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Zezé di Camargo, Lula e o SBT: a diferença entre a pessoa e o cargo

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Você está acompanhando a polêmica do Zezé di Camargo com o SBT?Vou fazer um breve resumo aqui pra gente debater o que está por trás disso e realmente importa.O SBT lançou um novo canal de notícias, o SBT News, e convidou o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, para o evento. Até aí, nada de extraordinário. Um gesto institucional comum, que passa despercebido em democracias saudáveis.

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Pouco depois, o cantor Zezé Di Camargo publicou um vídeo, de madrugada, num tom confessional, dizendo que não poderia aceitar que seu especial de Natal É o Amor fosse exibido pela emissora, porque, ao receber Lula, o SBT estaria indo na contramão de “grande parte dos brasileiros”.Zezé não cita nominalmente o presidente Lula, mas fica claro que é disso que ele está falando. O cantor acusa as filhas de Silvio Santos, que agora comandam o canal, de estarem indo contra as posições do pai. E, numa grosseria machista sem tamanho, diz que elas estão se prostituindo.Obviamente, isso viralizou. E de repente, não era mais apenas sobre o lançamento de um canal de notícias ou sobre a exibição de um especial natalino. A discussão passou a girar em torno de quem representa o Brasil legítimo.

O episódio revela algo ainda mais profundo sobre o Brasil de hoje: a dificuldade crescente de distinguir pessoas de instituições e de compreender por que essa distinção é central para qualquer democracia que pretenda funcionar de maneira estável.Essa dificuldade atravessa tanto a opinião pública quanto os atores institucionais, é importante frisar. Tem autoridade que se confunde com o cargo e age somente em benefício próprio. Elas devem ser duramente cobradas por isso.

Mas convidar o presidente da República para um evento institucional, e isso vale para qualquer grande empresa, não é um gesto de adesão ideológica, um endosso político, nem uma declaração editorial. É o reconhecimento de um cargo, de uma função constitucional e de um papel central na arquitetura do Estado e da política.Em democracias consolidadas, chefes de Poder circulam em ambientes públicos, inclusive promovidos por veículos de imprensa, não porque sejam unanimidades, mas porque representam instituições que precisam continuar funcionando independentemente de quem ocupa temporariamente seus postos.

Esse protocolo só se rompe quando a pessoa que ocupa aquele cargo está tentando, justamente, subverter essa lógica, com atitudes golpistas, por exemplo.Mas em situações de normalidade democrática, que é a que estamos vivendo, a duras penas, o que vale é o peso institucional da autoridade, não seu CPF, sua ideologia.É aqui que cabe uma ponderação importante, pra gente não falsear o debate. Artistas têm, sim, o direito de se posicionar politicamente. Há até quem defenda que eles tenham o dever de se posicionar. Artistas à esquerda fazem isso com frequência, inclusive se recusando a participar de eventos ou espaços em que figuras da direita estejam presentes. Ou convidando parte de seu público a se retirar da plateia, como fez o Ira num show. Isso faz parte da liberdade de expressão e não é, em si, um problema democrático. O ponto não é criminalizar Zezé Di Camargo por se posicionar politicamente.

O que estou te convidando a debater, neste caso específico, é outra coisa: é a percepção que as pessoas têm do valor das instituições como base da democracia e a capacidade de reconhecer contextos distintos.

Cá entre nós, há uma diferença substantiva entre recusar um evento por discordância política e mandar tirar um material do ar por conta de um evento outro, de caráter institucional, plural, que não foi concebido como homenagem a uma pessoa ou a um governo. Traduzindo: o lançamento do SBT News não era um evento do Lula, nem para o Lula, sequer era sobre o Lula. O presidente era um convidado, assim como outras autoridades de campos políticos diversos, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o prefeito da capital, Ricardo Nunes. Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, também estava lá. Sabe quem mais? Fabio Faria, ex-ministro de Jair Bolsonaro, genro de Silvio Santos e executivo responsável pela emissora. Lula não era a estrela da noite, nem o centro simbólico do evento.

Quando Zezé di Camargo condiciona sua presença artística no SBT dizendo que a presença de Lula contraria “grande parte dos brasileiros” — inclusive da maioria eleitoral que escolheu o atual presidente —, ele acaba reforçando a lógica mais corrosiva da radicalização: a ideia de que o Brasil pertence apenas a quem pensa igual. Que cultura, arte e espaço público são recompensas reservadas a um grupo, não bens compartilhados por uma sociedade plural.

