Um Chile dividido vai às urnas
Amanhã o Chile vai às urnas sem saber muito bem o que esperar. Já se vão mais de três décadas desde o fim da ditadura militar do general Augusto Pinochet (1915-2006), uma das mais sangrentas do continente e que deixou suas marcas profundas sobre a democracia que a substituiu. Apesar de sucessivas reformas e emendas, só agora a Constituição imposta pelo regime em 1980 está para ser deixada de lado – e a que vai substitui-la também é uma incógnita. Farol do neoliberalismo no continente, o país conjuga o mais alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da América do Sul – 0,851, 43º no mundo – e uma profunda desigualdade social, o que fez explodir revoltas em 2019.
E é nesse cenário que vão se defrontar o deputado e ex-líder estudantil Gabriel Boric, de 35 anos, da coalizão de esquerda Apruebo Dignidad (Aprovo a Dignidade), e o empresário e ex-deputado de extrema-direita José Antonio Kast, de 55 anos, da Frente Social Cristiana (Frente Social Cristã). Quem vai ganhar? Impossível dizer. Uma pesquisa da Atlas Intel concluída na quinta-feira mostra os dois empatados com 50% dos votos válidos. Kast, que venceu o primeiro turno por 27,91%, contra 25,83% de Boric, largou na frente nas pesquisas, foi ultrapassado pelo adversário, mas, como indica a Atlas, recuperou terreno. E há um agravante na imprevisibilidade: o voto no Chile é facultativo, de forma que o comparecimento às urnas será o fator decisivo. Ganha quem conseguir mobilizar mais a sua base.
Fim de um ciclo na esquerda
Pelo lado da esquerda, embora Boric não seja neófito na política, esse segundo turno representa uma renovação no Chile. Pela primeira vez desde 1989, a Concertación de Partidos por La Democracia (Coalizão de Partidos Pela Democracia), de centro-esquerda, alicerce da redemocratização chilena, não está na reta final da disputa. O grupo foi montado em 1988 na campanha pelo plebiscito convocado pela ditadura para que Pinochet ficasse no poder até 1997, o que foi rejeitado por 54,71% dos eleitores.
Desde 2006, apenas duas pessoas usaram a faixa presidencial, Michelle Bachelet, da Concertación (2006-2010 e 2014-2018) e o atual presidente, o independente de centro-direita Sebastián Piñera, que já havia governado o país entre 2010 e 2014.
“A ascensão de Boric mostra um esgotamento do modelo da Concertación, o que não quer dizer que ela não tenha sito extremamente positiva”, diz historiador Alberto Aggio, professor na Unesp/Franca e autor de Democracia e Socialismo: A Experiência Chilena (Amazon). “A questão é que a Concertación atuou o tempo todo com um programa mínimo, um medo muito forte da reação militar.”
Aggio lembra que, após a derrota apertada em 1988, Pinochet promoveu uma reforma constitucional para a transição democrática, com a legalização dos partidos, exceto os claramente marxistas, e, ao mesmo tempo, legitimando o modelo econômico imposto pela ditadura. Com oposição apenas do Partido Socialista e do Partido do Sul, a reforma foi aprovada em plebiscito com 91,25% dos votos. “Pinochet amarrou a transição”, diz o historiador.
Ao longo dos anos 1990 e 2000, a Concertación fez várias reformas políticas na Constituição, eliminando a figura dos senadores vitalícios e legalizando o PC chileno, por exemplo, mas basicamente manteve a política econômica, inserindo o país na globalização e mantendo a privatização generalizada. Cientistas políticos chilenos chegam a falar na “democratização pelo mercado”, com a sensação de liberdade associada ao poder de consumir, inclusive nas áreas periféricas. Porém, a oposição à Concertación fora da direita veio de setores da sociedade que passaram a ser pressionados pela falta de acesso à saúde, dívidas de crédito estudantil etc.
“Boric surge nos movimentos estudantis de 2010, ou seja, de uma classe média que ascendeu socialmente, mas tinha outras demandas”, diz Aggio. “São os movimentos sociais autônomos, a ideia de que a política justa é a da rua, do movimento, não das estruturas tradicionais. Conforme esse movimento cresce, ele se institucionaliza, e Boric e vários outros líderes se tornam deputados. E é também nessa crise da esquerda tradicional que se abre caminho para o ressurgimento da direita.”
