Fala que eu te escuto
O papo não tinha nem dois minutos — o uísque Old Camp e a maconha com tabaco ainda não haviam sido servidos. Mas Elon Musk, Occupy Mars na camiseta, já parecia à vontade. O anfitrião, o comediante, ex-apresentador do reality Fear Factor e ex-comentarista de WWE (o telecatch americano), Joe Rogan, tem esse poder. Despretensioso e despudorado, Rogan deixa os convidados de seu podcast The Joe Rogan Experience, turbinados ou não por álcool e drogas, soltos. Musk conta sobre como uma de suas empresas, a The Boring Company, tem uma seção de produtos com tiragem limitada. Inspirado no clássico de Mel Brooks Spaceballs, ele havia tido a ideia de fabricar e vender lança-chamas. Rogan ri. “Ninguém te diz não? Te dá uma dica de que talvez as pessoas que decidam comprar esse produto sejam desequilibradas?”. “Ah, sim, é uma péssima ideia. Eu mesmo falei ‘não comprem, é perigoso, é errado’. Mas as pessoas compraram e não havia nada que eu pudesse fazer para impedi-las.” Rogan agora gargalha, jogando a careca para trás. “Quantos você fez?”. Musk responde com o sorriso de uma criança travessa: “20 mil. E eles esgotaram em quatro dias”.
O programa de Rogan já existia desde 2009, mas o episódio que mudaria a cena de podcasts nos Estados Unidos foi ao ar no dia 7 de setembro de 2018. Bandeira americana desbotada na parede de tijolinhos de um lado, cortina de veludo vinho do outro, dois microfones à moda antiga no meio. Na mesa, um Buda, bonecos de lutadores, garrafas. Uma grande tela de TV ao fundo. Duas semanas depois de ir ao ar a entrevista de Rogan com Musk, dois brasileiros estreavam sua versão de um podcast transmitido em vídeo — um mesacast. A cortina de veludo está ali, só que cinza. O uísque na mesa também. No primeiro minuto do novo programa, o Flow, Monark e Igor celebram estar no ar pela segunda vez (o piloto não está disponível no canal). “Quanto mais vezes acontece o Flow, mais ele é real e mais a gente está próximo da glória de Joe Rogan”, vibra Monark, mãos ao alto. Eles dão risada e vaticinam: “A gente tem que se desvencilhar!”. É como se a maior inspiração do Flow os amarrasse de alguma maneira. “Sim, é totalmente inspirado”, diz Igor Coelho em papo com o Meio, contando que conheceu o programa do americano via Monark. Mas essa influência permanece até hoje. Na estética e em parte do conteúdo. E, principalmente, na relevância. O podcast de Rogan, atualmente uma exclusividade do Spotify, é o mais ouvido do mundo — somente a versão em vídeo do papo com Musk tem mais de 60 milhões de acessos. O episódio do Flow em que Igor, agora sozinho, entrevista o presidente Jair Bolsonaro, no último dia 8 de agosto, bateu 14,8 milhões de pageviews no YouTube e se tornou o mais visto de um mesacast no Brasil. O Flow e o formato que ele inaugurou por aqui estão em definitivo no jogo eleitoral.
A conversa entre Rogan e Musk é reveladora do que pauta esse tipo de programa lá e cá. A descontração é ambiente profícuo para confissões. A inconsequência de um bilionário que acha que não tem como controlar se alguém decide comprar os lança-chamas que ele mesmo fabricou e comercializou pode parecer risível. E Rogan realmente se delicia com a candura com que Musk ao mesmo tempo admite sua culpa e lava suas mãos. Talvez porque se reconheça nela. Seu podcast é conduzido com a mesma ambiguidade. Plataforma de teorias conspiracionistas e desinformação (de teses que envolvem alienígenas nazistas a outras mais populares, como as antivacinas), muitas vezes sob o puro pretexto de dar voz a todo tipo de ideia, o programa já foi quase extinto numa queda de braço com artistas que ameaçaram sair do Spotify se Rogan ali prosseguisse. Rogan ali prossegue. Mas baixou a fervura e passou a dizer que não queria ter a influência que lhe é atribuída, evitando, inclusive, falar de política.
