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Quer destruir um filme? Chame um executivo de Hollywood

Ao saber da “morte” de Julieta, o desesperado Romeu consegue um frasco de veneno para se unir a ela e tenta retornar a Verona, de onde fora banido pela morte de Teobaldo. Mas é capturado pelos soldados do príncipe Escalo e vai ser executado na manhã seguinte, diante de toda a cidade. Quando o carrasco já levantava o machado, Frei Lourenço surge trazendo pela mão a falecida, que, como sabíamos estava apenas sedada. Estupefata, a população ouve então a história de amor dos dois. É tão comovente que o príncipe anistia Romeu, e os Senhores Montecchio e Capuleto abençoam a união de seus filhos e selam a paz entre as famílias. Parece ridículo? Claro, mas possivelmente seria o final da história se William Shakespeare tivesse de submetê-la aos executivos de um estúdio de Hollywood.

Desde a década de 1910 até o fim dos anos 1960, o cinema dos Estados Unidos foi moldado pela cultura dos grandes estúdios. Ao contrário da maioria dos países, o protagonista não era o diretor, mas o produtor, e o estúdio tinha a palavra final. Poucos eram os cineastas com vontade forte e renome para impor sua visão artística, ainda mais sob a rígida vigência do Código Hays, a censura autoimposta por Hollywood. Mesmo após a geração autoral do início dos anos 70 – Francis Ford Coppola, Stephen Spielberg, Martin Scorcese e companhia – dar maior poder de fogo aos diretores, os executivos continuam tendo uma grande ingerência sobre o que se vê na tela, e raramente com bons resultados.

O tema voltou à baila no último fim de semana com a divulgação de mais um trailer da versão do diretor Zack Snyder para Liga da Justiça (Youtube), que estreará no próximo dia 18 em streaming na HBO Max. Ao assumir a direção do filme, em 2014, Snyder pretendia fazer dois longas, embora não necessariamente em sequência. Porém, em 2016, a má recepção da crítica a Batman vs. Superman, também de Snyder, fez com que a Warner tolhesse cada vez mais o poder do diretor. Ao término das filmagens, Autumn, filha do cineasta morreu, fazendo com que ele se afastasse da pós-produção, substituído por Joss Wedhon, que já havia “simplificado” o roteiro. Sob orientação do estúdio, Wedhon cortou a maior parte do que Snyder planejara, refilmou 20% das cenas usadas e entregou em 2017 um imenso fracasso de público e crítica, que custou à Warner um prejuízo de US$ 60 milhões. Batman vs. Superman ao menos tinha dado lucro.

A mutilação feita por Wedhon foi tão grande que o ator Ciarán Hinds, que deu voz ao vilão Steppenwolf, disse, após a estreia, não reconhecer na tela o filme de que havia participado. Isso, a reclamação de atores cuja participação havia sido limada e os comentários do próprio Snyder deram início a um movimento para que o diretor tivesse a chance de fazer o filme como ele deveria ter sido. Finalmente, no início do ano passado, a Warner deu sinal verde, e Snyder assumiu a nova pós-produção, além de filmar poucas cenas adicionais em outubro. Inicialmente uma minissérie em quatro episódios, a versão do diretor será um “muito longa” metragem de quatro horas. Será bom? Só vendo, mas será o que deveria ser.

Liga da Justiça é o caso mais recente de interferência danosa do estúdio, mas não é o mais famoso. Em 1982, o diretor Riddley Scott entregou à Ladd Company, pertencente à Warner, aliás, Blade Runner, uma sombria e visualmente espetacular adaptação muito livre da ficção científica Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick. Entrou em cena então a famigerada “plateia de teste”, um grupo de pessoas comuns selecionadas pelo estúdio para assistir e opinar. Detestaram. Acharam sombrio, para baixo, deprimente – exatamente como Scott pretendia – e confuso. A Warner impôs várias mudanças, incluindo uma narração, que o astro Harrison Ford gravou com extrema má vontade, como se constata no trailer original (Youtube), e um final feliz que destoava de toda a narrativa. Um imenso fracasso de bilheteria. Em 1992, Scott lançou uma versão, ainda sob a supervisão da Warner, sem os dois adendos, mas somente 2007 conseguiu mostrar ao público seu “corte final”, hoje considerado um clássico.

