Você conhece o Irã?
No início de dezembro, em 2022, nós brasileiros estávamos tomados pelas emoções do noticiário interno. Lula recém-eleito, uma trama envolvendo bomba para impedir sua posse, generais no Palácio do Alvorada prometendo perante os microfones que ele não tomaria posse. Mas, no dia 12, o STF surpreendeu todo mundo, antecipando a diplomação do novo presidente. Naquele mesmo dia, na cidade iraniana de Mashhad, um rapaz de 23 anos foi apresentado, algemado com as mãos para trás, à população que passava nas primeiras horas da manhã. Seu nome, Majidreza Rahnavard. Ele vestia calça e suéter cáqui, e foi ajudado por oficiais da Basij a subir na parte traseira de um caminhão guindaste. Aí amarraram uma corda ao redor do pescoço dele, a outra ponta no guindaste. E seu corpo foi levantado.
A Basij, a polícia moral do regime islâmico do Irã, foi juntando as pessoas que passavam. Nessas execuções públicas, é sempre assim. Não permitem filmar, mas querem que muita gente veja. Homens de todas as idades, mulheres também, as crianças que naquele momento, cedo da manhã, estavam sendo levadas para a escola. Sim, inclusive crianças bem pequenas. Rahnavard havia sido preso uns dias antes, quando tentava sair do país. Sua cidade, Mashhad, não é pequena. Uma cidade de quase quatro milhões de pessoas, dá duas Belo Horizontes, duas Brasílias, mais de duas Porto Alegres. Ele foi preso durante os protestos contra o regime, acusado de esfaquear dois Basijs. Imaginar um jovem conseguindo esfaquear dois guardas treinados e armados é meio inacreditável, mas vá. Talvez quisessem prendê-lo, enfim. As pessoas que assistem, não podem filmar. Mas a execução foi registrada pela TV estatal, que a exibiu no noticiário da noite.
Esse método de enforcamento é diferente do que se usava no Ocidente até princípios do século 20. Quando você é enforcado por queda, sobe ao cadafalso, tem um alçapão, ele abre, seu corpo cai pendurado pelo pescoço, a coluna se parte, você desmaia e morre. É rápido. Quando você é suspenso devagar pelo pescoço, a coluna não quebra. Você é estrangulado. Pode demorar até vinte minutos para morrer, em boa parte desse tempo acordado. As redes sociais iranianas foram tomadas, nos dias seguintes, pelo que ele disse para a mãe depois que ela soube da condenação. “Não chore nem leia o Corão no meu túmulo. Toque músicas alegres e dance.”
Outra história. Farid Mohammadi tinha 29 anos e Mehrdad Karimpour tinha 32. Eles foram presos juntos, quando estavam na cama, na cidade de Urmia. Foi finais de 2015, início de 2016. Essa é uma cidade menorzinha, 800 mil pessoas, próxima da fronteira com o Azerbaijão. Eles certamente tomaram todos os cuidados, o Irã é um dos raros países do mundo em que homossexualidade é ilegal. Quando presos e interrogados pela primeira vez, afirmaram que seu encontro era consensual. Mas não foi o que os juízes registraram. Acusaram a ambos de estupro. Passaram seis anos esperando a execução.
A gente sabe poucos detalhes, mas não é difícil imaginar. Estavam presos em Maragheh, que é uma das piores cadeias do país. Celas super-cheias, padrão brasileiro. Homens e mulheres acusados de homossexualidade com frequência passam longas semanas em celas solitárias com luz forte ligada dia e noite para que percam a noção do tempo. Unhas arrancadas, chibatadas, estupros, interrogatórios repentinos no meio da noite. As famílias frequentemente são informadas de que a visita foi cancelada no momento em que chegam. Após toda sorte de tortura, frequentemente os prisioneiros são forçados a assinar papeis em branco que depois são preenchidos com confissões. Tudo é do jogo. Faz parte de ser uma pessoa presa no Irã, principalmente dissidentes políticos e gays.
Farid e Mehrdad foram executados em janeiro de 2022. Juntos. Essa execução não foi pública, foi dentro do pátio da cadeia. As famílias foram convocadas e informadas de que só poderiam receber os corpos com a condição de não realizar um funeral público.
E eu não contei, aqui, a história que realmente se tornou famosa nos últimos poucos anos. É a história de Mahsa Amini, presa aos 22 anos, em 2022. Menina do interior, chegou deslumbrada a Teerã. Usou o hijab errado, deixou um cacho do cabelo para fora. Foi presa pela Basij. Sua família foi informada de que deveria pegar o corpo três dias depois. Foi surrada até entrar em coma e morrer. Porque uma mulher não pode mostrar os cabelos em público. Um ano depois, em 2023, Armita Garavand, de 17 anos, entrou em coma dentro de uma delegacia policial. Também tinha deixado um cacho de cabelo escapar para fora. Também ela morreu.