É aqui que Igor Coelho e Joe Rogan se separam. Além de cravar que não embarca em teorias da conspiração, Igor quer, sim, ter impacto. Quer pautar o papo político. De camiseta da banda Angra, bermuda e descalço, deitado num sofá de couro em seu estúdio em São Paulo, Igor, um carioca de 37 anos que se formou em Letras e dava aulas de inglês, explica que a inspiração em Rogan foi a ideia de poder trabalhar ouvindo gente de todo tipo. “O mais interessante são as pessoas que tenho a chance de conhecer melhor. Não sou muito da conspiração, dessas coisas mais absurdas, mas tendo a gostar da possibilidade de a gente poder debater qualquer coisa. Acho que a gente consegue expandir um pouco o diálogo no Brasil. Mas também sei que essa liberdade, de certa forma, diminui à medida que a gente vai se tornando mais relevante.” (Além da inspiração de Rogan, Igor costuma contar que o Flow nasceu de um estado de espírito de “ódio e depressão” que ele e Monark sentiam como streamers de games). Igor foi cobrado por parte da imprensa tradicional por, na entrevista com Bolsonaro, não ter sido mais rigoroso ao confrontar mentiras do presidente. Ele argumenta que o espírito do Flow não é de antagonizar ou lacrar em cima do convidado. “Estou ali para conversar e ouvir o que o cara tem a dizer. O Flow tem uma função social, que é uma parada que tento imprimir, que é importante ser relevante no debate público, trazer pro mundo real o que é que esses caras [políticos] estão fazendo e como isso afeta de verdade a vida do cidadão comum. Eu coloco como um certo dever trazer pro mundo real, aproximar da população.”
Ao longo do programa, vão aparecendo recados para os espectadores checarem, por si mesmos, as informações oferecidas pelos entrevistados e pelo apresentador. Igor acredita que parte de seu público compreende essa lógica e é capaz de formar sua opinião dessa maneira. No caso da conversa com Bolsonaro, que durou mais de cinco horas, a percepção, baseada em uma enquete do Flow, é de que 80% dos espectadores já são bolsonaristas e estavam ali apenas para reafirmar seu ponto de vista — seguindo a lógica das redes sociais. “Mas a gente tem um público que é do Flow, e essa galera, que graças a Deus vem crescendo, entendeu a proposta. Quando os caras falam que eu sou entretenimento, fico até meio puto. Não quero ser visto como entretenimento. Tem episódios que são pra você rir, espairecer. Mas a gente tenta trazer assuntos relevantes. Outro dia eu estava conversando, por exemplo, com Paulo Artaxo, um físico reconhecido internacionalmente, tido como um dos maiores cientistas do mundo, e ele estava falando sobre aquecimento global. Muitas coisas que ele fala ali têm viés ideológico, nossa galera saca e se informa acerca daquilo além do programa.” Aos 59 minutos da entrevista com Bolsonaro, o presidente faz uma defesa apaixonada da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. Igor contesta. Conta de um papo que teve com a cientista Ester Sabino, mas diz não lembrar a explicação em detalhes. Olha para a câmera e ordena: “Pesquisem”. Na tela, aparece uma tarja com os dizeres: “Lembre-se de pesquisar sobre tudo que for dito nesse programa”. Bolsonaro emenda, então, mentiras sobre vacinas. O lança-chamas está aí, pode te queimar, mas só compra quem quer.
Corta!
