De mangás e mangakás
Mangás são muito mais do que quadrinhos em preto e branco. São uma manifestação da cultura japonesa, como janelas para os valores morais, tradicionais e as dicotomias dos seus escritores, que rodam o mundo. Esses autores, os mangakás, publicam suas histórias e tocam profundamente sua audiência, sejam crianças, jovens ou adultos. Arte depende de inspiração — e não raro ela vem de outros artistas. Osamu Tezuka, Akira Toriyama, Eiichiro Oda, Masashi Kishimoto são renomados mangakás, que se inspiraram em obras anteriores e até em filmes ocidentais.
No dia 1º de março, foi anunciada a morte de Akira Toriyama, aos 68 anos, conhecidíssimo por seu trabalho em Dragon Ball. Milhões de fãs de diferentes gerações lamentaram. Mas vale dar um passinho atrás antes de falar dessa lenda.
Alguns mangás são sobre robôs (mecha), outros são high-tech, outros focam na beleza de uma vida ordinária. Pornografia, violência e crítica social também aparecem. Mangá se traduz como “ilustração involuntária” e suas imagens são em preto e branco. Eles eram apenas tirinhas cômicas, com pouco desenvolvimento. Quem definiu o estilo criativo do mangá, diferentes formas de balões de fala, efeitos especiais e os desenvolvimentos clássicos de personagens foi Osamu Tezuka. Ele trabalhou por 40 anos e foi o mangaká de Astro Boy, como é conhecido no Ocidente. Criou mangás sobre sua própria experiência ao ver o bombardeio de Osaka e incorporou narrativas pacifistas em diversas histórias, ao criticar armas nucleares e constantemente tratar da dificuldade de duas culturas diferentes se entenderem.
Tezuka começou a publicar durante seus estudos na faculdade de medicina. Tocava muitas histórias ao mesmo tempo e trabalhava sob a pressão de editores dentro da sua sala. Osamu Tezuka é tido como um deus do mangá e um museu foi erguido em sua homenagem na sua cidade natal. Criou mais de 150 mil páginas de mangá, publicou mais de 500 títulos e tinha um objetivo: que seus jovens leitores pensassem objetivamente sobre a fragilidade da Terra e lembrassem o que é ser humano. Mas seu sucesso também alimentou expectativas irreais de produção dos mangakás.
Eiichiro Oda reportadamente trabalha das 5 às 2h da manhã. Kishimoto passava 19 horas desenhando em sua mesa. Toriyama chegou a terminar um capítulo inteiro de Dragon Ball em um só dia. A indústria é incrivelmente competitiva e a entrega é semanal, com poucos hiatos. Oda já comentou as péssimas condições de trabalho e seus problemas de saúde, como pressão alta e privação de sono. Numa compilação feita por fãs, e considerando apenas mortes por causas naturais, 219 mangakás morreram com uma média de 62,6 anos. A expectativa de vida do Japão para homens é de 83 anos.
Tezuka morreu em 1989, aos 60 anos, deixando trabalhos inacabados, como uma história em parceria com Mauricio de Sousa. E foi tão definidor dessa cultura que alguns mangás chegaram a ser objeto de censura por serem progressistas demais em suas narrativas anti-guerra, de transgressão de gênero, com mulheres em posição de poder.
Já Toriyama revolucionou a narrativa dos mangás shonen, direcionados a meninos adolescentes, trazendo uma ilustração mais suave dos protagonistas e a evolução não só da capacidade de luta, mas dos personagens, emprestando-lhes arcos de redenção e comédia.
