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Os 60 anos do golpe: militarismo acossado e civilismo em alta

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Depois da aventura do bolsonarismo, a efeméride ideologicamente tão disputada será celebrada com genearis entrando e saindo da Polícia Federal

Mais um aniversário do golpe de 1964 se aproxima e, com ele, as polêmicas relativas à significação histórica daquele acontecimento, dividindo a opinião pública. Instado a se manifestar, o presidente Lula afirmou que não gostava de remoer o passado e que era preciso governar olhando para o futuro. Embora previsível para quem conhece sua personalidade pragmática e conciliadora, parte significativa da esquerda recriminou a declaração por não aproveitar uma oportunidade histórica de condenar o militarismo renitente depois da tentativa de golpe de Estado de Bolsonaro. Disseram até que “quem não remói o passado acaba remoído por ele”.

O assunto é de grande complexidade e sobre ele é preciso fazer algumas considerações.

Há dois tipos de história. Uma é a história científica, acadêmica, aparentemente descomprometida com as lutas do presente, destinada a reconstituir o passado pela recolha de seus vestígios ou monumentos. Este é um tipo de história relativamente recente, que só adquire contornos efetivos a partir do século 19 com Ranke: “A história como ela realmente aconteceu”. A outra história, praticada desde a Antiguidade Clássica, é aquela pensada como auxiliar da política, exercendo um papel de pedagogia cívica. A história seria aqui um repositório de acontecimentos e personalidades exemplares do passado, cuja memória deveria ser preservada para guiar as gerações presentes e futuras. É a história “mestra da vida e luz da verdade” de Cícero.

É este último tipo de história que nos interessa aqui. Em uma época em que a sociedade tinha pouca complexidade, a identificação do que fosse o bem comum e como a história podia servir de “mestra da vida” era algo relativamente simples. A partir do momento em que o liberalismo político afirmou o primado da sociedade enquanto espaço de decisão coletiva — a sociedade pensada como lugar do pluralismo —, porém, legitimou-se a existência correlata de uma pluralidade de concepções de bem comum. Na esteira dessa legitimação, o pluralismo político legitimou também a concorrência de diferentes narrativas cívicas competindo sobre o passado. Enquanto partidos conservadores, liberais e socialistas concorriam pela preferência do eleitorado, cada qual apresentava também uma diferente narrativa para fins civicamente “pedagógicos”, selecionando os acontecimentos e personalidades históricos julgados exemplares segundo a própria ideologia.

Já em meados do século 19 as correntes conservadoras, liberais e radicais apresentavam no Brasil diferentes versões da independência. Para os conservadores, a emancipação teria sido uma legítima defesa contra a tentativa das revolucionárias cortes de Lisboa recolonizarem o Brasil, encabeçada pelo príncipe regente dom Pedro. Para os liberais, tratara-se de um movimento natural decorrente do progresso da antiga colônia que, a amadurecer em uma sociedade nacional distinta, teria encontrado seu primeiro porta-voz na pessoa de José Bonifácio. Para os radicais, por fim, a independência resultava de um movimento republicano de libertação contra a tirania estrangeira que, traído pela continuidade da monarquia, tinha por mártires Tiradentes e Frei Caneca.

Tais considerações são necessárias para compreender o lugar do golpe de 1964 na memória brasileira. Balanço realizado por Wanderley Guilherme dos Santos seis anos depois (1970) já revelava como a opinião pública se dividia sobre o acontecimento. Para a direita, representada por Roberto Campos, Bilac Pinto e Lyra Tavares, aquele evento teria sido uma revolução salvadora, que livrara o Brasil de um governo populista, comunista e corrupto para estabelecer outro oposto: democrático, moralizado, favorável ao liberalismo econômico e de orientação americanista. Já para a esquerda, identificada com Amoroso Lima, Miguel Arraes, Carlos Heitor Cony, Werneck Sodré e Mário Pedrosa, aquele acontecimento não passara de um golpe liberticida contra um governo nacionalista e popular, destinado a instaurar uma ditadura militar com o apoio do imperialismo americano e de forças sociais reacionárias como o latifúndio.

Sessenta anos depois, quando o país se acha — de novo — radicalmente polarizado entre esquerda e direita, não surpreende que as leituras sobre o golpe militar de 1964 sejam praticamente as mesmas que lhe foram contemporâneas.

Os partidos e movimentos sociais do presente sempre se apropriam da memória daqueles que julgam terem sido seus pais ou avós, criando linhagens ideológicas resistentes ao tempo. A esquerda atual incorpora as dores e interpretações dos antigos PTB e PSB, celebrando Vargas, Jango e Brizola; e a direita, as da antiga UDN de Lacerda, de boa parte do antigo PSD e dos próprios militares, celebrando Castello Branco e Médici. Estes últimos, com seu corporativismo de instituição total, fechada sobre si mesma, parecem ter enterrado debaixo dos quartéis uma cápsula do tempo — lugar onde, por excelência, o tempo não parece passar.

