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Escândalos como os recentes de Toffoli, Alexandre e Gilmar obrigam Fachin a propor código de conduta

Cá entre nós: se existe um momento perfeito para discutir um código de ética para a cúpula do Judiciário brasileiro, esse momento é agora. Idealmente, teria acontecido no nascimento da Constituição de 1988, quem sabe. Mas agora, agorinha, quando o Supremo Tribunal Federal navega entre crises simultâneas de reputação, turbulência interna e ataques externos cada vez mais ousados e escancarados, essa é a hora de os ministros exibirem que estão dispostos ao auto-exame, à famigerada autocontenção.

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E é justamente por isso que a reação negativa de parte dos ministros ao gesto do ministro Edson Fachin, presidente da Corte, de propor a formulação de um código de conduta para os magistrados é reveladora: o Supremo continua tendo enorme dificuldade de olhar para si mesmo com o mesmo rigor com que olha para o resto da República.

Todos os poderes têm essa dificuldade. Aliás, parte fundamental da criação de três poderes é pra um servir de freio e contrapeso aos demais. Mas existem maneiras simbólicas e práticas de oferecer à sociedade respostas que venham de dentro do próprio Judiciário e que possam frear abusos do Legislativo sobre os magistrados, por exemplo. Se não fizer isso, o STF vai estar cada vez mais vulnerável a esses eventuais abusos.

Vamos aos fatos resumidos aqui.Nas últimas semanas, formou-se um mosaico desconfortável no entorno dos ministros. Não são fofocas ou conspirações. São fatos concretos, documentados, e que fazem parte da vida institucional do país.

No caso 1, revelado por Lauro Jardim, do Globo, Dias Toffoli, recém-sorteado relator do caso Banco Master, embarca para a final da Libertadores em Lima num jatinho pago por um empresário, ao lado de um advogado que defende um dos investigados na mesma operação. A alegação é que não conversaram sobre o processo. Pode até ser verdade, embora seja bem difícil de acreditar. Mas a ética republicana trabalha também com a aparência, não apenas com a intenção. Em Supremas Cortes amadurecidas, esse seria um afastamento automático, por precaução.No caso 2, vem o noticiado por Malu Gaspar, no Globo. Alexandre de Moraes não tem relação direta com o Master em sua função de magistrado, por enquanto. Mas o caso está no STF e deve ser levado ao colegiado em algum momento. E o escritório da mulher de Alexandre, Viviane, e seu filho, tinha um contrato de até R$ 129 milhões com o banco. Repito: R$ 3,6 milhões por mês. Um valor que sequer rivaliza com contratos de grandes bancas internacionais, os supera em muito.

Como esse tipo de vínculo não acende, de imediato, um alerta dentro da Corte? Qual o protocolo interno para evitar que ministros se vejam envolvidos em relações de escala tão assimétrica com entes que, inevitavelmente, acabam batendo às portas do Supremo? O protocolo não só não existe como o próprio Supremo decidiu, em 2023, que os juízes podem julgar casos em que escritórios de parentes até o terceiro grau atuam na Corte. Fachin, Luis Roberto Barroso, Cármem Lúcia e Rosa Weber foram contra. Gilmar, Alexandre, Cristiano Zanin, Nunes Marques, André Mendonça e Luiz Fux, a favor.

No caso 3, amarrando os dois anteriores como fio condutor de como as coisas funcionam no Supremo, vem o levantamento feito pelo Poder360 dos eventos recentes que foram patrocinados pelo Master e que tiveram participação de ministros do Supremo. O banco patrocinou, bancou ou custeou eventos internacionais em Nova York, Paris, Londres, Roma e Rio — jantares de gala, fóruns de alto padrão, hotelaria de luxo — todos com a participação da cúpula do STF. É o desenho de uma aproximação incestuosa e consistente. É uma estratégia de soft power que funciona porque encontra no Supremo um ambiente permissivo, sem regras claras.

Mas esse enredamento dos ministros com o Master não é excepcional. O noticiário está repleto de episódios em que os limites mínimos do republicanismo que se espera de um magistrado foram desafiados e ultrapassados. Um dos mais notórios reincidentes é o decano Gilmar Mendes, o patrocinador da canetada que busca blindar ministros do Supremo de pedidos de impeachment. A coisa é tão despudorada que o próprio Gilmar já adotou o apelido dado pela imprensa ao seu fórum empresarial em Lisboa, referindo-se ao evento como Gilmarpaloozza. Foi numa edição dessas, inclusive, que Alexandre de Moraes disse que o Supremo não precisa de um código de ética, que ele já seria a Constituição.Pois Gilmar ainda teve revelado, neste ano, o caso com a CBF.

