Dosimetria, Glauber e Chico
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É incrível, 10 de dezembro e o Brasil não para. Gilmar Mendes suspendeu parcialmente sua decisão de mudar a lei do impeachment para o Supremo. Hugo Motta arrancou com violência Glauber Braga, um deputado federal, do plenário da Câmara. E a Casa aprovou, mandando para o Senado, a Lei da Dosimetria. Se aprovar, se virar lei, diminui a pena de Bolsonaro e dos generais.
Mas, no meio desse imbróglio todo, está acontecendo nas redes sociais aquelas coisas que acontecem nas redes sociais. O filósofo Francisco Bosco está sendo cancelado por conta de uma entrevista que deu às páginas amarelas da revista Veja. Cancelamentos de esquerda são sempre assim, contra progressistas. Nunca são contra gente conservadora.
O que uma coisa tem a ver com a outra? Tudo. Como? Tudo. Porque, por trás dessas histórias todas, está o mesmo fenômeno que reúne as duas colunas que sustentam uma democracia liberal. Uma é a ideia de que todos somos iguais enquanto humanos, enquanto cidadãos. A outra, diálogo. A partir da nossa igualdade, precisamos ser capazes de conversar um com o outro. Nós coletivamente abandonamos os dois princípios. Essencialmente não acreditamos mais em nenhum deles. Esta é a crise da democracia brasileira, da democracia americana. Mas vamos quebrar essas questões aqui. Uma por uma.
De longe, o acontecimento mais importante são as duas coisas que aconteceram na Câmara dos Deputados. A aprovação da Lei da Dosimetria e o tratamento do deputado Glauber Braga.
Por que Glauber Braga está sendo cassado? Porque ele expulsou um cidadão brasileiro do prédio da Câmara dos Deputados a pontapés. O que este cidadão fez? Bem, sabe como é. Militante do MBL. E a turma do MBL é isso mesmo, o que eles fazem é testar ali os limites das pessoas. Irritam, irritam, irritam e, quando conseguem uma explosão, faturam. Vira um vídeo, viraliza.
O problema é o seguinte: ser parlamentar não é ser um cidadão comum. É se apresentar à sociedade como candidato a representá-la. Parlamentar tem de ter sangue de barata. Tem de ouvir desaforo de qualquer brasileiro. É o trabalho. Porque o trabalho é ouvir para representar. Você não representa se não ouve. E tem gente irritante, tem gente que torra o saco, tem gente que não para de falar, tem gente que pede favor, tem gente que ofende até a quinta geração. É o trabalho. Não quer fazer, não se proponha como representante do povo.
E não se expulsa cidadão da Casa do Povo. É o que o Congresso é. Não se expulsa, muito menos com violência.
Pois bem, em protesto porque iam votar a cassação, o que fez Glauber Braga? Aboletou-se na cadeira de presidente da Câmara para bloquear qualquer sessão. Fazendo o quê? Cortando a possibilidade de diálogo. Bloqueando a possibilidade de o Parlamento funcionar. Parlamento. O lugar onde se fala. É isso que a palavra quer dizer.
Me acompanharam até aí? Bem, Eduardo Bolsonaro é tão deputado federal quanto Glauber Braga. Não é mais, não é menos. O voto de um, no plenário, vale a mesma coisa que o voto do outro. O filho Zero Três do ex-presidente foi para os Estados Unidos fazer lobby contra o Brasil. Em que mundo não se abriu um processo de cassação contra ele mas se abre um contra Glauber? Um agride um brasileiro e sofre todo o peso da lei. O outro agride a soberania nacional e a Câmara, nada.
Eduardo Bolsonaro vai perder o mandato. Por excesso de faltas. Ou seja, perde o mandato mas não os direitos políticos. Glauber perderá o mandato e os direitos políticos por oito anos. Este é evidentemente um caso de dois pesos, duas medidas. Dois brasileiros tratados com regras diferentes. Contra um, todo o peso, todo o rigor, da regra. Contra outro, tapinha de luva de pelica.
Não é só, né? Aí, vamos lá, neste mesmo ano deputados bolsonaristas também tomaram a mesa diretora da Câmara. Hugo Motta, o presidente da Casa, por acaso botou a polícia legislativa para dar um mata cavalo nos parlamentares do PL e do Novo? Não. Sabe aquela coisa que a gente costuma falar, com uns, tigrão, com outros, tchutchuca? Mas, de novo, o problema essencial é esse. Hoje, na Câmara dos Deputados, a minoria é tratada com regras diferentes das que são aplicadas à maioria.
Isto é profundamente antidemocrático. Profundamente. E tem o Gilmar, e tem a dosimetria, e tem o Chico Bosco. Vem comigo. Vamos continuar nessa conversa.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
A gente tá aqui falando de diálogo, de direitos iguais, e pode parecer só mais um dia num noticiário de conchavos, impunidade e escândalos. É normal bater o cansaço. A corrupção ficou mais explícita e, com mais acesso à informação, de perto ninguém fica bem. Mas na democracia, essas notícias chegam até você, tá? E faz parte debater, seguir pressionando e votando de forma consciente. A cobertura das Eleições 2026 já começou aqui no Meio. Pesquisa, artigos de opinião e bastidores de Brasília chegam na sua mão toda semana por apenas 15 reais. Ainda não assina o Meio Premium? Essa é a hora.
E este aqui? Este é mais um Ponto de Partida.