Scott voltaria a ser vítima dos estúdios em Cruzada (2005) (trailer no Youtube), do qual a Fox cortou 45 minutos, deixando pontas soltas em diversos pontos do roteiro e privando personagens de sentido. O filme foi bem na Europa e nos países árabes, mas fracassou nos EUA e no Canadá, além de dividir os críticos. Mas desta vez a espera não foi longa. No fim daquele mesmo ano Scott apresentou sua concepção. Segundo um crítico, que escrevera negativamente sobre a primeira versão, “os 45 minutos reinseridos são a peça que dá sentido ao quebra-cabeças.

Nem mesmo lendas do cinema estão imunes a esse tipo de ação. O italiano Sergio Leone (1929-1989), um dos mais influentes cineastas da segunda metade do século XX, viu o que deveria ser sua opus magna, Era Uma Vez Na América (1984) (trailer no Youtube), ser destruída pelo distribuidor dos EUA – aliás, da Warner. Leone dedicou mais de uma década a escrever e filmar a grande epopeia sobre a ascensão da Máfia (judia, não italiana) em Nova York ao longo de 40 anos. A concepção do diretor era de dois filmes de três horas de duração, mas, após negociação com os produtores italianos e americanos, aceitou contar sua história em um longa de 3 horas e 49 minutos, mantendo a narrativa não linear. Essa foi a versão exibida na Europa. Nos EUA, mesma Ladd Company reeditou o filme sem conhecimento de Leone, reduzindo-o a 2 horas e 19 minutos e montando-o em ordem cronológica. Desnecessário dizer, mais um fracasso de bilheteria e uma saraivada de críticas negativas que o mestre italiano não merecia. Hoje a versão europeia é a única oficial, reconhecida como um clássico digno de Leone.

Como foi dito acima, um dos grandes males de Hollywood é a plateia de teste. Quem sentiu isso na pele foi o diretor Tony Scott, irmão mais novo de Riddley. Em 1983 ele dirigiu Fome de Viver (trailer no Youtube), uma adaptação simplificada mas razoavelmente fiel ao livro homônimo de Whitley Strieber. Estiloso e erótico, o filme era estrelado por uma trinca irrepreensível: a deusa Catherine Deneuve, David Bowie e Susan Sarandon. Aqui, spoilers são inevitáveis. Deneuve é Miriam, uma vampira (embora o termo não seja usado nem no livro nem no filme) que coleciona amantes ao longo dos séculos, dando-lhes a vida eterna, mas não a juventude eterna. Quando finalmente, e questão de dias, a velhice e a putrefação os alcançam, ela os guarda, conscientes, em caixões. Bowie é John, o amante envelhecido da vez, e Sarandon é Sarah, a escolhida para sucedê-lo. Mas ela não aceita o dom recebido e tenta se matar. A narrativa termina com Sarah em um dos caixões, e Míriam seguindo seu ciclo eterno.

A plateia de teste simplesmente odiou a “vilã” não ser punida no final. Ato contínuo, a Metro, o estúdio responsável pela produção, fez Scott virar o filme em 180 graus e deixar Míriam encaixotada, com Sarah sendo a nova imortal. Pesou também a ideia de fazer uma continuação estrelada por Sarandon, uma estrela em ascensão. Pena que, como de hábito, o resultado tenha sido um fracasso. Os críticos que não conheciam o livro odiaram o filme; os que conheciam, odiaram o final. De bom, restou a cena de abertura ao som de Bauhaus (Youtube NSFW).

A lista é praticamente infinita: Eu Sou A Lenda, A Bússola de Ouro, Robocop de José Padilha e até o clássico Cleópatra, além de tantos outros. Claro, não existe cinema sem estúdios e produtores, mas será que é tão difícil aceitar que cineastas sabem o que estão fazendo e que a visão deles é mais importante que a opinião de meia dúzia de pessoas comuns numa plateia de teste?

Por Leonardo Pimentel

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