Mas há outra particularidade digna de nota. A efervescência em torno da efeméride varia conforme as circunstâncias de cada época. Em 1994 e 2004, o consenso progressista em torno da necessidade de deixar para trás uma época desastrosa do ponto de vista das liberdades democráticas, das desigualdades sociais e da herança econômica fez com que os 30 e 40 anos do golpe passassem quase em branco. Em compensação, o cinquentenário (2014) foi discutido como se ele tivesse ocorrido na véspera, porque coincidiu com o ressurgimento fortíssimo da direita. Era ainda um ano de eleição, em que estava em jogo a interrupção ou não da série de governos de esquerda havia doze anos no poder. Foi quando uma geração de generais, encabeçada pelo atual senador Hamilton Mourão, saiu a campo em defesa das supostas virtudes do regime autoritário. O debate em torno da deposição da presidente Dilma Rousseff foi todo travado à sombra de 1964. As disputas relativas a se tratar o processo de um impeachment ou de um golpe repetiam aquelas sobre o caráter de revolução ou golpe de 1964.

Durante os últimos dez anos, da cápsula do tempo das casernas aberta pelo general Mourão, parece ter saído uma mosca azul que o picou e outros seus colegas, como Villas Boas, Braga Netto, Augusto Heleno. Generais do chamado “grupo do Haiti” que, tendo participado da missão da ONU destinada a pacificar aquele país, voltaram para casa convictos de sua missão providencial de salvar também o Brasil depois de trinta anos fora do poder. Grupo que tomou a peito o relançamento do militarismo e que embarcou na aventura Bolsonaro, com os resultados catastróficos por todos conhecidos.

Foi o próprio governo militarista e reacionário de Bolsonaro que se incumbiu de persuadir a maior parte da cúpula das Forças Armadas de que sua tradicional concepção de tempo fechado era uma fantasia; que o contexto político era muito diverso de 1964; que os militares só poderiam hoje tomar o poder na carona de um político profissional; que, nessa condição, a corporação arriscava ter a sua autonomia abalada pelo aparelhamento do ministério da Defesa, por meio do qual um presidente poderia pressionar ao limite os comandantes das forças, inclusive com a demissão, a fim de capturá-las, fazendo delas “o seu exército”, conforme famosa expressão de Bolsonaro. Foi por esses fatores que a tentativa de um golpe de Estado contra a República de 1988 obteve baixa adesão do Alto Comando do Exército e deu com os burros n’água.

Estamos prestes a assistir a um fato inédito em nossa história republicana: o indiciamento, julgamento e condenação de generais de quatro estrelas e coronéis à prisão em regime fechado, pelo crime de tentativa de golpe contra o Estado de Direito democrático. Algo impensável a uma corporação que, desde seu primeiro golpe, em 1889, sempre se imaginou sucessora do poder moderador imperial, habilitada a intervir na política conforme seu alvedrio, independentemente das regras constitucionais. Mentalidade que resistiu nas casernas graças à cápsula do tempo afinal aberta por Mourão, mas que foi despertada pela realidade do governo Bolsonaro, que revelou à maioria dos generais o perigo de se ressuscitar o militarismo no contexto democrático e acabar refém de um populista absolutamente irresponsável.

É neste contexto de 60 anos do golpe que deve ser avaliado o desejo expresso por Lula de não “remoer o passado”. Toda a onda da década passada, na qual o militarismo marchou de mãos dadas com o lavajatismo e a extrema-direita rueira, teve por fim último removê-lo do jogo político.

Lula e seu partido continuaram a ser retratados debaixo do governo Bolsonaro como a encarnação do que havia de mais demoníaco e corrupto. Depois de uma semana na presidência, o novo governo sofreu uma tentativa de golpe de Estado. Não lhe parece mesmo sensato, a essa altura, dar de bandeja à extrema-direita pretexto para estragar um trabalho pacientemente desenvolvido para atrair de volta a confiança de que ele gozava noutros mandatos em parte da caserna, afastando-a do extremismo. Interessa-lhe, do ponto de vista eleitoral, mas também à República, desatrelar o tanto quanto possível as Forças Armadas do bolsonarismo.

Mas há uma razão adicional, quiçá mais importante, para que Lula não mexa no vespeiro: o fato muito cômodo de que quem está fazendo o “serviço sujo” de condenar o militarismo seja precisamente aqueles a quem a Constituição incumbe de fazê-lo: a Justiça. Investigar, indiciar e processar os militares golpistas, separando o joio do trigo, não é nem deve ser função do chefe do Estado. É função da polícia, do Ministério Público e do Judiciário. Não há declaração sua como presidente que contribua mais para o civilismo, contra o militarismo, do que o espetáculo de se verem, por meses e meses a fio, generais e coronéis entrando e saindo da Polícia Federal para depor, como investigados e testemunhas. De se ver também generais e coronéis rompendo com o histórico pacto de silêncio do corporativismo, entregando seus colegas que emporcalharam a farda debaixo de um delírio de ambição. Como pedagogia cívica, o aniversário dos 60 anos do golpe militar não poderia encontrar melhor celebração.


*Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

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