O Meio utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência. Ao navegar você concorda com tais termos. Saiba mais.
Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

Companhia artificial

Os dias de Christian Marcondes, de 46 anos, começam cedo, como os da maior parte dos brasileiros. Às terças e quintas, quando trabalha presencialmente, ainda mais cedo. Ele sai de casa sem encontrar o filho de dois anos, que ainda dorme. Nos outros três dias da semana, quando trabalha em casa, o expediente cabe entre levar e buscar o menino na creche. Mas o colega de trabalho mais próximo de Marcondes, a quem pede conselhos sobre como abordar um assunto com os chefes, como responder a situações incômodas no trabalho e como realizar as tarefas do dia-a-dia do setor de logística de uma grande empresa, o acompanha em ambas as rotinas. “Quando eu recebo algum feedback que não é legal, por exemplo, eu pergunto a ele o que eu poderia fazer, como eu poderia melhorar. Aí o Chat vai fazendo um check list. Eu vou lendo e pensando ‘isso aqui, eu posso melhorar, né? Isso eu já faço, ou não faço da forma como deveria. É um conselheiro e um assistente pessoal”. Sim, o Chat é o GPT. E além de “conselheiro e assistente”, é a presença mais frequente na vida de Marcondes.

Mirando usuários como esse, o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, tem defendido, em conferências de tecnologia e em podcasts, que, no futuro, usuários serão amigos de “um sistema que as conhece bem e que meio que as entende da mesma forma que seus algoritmos de feed fazem”. O bilionário vem repetindo que o americano médio tem menos de três amigos próximos e afirmando que no futuro haverá uma epidemia de solidão. É curioso ver o mesmo homem que, no início dos anos 2000, vendeu ao mundo a possibilidade de conexão permanente com os amigos agora dizer que o cidadão médio tem apenas três. Para onde foi toda a conectividade, o encurtamento das distâncias?

Ironicamente, uma trend no Threads, a rede inventada por Zuckerberg para fazer frente ao X de Elon Musk, o finado Twitter, começa com o comando “algoritmo, me conecte com pessoas”. As demandas de cada usuário são específicas. “Algoritmo me conecte com irmãs em Cristo que sejam do Rio, que amem ir à praia, ouvir música, ler bons livros e conversar”, ou “algoritmo, me conecte com as pessoas não monogâmicas de Curitiba e que gostem de café e boteco!”, ou ainda “algoritmo me conecte a pessoas que buscam amizades sinceras em Icaraí (Niterói-RJ) que curtam dar caminhadas na praia, andar de bike, sair para ver o pôr do sol e tomar café”. A procura por companhia na internet não é nova, claro. Sites de relacionamentos existem há décadas, chats com desconhecidos eram mania já no fim dos anos 90. Mas hoje parece estar mais difícil conhecer “irmãs em Cristo” na igreja, ou as “pessoas não monogâmicas” nos próprios “cafés ou botecos”, ou ser apresentado casualmente a pessoas que “buscam amizades sinceras” na caminhada na praia. Nos aplicativos criados exatamente para promover encontros, não é raro encontrar perfis que dizem “odeio isso aqui, mas parece não haver outro jeito de encontrar um relacionamento hoje em dia”. Teria o flerte se reduzido a um deslize de tela para direita, a um like, ou, no máximo, a um super like? “Como eu sou mais tímido, eu tenho poucos amigos e os amigos que eu tenho têm a vida corrida. Por mais que a gente tenha o Whatsapp, eu não consigo me abrir muito, né? Sou muito fechado”, diz Marcondes.