Rogan e Igor não inventaram os mesacasts. No caso americano, Rogan apenas modernizou uma longa tradição dos talk radios e de apresentadores carismáticos — o mais famoso deles é Howard Stern — capazes de hipnotizar sua fiel audiência por muitas horas. Em paralelo, figuras como Rush Limbaugh tornaram essas horas em pregação política — neste caso, no evangelho da extrema-direita. Mas nas eleições de 2016 os podcasts de política de sucesso nos Estados Unidos eram progressistas. Era o caso do Keepin’it 1600, feito por membros da equipe de Barack Obama (e que depois se transformaria no Pod Save America e daria origem à Crooked Media, uma das maiores produtoras de podcasts dos EUA), ou mesmo o With Her, que acompanhava a campanha de Hillary Clinton. “Criou-se, inicialmente, uma ideia de que podcasts e talk radios competiam em ideologia, sendo podcast um ambiente propício para progressistas. Talvez isso não fosse verdade, mas o fato é que essa aparente vantagem liberal desapareceu”, explica Valerie Wirtschafter, analista de dados sênior na Iniciativa de Inteligência Artificial e Tecnologias Emergentes da Brookings Institution e Ph.D em ciência política pela Universidade da Califórnia. E uma das razões para isso é o que ela chama de “fábrica de conteúdo” que comentaristas de direita parecem ser. “Steve Bannon, por exemplo, chega a botar no ar três episódios num dia. Os radicais inundaram as redes no 6 de janeiro da invasão ao Capitólio.”
Essa disputa ideológica no ecossistema de podcasts segue, em larga medida, a das demais redes sociais e mídias digitais. Antes de mergulhar nela, vale fazer a distinção conceitual dos formatos. Ou, na verdade, mostrar como essa distinção é difícil. Valerie explica que um podcast, a partir da definição dada pelo Guardian em 2004, é a de um arquivo de áudio, disponível num feed de RSS, “baixável e pausável”. Ou seja, é o ouvinte que escolhe onde, quando e em que velocidade ouvir no seu tocador. Mas o mundo digital é vivo e vai se reinventando em alta velocidade. “Já nos anos 00, as pessoas faziam podcast e subiam no YouTube. Flow, PodPah e outros não são podcast, mas também não são TV. E se todo mundo chama de podcast, é podcast e pronto”, diz Cris Dias, pioneiro digital no Brasil e ele próprio um podcaster, criador e apresentador do Boa Noite Internet, e fundador da Ampère, produtora de podcasts. PodPah, para quem não conhece, é atualmente o maior mesacast do Brasil — e sua criação foi impulsionada pelo pessoal do Flow, com equipamentos e dicas. Em dezembro de 2021, o PodPah furou a própria bolha ao entrevistar o ex-presidente Lula. Até a entrevista de Bolsonaro no Flow, esse papo de Lula com o PodPah era detentor do recorde de views nesse formato.
O nome que se deu a esses podcasts com vídeo em que amigos batem papo sobre tudo e recebem convidados foi mesacast. O próprio Spotify entendeu que a fusão de áudio e vídeo é irreversível e passou a permitir que os criadores subam seus podcasts em vídeo na própria plataforma. Então, Cris faz uma observação que explica a razão da simbiose dos podcasts com os vídeos: os cortes. Uma lista de podcasts num tocador não viraliza. A pessoa tem que escolher ir lá, ouvir aquele material, engajar com ele. Não à toa o índice de fidelidade a podcasters é tão alto. Mas para explodir mesmo os cortes de vídeo no YouTube são fundamentais. E esses cortes são feitos pelos próprios criadores dos podcasts ou por terceiros. “O Rogan mesmo não inventou nada, mas o corte do Elon Musk fumando maconha no show viralizou. E o hábito de consumo no YouTube é fortíssimo. Não demanda aplicativo. Então, os números que eles exibem são covardia. Porque o algoritmo fica educado a te oferecer mais e mais daquele tipo de conteúdo.”