O que antes nunca tinha sido feito num mangá de luta foi um sucesso. Inspirado em filmes de kung fu e no astro Bruce Lee, Dragon Ball foi publicado semanalmente de 1984 a 1995 na revista Shonen Jump, e a série vendeu mais de 300 milhões de cópias, consagrando-se como um dos mangás mais populares de todos os tempos. Dragon Ball levou a cinco adaptações em animes, além de filmes e jogos. O sucesso no Japão foi o suficiente para popularizar a obra no mundo todo, com o anime nas TVs de 81 países, chegando ao Brasil em 1996. Toriyama foi o mangaká que proporcionou a ocidentalização dos animes, com muitas crianças assistindo a Dragon Ball na TV aberta. Por aqui, a coisa ficou tão popular que rendeu até uma memória equivocada envolvendo o 11 de Setembro (e que volta aos trending topics anualmente). Muitos acreditam que a Globo interrompeu um momento crítico na exibição de Dragon Ball Z para transmitir ao vivo os ataques terroristas — o que não aconteceu.
Akira Toriyama deixou obras prontas, como o anime Sand Land, que estreia 20 de março na Disney+. Outras seguem com divulgação incerta no Brasil, caso de Dragon Ball Daima, previsto para outubro de 2024 no Japão, na comemoração de 40 anos da franquia.
Diversos gêneros de mangás são direcionados a públicos específicos e os autores os publicam nas revistas que correspondem ao gênero de sua obra. A mais famosa delas é a Shonen Jump, responsável pela publicação dos mangás mais populares da atualidade, como Jujutsu Kaisen, de Gege Akutami; Boku no Hiro, de Kohei Horikoshi; e One Piece, do gigante Eiichiro Oda. Também veicularam grandes obras atemporais, como Saint Seiya, de Masami Kurumada e a própria Dragon Ball. Acompanhar os capítulos semanalmente é um hábito dos japoneses, mas para os colecionadores também é possível comprar os volumes fechados, com os capítulos de uma mesma obra compilados, após algumas semanas do seu lançamento nas revistas. Atualmente, 21 títulos são publicados apenas na Shonen Jump.
One Piece é um dos mangás mais longos em andamento, com mais de mil capítulos desde a sua criação, em 1997. Não à toa, a franquia gerou mais receita que Senhor dos Anéis, totalizando mais de US$20 bilhões em 2019. Agora é também uma adaptação live-action, que agradou e conquistou mais fãs. Oda, o mangaká, iniciou sua carreira aos 17 anos de idade, ao ganhar o segundo lugar do prêmio Osamu Tezuka. Ele começou seu trabalho como assistente na Shonen Jump, onde publica desde então sua história sobre piratas, profundamente política, em que discute materialismo e liberdade. Oda não só é fã de Akira Toriyama como se inspirou em Goku para criar Luffy, seu personagem principal.
Outra revista derivada da Shonen Jump, a V Jump, foca em mangás novos e publica Boruto, de Mikio Ikemoto e Masashi Kishimoto; Dragon Ball Super, Yu-Gi-Oh! OCG e outros quatro títulos. Boruto é uma continuação da história de Naruto, mangá que circulou entre 1999 e 2014. Kishimoto cresceu desenhando os personagens de animes que assistia, como Dr. Slump e Dragon Ball, ambos de Toriyama. Nascido em 1974, ele foi profundamente influenciado por histórias da guerra, de Hiroshima e os impactos dos conflitos estão presentes nas suas narrativas. Seu principal trabalho, o fenômeno Naruto, vendeu aproximadamente 250 milhões de cópias mundialmente. O boom de Naruto também fez várias pessoas ficarem curiosas e experimentarem os lamens. Aqui no Brasil, o mangá foi exibido em 2007 na Cartoon Network e no SBT, mas o anime segue fazendo sucesso com crianças assistindo pelo streaming. Quando Naruto terminou, em 2014, Eiichiro Oda reconheceu Kishimoto como seu concorrente, o que Kishimoto recebeu com gratidão.
Os mangás não são só entretenimento, são formas de arte, fontes de inspiração e reflexão da condição humana. Se você quer começar a ler e não sabe por onde, dois mangás excelentes são Death Note, com apenas sete volumes e uma discussão sobre a subjetividade da Justiça, e Fullmetal Alchemist, com 27 volumes e reflexões sobre o valor da vida humana.