O que é que Gilmar Mendes está propondo, essencialmente? Que ministros do Supremo precisam de um tratamento diferente do presidente da República. Que tem de ser mais difícil tirar um ministro do Supremo do que quem está na presidência. Para para pensar nisso. Mesmo. Veja, construir argumento, a gente consegue construir qualquer argumento para justificar que um é mais importante, que o outro também. Mas, se você se envereda por este caminho, está dizendo que um Poder é mais importante que o outro. Que não são parelhos. É assim nossa democracia? Não estou sugerindo que essa seja uma conversa que não se deve ter. Só que não é uma conversa menor. É uma conversa muito profunda. Não é algo que se impõe com uma canetada.
O que é a crise entre o Legislativo e o Judiciário, entre o Congresso e o Supremo? É um poder dando truco em cima do outro. Eu tomo uma decisão para te neutralizar, você toma uma para rebater, e vai escalando. A relação institucional entre os dois poderes é uma de um se impor sobre o outro. Ambos abriram mão, simultaneamente, de que ideias? Ora, do diálogo. E da ideia de igualdade, de paridade. Política serve para evitar a guerra, gente. É um clichezão. E é verdade.
Quando a gente chega na Lei da Dosimetria, novamente. O que Jair Bolsonaro e os generais tentaram fazer é a coisa mais grave que pode-se fazer numa democracia. Acabar com ela. Isso quer dizer que não podemos ter uma conversa pública sobre que tipo de pena é adequada para um golpista? É claro que podemos. Devemos, até. Essa madrugada, a maioria dos deputados que votaram no texto não sabiam em que estavam votando. Jair Bolsonaro, dentro da cadeia, foi apresentado a este texto. Um prisioneiro do Estado. Um homem condenado. Ele aprovou a negociação. Alguém no Supremo sabia? Alguém no Planalto? Eu ou você, nós cidadãos brasileiros que ele tentou lesar? De quem tentou nos roubar a liberdade de escolher quem manda na República? Não. Não houve qualquer diálogo.
Diálogo, gente. Estamos fazendo as coisas sem conversar. Estamos abandonando a conversa. Estamos impondo, não estamos negociando.
E o Chico está sendo cancelado por quê? A questão com identitarismo é sempre a mesma. Qual é a diferença entre o feminismo de Simone de Beuvoir ou a luta antirracista de Martin Luther King ou a briga pelos direitos homoafetivos de Harvey Milk e o feminismo, o movimento negro e o LGBTQIA+ dominante de hoje? A diferença é que o que estes movimentos sempre cobraram foi igualdade. Foi que o tratamento dado a um, os direitos garantidos a um, têm de ser os de todos. Por quê? Porque somos humanos, somos cidadãos, não podemos ser tratados com distinção. E este é, fundamentalmente, o argumento mais defensável que há.
A gente perdeu a noção do tamanho da vitória que foi essa ideia da universalidade de direitos. De como foi barbaramente difícil a briga para avançar tanto quanto avançamos. O mundo era um em que católicos e protestantes se matavam nas ruas. Em que guildas distintas, gente que tinha em comum o fato de ter uma profissão ou outra, tinham tantas distinções nas suas possibilidades que as possibilidades de crescimento na vida eram profundamente diferentes. E aqui não estou nem falando de escravidão, de lugar de homem e de mulher, de nada disso.
Essas duas ideias imensas, a da universalidade dos direitos e a do diálogo, foram revolucionárias. Porque, numa sociedade que é construída para a persuasão ser possível, e nesta sociedade que podemos ser tratados todos com dignidade. Porque, veja, fora da persuasão só existe a força. Uma sociedade em que o minoritário, o mais fraco, têm espaço, é uma sociedade em que não é a força da maioria ou do mais forte que conta. A única ferramenta é a persuasão. Esta é a natureza essencial de uma democracia liberal. Se avançamos tanto, até hoje, é porque esta mecânica funciona.
Olha, o Chico é meu amigo e não quero fingir, aqui, que não é. Mas já estive no lugar em que ele está hoje e já falei de pessoas que não conheço em posição similar. Não quero entrar no mérito do que ele pensa, porque na verdade não importa nessa nossa conversa. O que importa é que a reação a ele é a seguinte: você é homem, então cala a boca e se submete. Quando ele se vira e diz, “olha, estou estudando esse assunto há mais de uma década”, a reação é “não importa o que você estudou, você é homem então cala a boca e se submete”. Não queremos discutir suas ideias. São ideias de homem. Não queremos ouvir seus argumentos nem explicar por que não gostamos deles. Você é homem. O que estão dizendo? Quer ser mulher dá a alguém uma carta de Super Trunfo que homem não pode ter. Truco. Ser gay, ser negro. É abrir mão da ideia universal e do diálogo.
O incrível é o seguinte. O Brasil é um país que mata mulheres por misoginia. Mata gays por homofobia. Mata negros muito mais do que mata brancos. Principalmente rapazes negros. Pois é, ser homem e jovem e pobre, no Brasil, te põe em altíssimo risco mas, às vezes, a gente não consegue falar da necessidade de termos uma política específica para eles. A gente tem problemas imensos que dependem, essencialmente, de persuasão. Porque nada vai mudar se a gente não convencer as pessoas de que mudança é necessária. Quem sofre com cancelamento não é a turma que precisa mudar. Quem sofre com cancelamento é quem concorda que a mudança é necessária e tenta argumentar que esse jeito de brigar pela causa não vai construir a mudança que precisa haver.
Isto é um desastre. O problema não são as feministas, o movimento negro ou o LGBTQIA+. O problema é todo esse pessoal ter decidido que não precisa mais convencer ninguém. Basta atacar os aliados e se impor. Isso, num país cada vez mais conservador, cada vez mais desconfiado de progressistas.
Nós coletivamente abrimos mão da ideia de que somos todos iguais. Nos tribalizamos, voltamos à época das guildas. Abrimos mão do diálogo. É claro que a democracia está em crise. Não acreditamos mais naquilo que a sustenta.