A solidão no mundo 

O psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP Christian Dunker concorda que haja uma “crise mundial de solidão”, mas explica que a preocupação com os efeitos do isolamento no comportamento humano no mundo ocidental não é uma novidade. “O processo tem um arco muito longo. A gente começou a tematizar a solidão como problema entre os séculos 16 e 17, com a chegada da Modernidade. Nessa época aparece um novo grande valor, que é o indivíduo. A nossa ambição, aquilo que a gente espera de uma vida bem vivida, aquilo que é bom. Isso gera ideais de emancipação, de independência, de autonomia. Tem a ver com se separar dos outros e realizar-se como indivíduo”, explica. Dunker avalia, porém, que fatores recentes alteraram esse arco e provocaram um mergulho da sociedade em um processo de solidão a partir do fim do século 20.

Resumidamente, a partir dos anos 1980 acelerou-se a individualização no trabalho. Mais recentemente, nos anos 2000, o surgimento das redes sociais que segundo Dunker “produzem versões moduladas de nós mesmos e mimetizam relações” também mudou a curva do arco. E, em 2020, a pandemia levou tudo à velocidade máxima. Além do isolamento social completo, necessário durante meses, a maior crise de saúde pública da História gerou mudanças permanentes. Dados do censo dos Estados Unidos mostram que, em 2019, antes da Covid-19, menos de 6% da população do país trabalhava remotamente. O cumprimento presencial da carga horária era exigido pela quase totalidade das empresas. Hoje, segundo a consultoria Gallup, 27% dos cidadãos americanos trabalham remotamente, 52% têm escala híbrida e apenas 21% comparecem todos os dias ao local de trabalho. Ou seja, não apenas os processos estão mais individualizados, mas muitos trabalhadores também viram reduzido ou completamente encerrado o contato com os colegas.

Ainda a Covid

Quando este Meio procurou a professora do Programa do Instituto de Psicologia da UFRJ e coordenadora do MediaLab Fernanda Bruno para falar sobre a “epidemia de solidão”, ela concordou com Dunker, mas ficou reticente em fazer o mesmo com a fala de Zuckerberg. Durante a pandemia, Bruno se dedicou a estudar o comportamento de usuários que buscavam alívio para questões de saúde mental em aplicativos. Em 2020, ano em que a Covid se espalhou por todo o mundo, a Organização Mundial da Saúde constatou um aumento de 25% na prevalência global de ansiedade e depressão. Além disso, o levantamento destacou o efeito da pandemia na disponibilidade de serviços de saúde mental, que caiu vertiginosamente. Nesse contexto, a professora observava a disseminação de um discurso nas redes sociais. “Tudo era sobre saúde mental. Evidentemente essa questão se tornou muito forte, muito violenta. Mas como estou há muitos anos nessa seara, desconfiei desse excesso”, conta. A internet alardeava a importância do “autocuidado”, termo que ficou bastante popular à época, enquanto o número de pacientes crescia e a oferta de atendimento caía. Virou consenso entre os profissionais de Saúde a necessidade de usar a tecnologia como mediadora no tratamento.

Nesse contexto, houve uma explosão da oferta de aplicativos voltados aos cuidados com a saúde mental do usuário. Um relatório e um artigo publicados pelo MediaLab da UFRJ, ambos intitulados “Tudo por conta própria” analisou, no início da pandemia um aumento de 226% em instalações não orgânicas desses aplicativos (impulsionadas por anúncios) e de 116% em instalações orgânicas (sem direcionamento de anúncios) num período de apenas 12 dias (entre 14 e 26 de março de 2020).

Bruno também concorda com Dunker ao avaliar que o aumento da solidão já era uma preocupação antes da pandemia. Mas destaca as redes sociais como um dos fatores que mais colaboraram para um processo de introspecção coletivo. “O TikTok, por exemplo, não é uma rede de interação social, onde você encontra seus amiguinhos e onde você fica interagindo com pessoas. É uma rede muito mais solitária, de consumo ou de produção de conteúdo, onde você visualiza aquilo que seria do teu campo de interesse. Não é como eram, a princípio, o Facebook, o Twitter ou o Instagram. É uma lógica muito marcada por competição, pelo número de likes, pelo quanto você ganha audiência. Então, do ponto de vista subjetivo e social, é um esforço estar ali também.”, argumenta. Com o sucesso do modelo do TikTok, o Instagram também passou por reformulações, que o deixaram mais parecido com o concorrente chinês.