E sabe quem foge disso com tranquilidade? Os políticos profissionais. Porque o outro vídeo do mesmo evento que enlouqueceu a base radicalizada da direita foi um em que Lula, Tarcísio de Freitas, e o prefeito da capital, Ricardo Nunes, conversavam descontraidamente sobre o apagão e a Enel.

Os três ali entendem que, antes de serem adversários políticos e ideológicos, eles ocupam posições institucionais que exigem deles a relação cordial e cooperativa um com o outro.Vamos falar mais desses dois vídeos e do que é possível aprender com eles? Então, segue aqui comigo.

Vamos voltar ao Zezé di Camargo e seu vídeo. E eu quero reforçar aqui que meu convite à reflexão é sobre papeis institucionais e como eles são importantes pra uma democracia funcionar.Zezé comete um erro factual importante ao denunciar uma suposta virada das herdeiras de Silvio Santos, que teriam traído a ideologia do pai. A lógica institucional nunca foi estranha à própria história do SBT e de seu fundador.

Silvio Santos era, sem dúvida, um dono de emissora conservador. No início dos anos 1980, ainda sob a ditadura militar, ele criou e exibiu o quadro A Semana do Presidente, que divulgava atos do governo e ajudava a normalizar o regime autoritário na televisão aberta.Ao mesmo tempo, Silvio nunca foi um ideólogo rígido nem um militante de trincheira – mesmo tendo ele próprio sido um presidenciável. Ou talvez por isso. Ao longo da redemocratização, operou de forma muito pragmática — quase como um “Centrão” das comunicações — preservando canais abertos com diferentes governos, aproximando-se de presidentes de campos diversos, inclusive de Lula, e entendendo algo elementar para quem trabalha com concessão pública: governos passam, cargos permanecem, e relações institucionais precisam ser mantidas em nome da sobrevivência da emissora e da comunicação com seu público.

É nesse pano de fundo que o vídeo de Zezé Di Camargo precisa ser analisado. O problema não está em sua posição política, nem em sua identidade com o Brasil do agronegócio, que majoritariamente rejeita Lula. Isso é legítimo, faz parte de sua trajetória e de seu lugar social.O ponto sensível está em outro lugar: ao afirmar que não pode aceitar a exibição de seu especial porque o SBT teria ido contra “grande parte dos brasileiros” ao receber, institucionalmente, o presidente da República, Zezé reforça um critério de exclusão, de divisão.

Porque a pergunta que se impõe é inevitável: e a outra parte? Os brasileiros que votaram em Lula, que o elegeram presidente da República com a maioria — ainda que apertada — dos votos válidos, e que gostem de sua música ou da arte de seus convidados, eles não são dignos de seu especial?Essa lógica não se restringe à cultura. Ela é a mesma que, nos últimos anos, ajudou a corroer a confiança nas instituições. Supremo Tribunal Federal, imprensa profissional, universidades, sistema eleitoral — tudo passou a ser tratado como inimigo quando não confirmava uma identidade política específica. O resultado é um país em permanente estado de guerra ideológica, incapaz de produzir consensos mínimos para lidar com problemas reais.

Democracia não é ausência de conflito. Ela nasce da divergência. Mas pressupõe que esse conflito seja administrado por meio de instituições e canais de diálogo.Durante muito tempo, o Brasil foi convencido de que dialogar era fraqueza e que reconhecer a legitimidade do outro equivalia a trair princípios. Essa mentalidade transformou a política num ambiente em que qualquer gesto institucional é lido como capitulação. O bolsonarismo está numa fase moribunda. É hora de superarmos essa mentalidade também, seremos cobrados disso em 2026. Até Flávio Bolsonaro já anda falando de ser um “Bolsonaro diferente”, argumentando que sabe dialogar com outros setores, que é menos radical que o pai.

Instituições importam justamente porque criam regras estáveis, previsibilidade e limites ao poder. Reduzem a dependência de vontades pessoais, permitem que governos mudem sem que o Estado precise ser reinventado a cada eleição e oferecem canais para que conflitos sejam processados sem ruptura.A reconstrução da política brasileira passa, necessariamente, por um reaprendizado coletivo, que deve incluir as próprias autoridades: distinguir cargo de pessoa e relembrar que diálogo entre adversários é possível e é condição prática da democracia. 

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