No Irã, pais, irmãos e maridos matam mulheres regularmente por ofenderem a honra de suas famílias. Às vezes, ofender a honra pode ser trocar um olhar com outro homem. Estes não são crimes que levam ninguém à cadeia. Não no regime dos aiatolás.
Tenho amigos iranianos. Um dos meus professores de ciência política mais queridos, um dos caras com quem mais aprendi sobre política, foi prisioneiro político no regime do xá Reza Pahlavi e depois, novamente, no do aiatolá Khomeini. O Irã tem, ainda hoje, uma das sociedades mais sofisticadas e cosmopolitas do mundo islâmico, uma sociedade sufocada por uma das ditaduras mais repressivas e reacionárias que a extrema-direita mundial produziu. Quer defender essa coisa e se dizer de esquerda? Vai na fé, cada um que lide com suas hipocrisias. Da minha parte, pessoalmente, que esses aiatolás derretam e se reintegrem no inferno pelo resto da existência.
Mas vamos falar sobre geopolítica.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Sabe, a gente precisa conversar sobre que tipo de espaço existe para podermos falar abertamente sobre valores. Sobre o que é sermos brasileiros todos. Não os vermelhos de um lado e os amarelos do outro. Sobre quem somos em conjunto. Não estamos tendo essa conversa. Este é um ato de cidadania. Aqui no Meio a gente defende a liberdade de ouvir dois, três lados, para então fundamentar a construção de um pensamento crítico e que seja seu, de fato. Mas para isso a gente sabe, é preciso construir repertório. E o Meio Premium é ideal para isso. Reportagens exclusivas, newsletters especiais aos sábados e às quartas e streaming por apenas R$ 15 por mês. Assine. Te garanto que vai fazer a diferença nas suas conversas.
E este? Este é o Ponto de Partida.
O ataque israelense ao Irã não tem nada a ver com o ataque israelense a Gaza. Não existe qualquer motivo estratégico no que está sendo feito em Gaza, hoje. Um ataque ao comando político e militar iraniano é o contrário. É obrigação de qualquer governante israelense trabalhar para que o Irã não desenvolva armas nucleares.
Por quê? Por uma razão muito simples. O regime dos aiatolás considera que Israel não deve existir. Oficialmente. E trabalha ativamente para que Israel seja perturbada tanto quanto seja possível. O Irã é um país que financia grupos guerrilheiros e terroristas na Síria, no Líbano, em Gaza, no Iêmen e sabe-se lá onde mais.
É um país pária na comunidade das nações. Converse em reservado com diplomatas de qualquer das grandes potências, dos Estados Unidos à Rússia, da Alemanha à China, e ninguém faz acordos com o governo iraniano achando que serão cumpridos. É aquela obsessão permanente com o fim de Israel, uma obsessão que já foi abandonada faz muito tempo pelo mundo árabe.
Se a Bolívia jurasse querer destruir o Brasil, repetisse isso na televisão todos os dias, financiasse grupos que lançam ataques contra brasileiros continuadamente no Paraguai, no Uruguai e na Venezuela, a postura brasileira seria qual? Se a Bolívia estivesse abertamente desenvolvendo uma bomba nuclear, adivinha o que qualquer governante brasileiro, de direita ou de esquerda faria? Nós iríamos atacar.
A outra coisa que não é dita: Donald Trump está tocando os tambores de guerra, é impossível saber o que ele deseja. Se é escalar o conflito ou é forçar o Irã à rendição em seu método tumultuado de negociação. Mas, pro raciocínio, não importa Trump. Se alguém aqui perguntar a qualquer líder europeu ou à maioria dos líderes árabes, ninguém está muito incomodado demais. Todo mundo considera que, se o Irã tiver armas nucleares, o risco é alto demais. Aquele regime, aqueles aiatolás, eles são capazes de usar a arma. O que os move é uma obsessão religiosa que vai além da previsibilidade.
Faça outra coisa. Pergunte a qualquer iraniano exilado. Aquele meu professor, Abbas Milani, quando eu tinha aulas com ele, uma das coisas que me provocava mais empatia é que eu sabia do que estava falando. Muitos de nós brasileiros sabemos. A vida no exílio é sempre dolorida, é sempre uma saudade constante de casa. Os porões de uma ditadura são sempre apavorantes. A opressão nunca passa. A diferença, claro, e não é uma diferença pequena, é a opressão brasileira era política. Biquínis eram permitidos nas praias, a época do desbunde e da liberdade sexual aconteceu durante a ditadura, discos de rock circulavam livremente. A opressão não ocorria em todas as dimensões da existência. A opressão da nossa ditadura não atacava todas as possibilidades de liberdade.
Mas no fim, esqueçam Netanyahu, esqueçam Trump, esqueçam tudo isso. Só uma coisa aqui é importante. É um regime sádico, perverso, que suga o ar por onde as pessoas passam. Que não dá espaço para que as pessoas amem quem desejarem, se vistam como quiserem, que sujeita todas as mulheres à pior das violências. Se este regime cair, o mundo fica melhor. A sociedade persa, uma das mais sofisticadas do mundo, volta a respirar.