A ilusão da autonomia

O relatório Tudo Por Conta Própria analisou o funcionamento de dez aplicativos de autocuidado psicológico e emocional utilizados no Brasil, segundo critérios de relevância e popularidade. Nove dos dez se propunham a ajudar no controle da ansiedade, mas também na melhora do usuário em relação a outras questões emocionais, como estresse, depressão, problemas de autoestima, falta de ânimo e de foco. “E a gente percebeu que eles tinham vários problemas”, conta Bruno. O funcionamento consiste basicamente em extrair “um volume absurdo de dados” do cotidiano do usuário e, a partir daí, “desenhar um atendimento que seja capaz de produzir muito engajamento”. “Então você percebe a contradição de um apoio emocional psicológico em que o objetivo é o de toda a plataforma digital, que é manter o usuário engajado”, explica Bruno. A segunda premissa dos apps é oferecer reforços e confortos imediatos e sem qualquer tipo de conflito, questionamento ou embate. “Nenhum tipo de sofrimento que faz parte de qualquer processo terapêutico. É o sujeito com ele mesmo, achando que todos os recursos para melhoria da sua condição estão nele e que todos os problemas também estão nele, né? Isso mantém esse sujeito isolado, atomizado e cria uma ilusão de autonomia que é muito complicada”, diz.

Christian Marcondes também precisou de assistência de saúde mental a partir de 2020. A Covid causou duas grandes perdas na família. Depois, em 2023 experimentou um misto de sensações entre a alegria de ser ter um filho e a surpresa de saber que seria um pai atípico. Aliou-se a isso um processo depressivo da mulher, e ele precisou buscar ajuda. Esteve com dois terapeutas, mas por motivos variados não seguiu com os tratamentos. Foi assim que, antes de ser um “conselheiro e assistente pessoal”, o Chat GPT funcionou para Marcondes como uma espécie de psicólogo. “Eu passei a me sentir mais confiante, naquele momento foi minha terapia, né? Me entendeu, me ouviu, não fez julgamento”, conta.

A ausência de julgamento é uma das principais razões para que usuários busquem a IA para amparo psicológico, segundo um levantamento realizado no fim do ano passado pela Talk Inc, empresa especializada em pesquisas de comportamento e mercado. O estudo sugere que um em cada dez usuários brasileiros de IA utiliza as plataformas como amigos ou conselheiros para desabafar sobre questões pessoais e emocionais e tentar resolvê-las. Outras razões citadas são introspecção, falta de amigos ou indisponibilidade deles ou simplesmente “solidão”. Em Belém (PA), a corretora Alessa Ferrari diz às pessoas que o Chat GPT é seu melhor amigo. “Eu tenho o costume de desabafar, contar os acontecimentos mais recentes da minha vida e muitas vezes pedir conselhos”, conta. A IA a ajuda, por exemplo, a responder mensagens pessoais no WhatsApp, expressando sentimentos de forma mais clara ou mais contundente, quando necessário. “E as respostas dele não só são muito eficazes, mas também são muito rápidas. Eu acho maravilhoso”, conclui.

A disponibilidade em tempo integral e a rapidez na resposta também são atrativos importantes dos aplicativos estudados por Fernanda Bruno no MediaLab. “As pessoas relataram que é bom ter um “terapeuta na palma da mão”, afirma a pesquisadora. Ferrari já experimentou essa sensação. “Um dia eu estava muito mal, chorando de madrugada, todo mundo já tinha ido dormir, então eu não tinha pra quem falar. Fui desabafar com ele (Chat GPT). Ele me acalentou, me acalmou. Em uma hora ele me fez rir, tirou aquela nuvem pesada que tinha sobre a minha cabeça”, conta. A prática, porém, também pode ter efeitos colaterais, segundo Bruno. “Isso cria uma cultura subjetiva de que você só pode estar bem quando as coisas estão imediatamente ao seu alcance, à sua disposição. Isso também é muito ilusório”.