Hoje, na avaliação do historiador, Boric pode ser considerado um social-democrata, que vê o Estado atuando nas questões sociais e dando liberdade para o crescimento via setor privado. Seus dois principais assessores na área econômica, Javiera Martínez e Dante Contreras, deram uma longa entrevista ao Diario Financiero na tentativa de acalmar o mercado. Segundo eles, a proposta de redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais será um processo “gradual e negociado” e a política tributária focará mais no combate à sonegação e à elisão fiscal que no aumento de impostos. Uma grande guinada ao centro no confronto com a direita.
À sombra de Pinochet
A rigor, a direita chilena nunca saiu de cena. No plebiscito de 1988, mais de 46% dos eleitores votaram para que Pinochet ficasse no poder. O pinochetismo não morreu com o fim da ditadura e nem com a morte do general. Hoje ele é encarnado por Kast, que não é chamado de “Bolsonaro do Chile” à toa. Como o capitão em 2018, apresenta-se como um outsider, embora tenha sido deputado por quatro mandatos consecutivos. Seu programa é ultraconservador, propondo, entre outras medidas, transformar o Ministério da Mulher e da Igualdade de Gênero em Ministério da Família.
“Kast não oferece nada às demandas dessa classe média empobrecida”, diz Alberto Aggio. “Ele representa uma parcela da sociedade chilena que acredita na ação individual, ‘eu apreendo’, ‘eu acumulo’ etc. Talvez faça algum investimento em saúde básica, mas, para educação, em particular as universidades, nada. Conflito social, para ele, se resolve com repressão.”
Como no Brasil, vende-se no Chile uma ideia de polarização entre dois extremos, especialmente pelo fato de Boric contar com o apoio do Partido Comunista, embora ele não economize críticas aos regimes de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua. Por aqui, em que pesem a leniência com as ditaduras de esquerda e os escândalos de corrupção como o mensalão e o petrolão, Lula governou o país por oito anos respeitando as instituições democráticas, ao passo que Bolsonaro raras vezes perdeu uma oportunidade de atacá-las e miná-las, como foi abordado num Ponto de Partida do Meio. No Chile, nenhum dos candidatos já exerceu cargo no Executivo, mas seu apreço pela democracia pode ser medido em declarações.
O Centro de Investigação Jornalística (CIPER, na sigla em espanhol) analisou entrevistas e discursos de Boric e Kast tendo como critérios os sinais de autoritarismo descritos no best seller Como as Democracias Morrem, dos cientistas políticos americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Boric se enquadra em apenas um deles: a tentativa de deslegitimar o adversário, um discurso infelizmente comum em campanhas políticas. Kast também o faz, mas apresenta diversas outras facetas antidemocráticas, como propostas de colocar representantes do governo nas universidades, dar ao presidente poder de interceptar documentos e comunicação e fechar o Instituto Nacional de Direitos Humanos. Kast não é apenas um conservador, ele é um iliberal e reacionário.
“Kast tem uma concepção conservadora e autoritária da vida social”, resume Aggio.
Congresso x Constituinte
Quem quer que vença a eleição chilena terá que lidar com uma situação desagradável para qualquer presidente: a falta de uma base sólida no Legislativo. Pela primeira vez desde a redemocratização, a direita conquistou a metade do Senado, e a fragmentação da Câmara certamente obrigará o futuro presidente a negociar. “Por acomodação, a candidatura de Kast estaria mais afeita a esse Congresso, já que ele tem apoio até de setores do Partido Democrata-Cristão, que era parte da Concertación. Mas Boric é um negociador”, diz Alberto Aggio.
Por outro lado, em maio, o Chile elegeu uma Assembleia Constituinte com maioria de independentes e identitários, presidida por uma professora indígena da etnia mapuche, Elisa Loncón. Uma boa parte das pautas dessa maioria tem apoio da esquerda, deixando a direita isolada e antevendo uma Constituição com um perfil bem diferente do Congresso e, no caso de vitória de Kast, do presidente. “Não é impossível pensarmos inclusive que, caso Kast vença, haja um movimento na Constituinte pela adoção do parlamentarismo”, estima o historiador.
Amanhã os votos serão lançados. Das urnas sairá um novo presidente e um país profundamente dividido, qualquer que seja o vencedor.