejas influentes, prefeituras, incorporadoras, fundos de investimento, alto clero do Centrão, ex-ministros do STF, ex-ministros da Fazenda, governadores, grandes escritórios de advocacia, fundos de pensão e executivos da Faria Lima.

Daniel cresceu na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, graças a uma intervenção do avô, que tentava colocar o pai “nos trilhos”. Foi ali que ganhou um programa musical na Rede Super, comprada com apoio financeiro do pai. Quando ensaiou seu primeiro voo empresarial, um curso pré-vestibular e uma editora de livros didáticos financiados pela família, o negócio naufragou — embora ele próprio conte outra história. Quem conta essa história toda é a Consuelo Dieguez, na revista piauí.

Depois, veio a aposta imobiliária de Vorcaro: o hotel Golden Tulip, às vésperas da Copa de 2014, que consumiu mais de 200 milhões de reais e virou ruína por falta de dinheiro. O fracasso não impediu a próxima cartada: comprar o banco Máxima, já quebrado, oferecido por um sócio com quem fazia negócios. O Banco Central levou dois anos analisando o pedido. Em 2019, autorizou. Em 2021, o Máxima virou Master. O resto, a PF está recontando agora.
De um banco quebrado, Vorcaro produziu um símbolo de crescimento fulminante. Multiplicou o patrimônio líquido de 219 milhões para 5 bilhões de reais em cinco anos. Como? Com alavancagem no limite permitido, CDBs pagando até 130% do CDI, precatórios na carteira, investindo em empresas em dificuldade — Light, Ambipar, CVC, Oi, Gafisa — e vendendo tudo sob o slogan de que, se desse errado, “o FGC garante”. Só o Rioprevidência, feudo do União Brasil, comprou R$ 700 milhões. A Cedae, estatal de saneamento fluminense, mais R$ 200 milhões.

O FGC é o fundo garantidor de crédito, criado no governo FHC para que bancos tenham uma espécie de colchão de que se socorrer caso entrem em crise. O fundo garante a cobertura de até 250 mil reais para investidores nesses agentes financeiros. Não à toa, foi batizado de “emenda Master” o projeto de autoria do senador Ciro Nogueira, do PP, que previa o aumento da garantia do FGC de 250 mil para 1 milhão de reais por cliente.

Calma, eu vou explicar melhor. Se você viu Ciro Nogueira hoje nos trending topics do twitter é porque, além de ser autor desse projeto aí, ele também ajudou a barrar uma CPI para investigar o Banco Master. Foi Ciro também que botou Tarso Tassis, ex-assessor de Vorcaro, na diretoria da Caixa Econômica Federal. Tarso demitiu três gerentes da Caixa que barraram uma negociação com o Master da ordem de R$ 500 milhões. A Caixa, pra quem não sabe, é zona de influência de Arthur Lira, também do PP.

Conforme o Master cresceu, em valores e influência, Vorcaro foi contratando consultores de luxo, como o ex-ministro Guido Mantega e o atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. Entre os escritórios de advocacia que atuam para o Master está o de Viviane Moraes, mulher do ministro Alexandre de Moraes. O Master também ajuda a bancar o GilmarPalooza, do ministro Gilmar Mendes.

Sabe quando cai um favo de mel no chão e tudo que é abelhinha começa a circundar? É assim que gente com muito dinheiro opera em Brasília, atraindo muitos e muitos interesses e atores.
E, cá entre nós, quem é hoje a instituição brasileira com lastro suficiente pra mexer no vespeiro? Sim, ela, a Polícia Federal.

Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Fica aqui comigo pra gente falar um pouco mais do que tá rolando no Congresso hoje. E saiba que, além desse jornalismo gratuito que a gente faz no YouTube, a gente tem a assinatura premium que te dá acesso à Edição de Sábado, nossa newsletter com reportagens especiais, e ao Meio Político, a news com análises originais, que você só encontra aqui. Além disso, você pode acessar também o nosso streaming, com documentários exclusivos nossos — e já te dou um spoiler, tem um sensacional saindo do forno logo, logo. Assine o Meio, são só 15 reais por mês.

Gente, vamos falar a real: se a PF não tivesse puxado o fio do Master, quem puxaria? Quem, de fato, tem hoje no Brasil capacidade técnica e credibilidade pública para desmascarar um esquema que mistura colarinho branco, fundos públicos, bancos estaduais e tentativas políticas de interferência?

É por isso que o debate sobre o projeto de lei antifacção não pode ser separado do que aconteceu hoje. A versão relatada por Guilherme Derrite introduz dispositivos que têm o efeito, na prática, de enfraquecer a PF e a Receita Federal em investigações desse tipo. Dificulta a perda de bens de investigados ao exigir trânsito em julgado, algo que levaria anos ou décadas.
Em seus primeiros pareceres, Derrite retirava poderes históricos da Receita de reter mercadorias irregulares e criava uma ação civil lenta e burocrática.

Auditores, promotores e delegados disseram com todas as letras: esse texto favorecia o crime organizado. E não só o crime armado. Favorecia também o crime de mercado, o crime das importações fraudulentas, o crime das refinarias paralelas, o crime das operações com criptoativos, o crime dos bancos improvisados e dos fundos oportunistas. Favorecia quem lucra com opacidade estatal. Favorecia quem prospera quando a Receita e a PF ficam de mãos amarradas.

E aí vem o segundo movimento do dia: Andrei Rodrigues, o diretor-geral da PF, foi ao Senado explicar como o órgão opera e aproveitou pra falar da operação do Master. A Giullia Chechia estava lá, me contou o que viu. Andrei encontrou uma CPI do Crime Organizado vazia. E vazios são sempre muito reveladores. Especialmente na política. Especialmente numa CPI que tinha tudo pra fazer muito barulho.

A ironia é que a PF não é uma instituição recém-chegada ao combate ao crime sistêmico. Ela atravessa governos. Investigou a Petrobras, investigou empreiteiras, rastreou propinas, conduziu operações complexas da Lava Jato — com erros do Ministério Público que depois vieram à tona, mas com investigações técnicas que sustentaram parte importante do processo. Foi a PF que investigou Jair Bolsonaro no caso das joias sauditas, apreendeu peças, analisou fluxos, colheu depoimentos. Foi a PF que resistiu às tentativas de interferência política no governo Bolsonaro. E é a PF que, agora, sob Lula, segue atuando sem notícia de tentativas de blindar aliados, de trocar diretores para proteger investigados, ou de sabotar operações.

Não existem instituições perfeitas. Em todas, absolutamente todas, há quem aja de má ou de boa fé, com competência ou inépcia. Mas, em muitas métricas, a PF segue sendo relativamente competente num Brasil de muitas dificuldades para investigar e punir crimes complexos. Ela continua expondo esquemas, seguindo o dinheiro, conectando pontos, desfazendo negócios nebulosos, alcançando setores onde nenhuma outra instituição entra. É justamente porque ela se mantém ativa, técnica, autônoma e atravessando governos que incomoda quem prefere opacidade, confusão e imunidade tácita

E aí chegamos à pergunta final, inevitável, a pergunta que costura tudo: Quem se fortalece quando a PF fica mais fraca?

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