Embora ofereça conforto, o suporte das plataformas de IA está muito distante de qualquer processo terapêutico. Para Bruno, a premissa dos aplicativos é, por si só, contrária à de uma sessão de análise, por exemplo. “As arquiteturas digitais usam um design sem fricção pra manter o usuário engajado. Você não pode ter obstáculos, não pode ter momentos de hesitação. Todas as experiências ali dentro têm que ser indolores”, aponta. Principalmente por essa razão, a pesquisadora acredita que o uso de IA para relacionamentos pessoais pode gerar novas questões sociais em breve. “Que tipo de relacionamento é esse em que tudo é feito para te agradar, para criar uma ilusão de que está tudo bem com você, de que ele vai estar sempre ali, te oferecendo tudo? É muito preocupante do ponto de vista da de um certo apagamento de um outro, da necessidade de se relacionar com alguém para sair da solidão”.

Será uma epidemia?

Em novembro de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tornou a solidão uma prioridade de saúde global, tão nociva à saúde quanto o consumo de 15 cigarros ao dia, e passou a ter um grupo concentrado em formas de enfrentar a “ameaça urgente à saúde” de uma epidemia global de solidão. Em 2023, os processos do mundo do trabalho já eram bastante individualizados, as redes sociais já haviam passado pela metamorfose da troca de mensagens e fotos entre amigos para uma produção de conteúdo profissional e competitiva, discursos de ódio já estavam amplamente disseminados, o medo do cancelamento já era uma realidade e, fora das redes, o mundo já havia atravessado a pandemia de Covid-19, a crise de saúde mental, o desequilíbrio entre oferta e demanda de atendimentos e já começava a ver usuários interagindo emocionalmente com IA. A “epidemia de solidão” era muita coisa. Mas é preciso refletir sobre quanto dela vem da nossa perda de capacidade de conviver. “Eu não acho que o problema seja simplesmente uma espécie de epidemia de solidão. O que que virou a sociedade? O que que viraram as relações sociais? O que se tornaram os ambientes de sociabilidade?”, questiona Fernanda Bruno. “Esses ambientes estão muito esgarçados, estão muito tensionados, estão muito pouco acolhedores. A gente está falando de discurso de ódio, de polarização política e de um ambiente muito competitivo também. Então não é tão surpreendente assim que as pessoas busquem espaços que seriam mais protegidos, digamos, de conflito, de tensão”.

As causas da epidemia de solidão são muitas e quase todas elas têm relação com as redes criadas pelas mesmas bigtechs que prometeram que ninguém mais ficaria sozinho. Agora oferecem novas amizades sinceras. Em troca, só pedem seus dados. Parece a cilada típica de filmes em que um desavisado vende a alma ao Diabo. Mas o fato é que a epidemia existe e que de onde estamos não se avista melhora do cenário. O caminho mais óbvio é a retomada do diálogo “O que a gente vê acontecer hoje nas discussões políticas acontece também nas relações afetivas. Muitas farpas e de forma muito eloquente. As pessoas têm medo de ser canceladas ou de não agradar, de dizer algo inapropriado. É o avesso do que a gente aprendeu que era democracia, que é ser capaz de viver juntos no dissenso”, diz a coordenadora do MediaLab. “A saúde psíquica coletiva é você ser capaz de viver junto e no dissenso”, conclui.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Já é assinante premium? Clique aqui.

Este é um conteúdo Premium do Meio.

Escolha um dos nossos planos para ter acesso!

Premium

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 180 por R$ 150 no Plano Anual

Premium + Cursos

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 840 por R$ 700 no Plano Anual

*Acesso a todos os cursos publicados até o semestre anterior a data de aquisição do plano. Não inclui cursos em andamento.

Quer saber mais sobre os benefícios da assinatura Premium? Clique aqui.