Aqui, o enredo é ainda mais pedagógico sobre a necessidade de regras. O IDP — instituição fundada por ele e dirigida por seu filho — fecha um contrato milionário com a CBF para administrar cursos da CBF Academy. Meses depois, a entidade atravessa uma crise jurídica e o caso cai, por sorteio, para Gilmar, que decide reiteradamente a favor da presidência da confederação. Não vou discutir aqui nem a qualidade das decisões. O ponto é outro: não existe decisão justa que sobreviva à suspeita de um conflito de interesses estruturado.

E quando um magistrado fica famoso tanto por suas decisões quanto pelos convescotes com representantes de grandes empresas, que têm interesses naquela jurisdição, ou por jantares fora da agenda pública com políticos de alto calibre, fica bem mais difícil defender a eventual tecnicalidade de seu trabalho. E agora? O que o Supremo vai oferecer de resposta ao Brasil?Gente, e agora? O mesmo Supremo do Toffoli, do Alexandre, do Gilmar, a despeito dos jatinhos, dos contratos e das palestras, precisa decidir habeas corpus, medidas cautelares, recursos e absolvição ou condenação do banqueiro que patrocinou sua agenda internacional, o trabalho de seus parentes, etc. Não há democracia saudável que aguente esse tipo de ambiguidade.É nesse contexto que surge a proposta de Fachin de discutir um código de conduta para os ministros. Nada extraordinário, né? Reino Unido, Canadá, Alemanha, União Europeia e dezenas de cortes constitucionais já têm códigos assim há décadas. Eles regulam viagens, presentes, honorários, palestras, posições remuneradas, atuação de familiares, impedimentos automáticos e até a vida pós-mandato. Nos Estados Unidos, só chegou em 2023, depois justamente de uma série de escândalos envolvendo esse tipo de coisa.

Mas, em vez de reconhecer que a conversa chega tarde, parte dos ministros reagiu como se Fachin tivesse cometido um insulto pessoal. Reportagem da Daniela Lima, no UOL, atribui a quatro colegas de Fachin falas sobre o “timing ruim”, “a insensibilidade” do ministro. Um deles falou até que “não é papel do presidente” fazer isso. Ora, antes os ministros resistiam a controles externos. Agora, nem o presidente da Corte pode propor essa agenda?

É curioso como o STF, no momento em que enfrenta a tentativa de setores do Congresso de transformar divergência jurídica em crime de responsabilidade, não percebe a oportunidade de ouro que tem nas mãos. Se pedidos de impeachment não devem virar arma política — e não devem mesmo —, então os ministros precisam ajudar a reduzir as zonas cinzentas que tornam o terreno tão propício para esse tipo de retórica.

Porque é isso que está em jogo: a credibilidade dos guardiões da Constituição.Os ministros do Supremo foram alvos de uma máquina profissional de deslegitimação construída pelo bolsonarismo. Foram chamados de tudo: tiranos, bandidos, corruptos, conspiradores. E enfrentaram isso de pé — e, convém dizer, tiveram um papel decisivo na contenção do golpismo.

Mas coragem institucional não pode valer só quando o inimigo está lá fora, armado de fake news. Coragem institucional também precisa valer quando o desconforto está dentro de casa — quando o problema são práticas que fragilizam a própria Corte.

Não adianta achar que a sociedade vai ignorar essas contradições. Nenhum ministro que se julgue defensor da democracia pode achar razoável:– viajar em jatinhos de empresários com advogados de investigados;– participar de jantares pagos por banqueiros que viram réus;– manter instituições familiares com contratos milionários com litigantes da Corte;– permitir que parentes advoguem em temas sensíveis;– dar entrevistas frequentes sobre política, economia, segurança pública e eleições;– e acumular palestras remuneradas com empresas que têm disputas no tribunal.

Não se trata de demonizar ninguém. Trata-se de reconhecer que nenhuma instituição sobrevive só de boa-fé. A boa-fé é essencial, mas os freios institucionais também são.O argumento, no fundo, é simples:Se o Supremo quer ser visto como guardião da Constituição, ele precisa ser vigilante de si mesmo.Se quer blindar a instituição contra o uso político do impeachment, precisa blindar sua reputação contra autogolpes éticos.Se quer preservar o respeito do país, precisa respeitar a inteligência do país.

Sejamos francos, se o Supremo tivesse sido mais comedido nos últimos anos — menos jatinhos, menos jantares, menos contratos nebulosos, menos palestras, menos entrevistas — talvez fosse mais difícil para o bolsonarismo convencer milhões de brasileiros de que o Judiciário é um castelo de privilégios, uma confraria impenetrável que atua contra uma parte mais frágil da sociedade.A defesa da democracia não termina quando o golpismo fracassa. Ela continua nos detalhes — nos protocolos, nos limites, nas regras que dizem ao país que o poder é exercido com responsabilidade.

O timing perfeito para um código de ética não é depois que a poeira baixar. É agora.

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