O mecanismo praticamente desenha o sucesso da extrema-direita nesse formato. O volume de produções com esse viés é imensamente maior e, portanto, mais sugerido e reforçado pelo YouTube, além de muito mais compartilhado em mensageiros como WhatsApp e Telegram. Ainda assim, há quem escape da lógica. Guilherme Felitti, cientista de dados e sócio da Novelo Data, estuda esse fenômeno há quatro anos. Ele descreve as fases do mundo dos podcasts no Brasil, apontando que Cris Dias foi um dos desbravadores. Vieram, depois, Flow e PodPah e a disputa por audiência entre os dois acabou gerando o ecossistema de mesacasts no Brasil, tendo o YouTube como habitat. “O modelo de negócio se mostrou viável, eles começaram a ter espaço comercial. Além disso, o YouTube é a plataforma onde é mais fácil se monetizar conteúdo.” Felitti frisa que o PodPah escolheu um caminho menos político em seu conteúdo, o que é corroborado pela negativa de seus apresentadores de participar desta reportagem. “O Flow sempre fingiu ser sério para discutir polarização política. O PodPah era diversão pura. E a polarização cansa nossa saúde. Esse cansaço começou a se manifestar na escolha da audiência pelo PodPah.” Os dados levantados por ele confirmam isso. Criado dois anos depois do Flow, o PodPah ultrapassou o concorrente em números de inscritos no YouTube em agosto de 2021. E não parou de crescer. Hoje, tem 5,8 milhões de inscritos. O Flow tem 4,3 milhões — e ganhou 450 mil da entrevista com Bolsonaro pra cá.
Igor, do Flow, garante que essa competição não mexe com ele. E reforça que seu microfone está igualmente disponível para esquerda e direita. Mas que convidados da esquerda simplesmente se recusam mais frequentemente a comparecer. “Sinto, no campo da esquerda, uma certa resistência em falar com o contraditório. Gostaria que isso não fosse real. Mas te afirmo de todo o coração que a gente convida esses caras. Já recebemos o [Guilherme] Boulos e o [Fernando] Haddad. Estamos convidando o Lula há mais de dois anos. Tem diversos nomes que eu poderia citar, mas eles não aceitam. Não sei, não se sentem confortáveis.” Será que essa resistência tinha a ver com a figura de Monark, fundador do Flow que se envolveu diversas vezes em controvérsias e fez declarações beirando o crime, bem à la Joe Rogan? Igor diz que não. “Existem pessoas que não vieram porque não gostavam do Monark. Mas elas não são necessariamente da política. São pessoas que só não gostavam do Monark, sabe? O programa em si tem uma personalidade que vai além disso. A gente é conhecido por não debater ou forçar a barra, encher o saco dos cara. Mas tocamos nos pontinhos que incomodam. Já vi o Lula participando de outros programas e não é a mesma coisa…”
A solução encontrada por Igor para dar alguma diversidade ideológica ao programa é a de trazer “um analista político, um cara que é diametralmente contrário. A pluralidade de trazer muitos pontos de vista aqui ajuda nesse sentido”. Com isso, como esperado, Igor já foi tachado de, em seus termos, esquerdalha, bolsominion e anarcocapitalista. No fim, ele se define como alguém com visões políticas muito próprias, que é a favor do porte de armas, da legalização da maconha, de o Estado não interferir na decisão da mulher de fazer um aborto. Cris Dias e Guilherme Felitti concordam que não dá para se partir do princípio de que esse tipo de programa e apresentador, com esse nível de liberdade discursiva, prejudicam o debate político. “No fim, a gente cai no paradoxo da democracia. Se ela é um sistema onde todo mundo tem voz, estamos no auge da democracia. Não falaríamos de racismo, homofobia como falamos hoje se não fosse a internet. Mas há um preço a se pagar. Há malucos que também ganham voz. Ainda acho o saldo positivo”, defende Dias. Felitti, então, pondera que a enorme relevância que os mesacasts estão ganhando não seria um problema se houvesse espaços para o confronto com jornalistas mais preparados. Mas a imprensa está desacreditada e os políticos estão evitando a imprensa tradicional. “Essas entrevistas são o que sobrou. Talvez seja essa a sina da comunicação digital, mediada por algoritmo e rede social. De falar só para convertidos, nas bolhas.” Se for esse o caso, Igor Coelho, do Flow, é o pastor do “Fala que eu te escuto”.